Não se sabia se aquilo era um fórum, uma
assembleia ou um
bate-boca de desocupados.
O certo é que
lá estavam reunidos uns tipos estranhos
– umas figuras! A primeira
a falar foi Metáfora,
que desde
o início, contra
a opinião de Metonímia,
autointitulara-se chefe do grupo:
-- Amigos, eu
aqui sou a cabeça – ou o cabeça, como queiram. Precisamos reagir.
Basta de espoliação.
O Escritor nos
usa o tempo
todo, e depois é dele a glória, os louros,
a academia. Ora, nós é que somos imortais.
Queremos os nossos direitos.
-- As figuras, unidas, jamais seremos vencidas... – entoou Silepse. Mal
ensaiava o coro, no entanto,
foi interrompida por Metonímia,
que resmungou:
-- Não
aceito o seu cajado,
ó Metáfora. Como
podemos escolher um
líder que
o tempo todo
muda de sentido?
O cabeça aqui
devo ser eu.
-- Mas que
arrogância! – objetou Metáfora.
-- Até para dizer isso você me usa. Cabeça aí é
metáfora. Vê
como sou mesmo
importante?
Metonímia não
se deu por vencida:
-- O seu destino
é ser como
aquela ali – e apontou ao longe Catacrese,
que desgastada e sem
brilho jazia no olho
da rua, ou
seja, num lugar-comum.
-- Sabe por que
aconteceu isto com
ela? – insistiu Metáfora.
– Porque se deixou usar
demais. Agora
já não
impressiona nem comove. E será esse o meu, o seu, o nosso destino se não nos rebelarmos agora
contra o Escritor.
Que ele
reconheça a nossa força
e o nosso brilho
ou, então,
que fique de uma vez
nos braços
daquela outra – e olhou desdenhosamente para Gramática, que a tudo
assistia, impassível, no outro extremo
da sala.
A essas palavras, um frisson percorreu a assembleia. Cochichos, uivos,
gritos marcaram a adesão
ao ponto de vista
de Metáfora.
Era preciso
fazer ver ao mundo, com
todas as letras, como
elas sempre
foram exploradas pelo Escritor.
Só se atribuíam a ele
o mérito e o talento
pelos textos
que escrevia, mas
de onde vinham na verdade
a graça, o vigor,
a beleza de suas
produções? Vinham delas, figuras, que não
mereciam do ingrato nem um registro de rodapé.
Cada uma quis externar
o seu ressentimento. Hipérbole era a
mais exaltada: “Vamos prendê-lo e
crucificá-lo!”. Felizmente essa
conclamação não sensibilizou a todos, esbarrando no bom
senso dos mais
ponderados. Lítotes preferiu comentar que o Escritor, de fato,
não era
lá muito
honesto – opinião
compartilhada por seu
pai, Eufemismo.
Elipse nada
disse, mas fez questão
de dar a entender o que pensava. Perífrase
começou, fleumática: “ -- Colegas, antes de manifestar o meu juízo sobre o assunto
desta pendência, o qual
pretendo seja o mais isento possível,
levando em conta
não apenas
os argumentos aqui
apresentados por Metáfora,
como também...”
– mas o auditório,
aos gritos de “Vamos aos finalmentes!”, não deixou que ela terminasse.
Anacoluto foi sucinto: “O Escritor, vamos dar cabo dele.” – e esse
apelo, conquanto
ferisse os ouvidos de Eufonia (que se
retirou, aborrecida, alegando questão de ordem),
concorreu para que
o auditório tomasse uma decisão: trazer o Escritor ao plenário
e pedir-lhe que informasse a todos de quem dependiam os méritos
de seus textos.
Ou isso, ou
o abraço frio
de Gramática.
-- Quero ouvi-lo dizer
com as próprias palavras
que os reais
criadores somos nós – enfatizou Pleonasmo sob o aplauso geral, ao mesmo
tempo que Sinestesia dizia consigo, amedrontada:
“Ih, que eu sinto cheiro de barulho...”.
Pouco depois
o Escritor entrava na sala e ouvia as reclamações do grupo.
Enquanto Metáfora
lhe anunciava a sublevação e as opções que lhe restavam, ele
podia ver do outro
lado Gramática
sorrindo e lhe mostrando as algemas – umas algemas
simbólicas, é certo, disfarçadas num monte de normas,
regras, hábitos
que pareciam ao Escritor
a morte do sonho,
da invenção, da ousadia.
-- Seja o que for que vocês
queiram, eu cedo
– acabou por dizer.
– De agora em
diante, a glória
do que eu
escrever será de vocês.
Mas tem o seguinte
– seguiu-se uma pausa tensa, em que cada figura arregalou os ouvidos
e os olhos: – De vocês
quero também o sangue,
os nervos, os sonhos
e o medo de morrer. Sem essa vibração
e sem esse
temor, que
são o combustível
de tudo que
escrevo, nenhuma de vocês me serve. Nenhuma de vocês
funciona – assim como
um corpo
não funciona sem
desejo e sem
alma.
Ouvindo tais palavras, Metáfora
desabou. Literalmente.