terça-feira, 29 de julho de 2025

Teia de equívocos

               


            Dizem que no início dos tempos não havia distância entre as palavras e as coisas. Cada objeto ou ser era o que significava e, reciprocamente, significava o que era.  A palavrafogo” queimava, a palavramedo” tremia, e um vocábulo comodor” parecia gemer.

            Falar disso é entrar no reino da animização, mas não podemos fugir da metáfora quando nos referimos às origens do homem e da linguagem. A própria ideia de que palavra e coisa se identificavam era uma interpretação mítica. Essa união original entre palavra e objeto, ainda que fundada no animismo, servia como um ponto de partida para compreender a complexa natureza da comunicação.

         Quem éramos antes de começarmos a falar? A Bíblia remonta o início de tudo à palavra: “No princípio era o Verbo”. Para as Escrituras, antes da palavra não havia o homem. A linguagem é que nos engendra. Lacan repetiria isso séculos depois ao afirmar que o homem não fala porque é; é, porque fala. Ou seja: a linguagem não constitui apenas uma ferramenta; ela é sobretudo um elemento fundador da nossa existência. Molda quem somos antes mesmo de qualquer ato de fala consciente.

            Especulações metafísicas à parte, sabemos hoje que é próprio das palavras representar o que não são. O pai da linguística moderna, Ferdinand de Saussure, descreve essa característica como arbitrariedade do signo. Os signos são arbitrários porque não existe relação necessária entre eles e os objetos ou seres que designam.

            O que nos faz chamar uma bola de “bola”? O artefato esférico de couro com que jogamos uma boa pelada bem podia se chamar “linguiça”. E diríamos com a maior naturalidade: “chute a linguiça”, “rebata a linguiça”, “encaixe a linguiça”. Essa arbitrariedade diminui no plano da realização artística, em que os signos são motivados devido à maior vinculação entre significado e significante, mas mesmo aí não se desfaz totalmente.

            Daí concluímos que, se o sentido das palavras é convencional, não existe uma essência da linguagem. Toda semântica, ou seja, toda relação entre significante e significado envolve uma mentira, um jogo em que a verdade se dissimula pela própria insuficiência do signo.

         Se acrescentamos a isso a natural má-fé do ser humano, que é um mestre na arte de disfarçar seus desejos e intenções, compreendemos o quanto estamos longe de nos entendermos. A comunicação entre os homens é uma teia de equívocos, em que cada um imagina dizer o que os outros supõem estar ouvindo.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A voz da casa

 

       Ao chegar em casa, ele notou que alguma coisa estava errada. A mulher e um dos filhos, em pé na sala, empunhavam cartazes. O do rapaz dizia: “Agora é tudo ou nada! Aumento na mesada!”. A esposa não fizera por menos: “Basta de ladainha. Homem também cozinha!”. Tudo rimado, para soar mais forte. 

        – Que é que está havendo?! Isso é brincadeira? 

        – Brincadeira coisa nenhuma! Nunca falamos tão sério! – gritou um dos adolescentes, que tinha o rosto pintado de verde e amarelo. 

        Pouco a pouco, ele foi se dando conta do que se passava. Sua família entrara na onda de insatisfação que atingia o país – motivada, em grande parte, pelo tal “politicamente correto”. Eis no que deu ficarem tanto tempo acessando o Facebook, o Twitter, ou vendo televisão. Respirou fundo, imaginando uma saída:

         – Calma, pessoal. Vamos conversar.

         – De conversa estamos cheios! – rebateu a garota, que tingira parte dos cabelos de azul e mandara colocar um piercing na orelha esquerda – para simbolizar as algemas em que se sentia aprisionada. Uma de suas reivindicações era viajar sozinha com o namorado, o que o pai terminantemente proibira.

          – Está bem, vou pensar no assunto. Mas vocês não acham que a gente devia primeiro consultar outros membros da família? Seus avós, por exemplo. Eles têm experiência. 

         – Um plebiscito familiar? – protestou o rapaz. – Nunca! Isso é uma manobra diversionista, um expediente protelatório para enfraquecer nossas reivindicações. O senhor tem que nos responder agora. 

         – Está bem, vamos nos sentar. E podem baixar os cartazes. Sobretudo você, Elvira, que tem câimbra quando fica muito tempo com os braços numa posição só; quem mandou deixar o Pilates?... Quero ouvir um por um.

         Quando o mais velho começou a falar, ouviu-se uma barulheira infernal no quarto do caçula. Correram para ver o que era. Lá se depararam com uma cena inédita naquele cenário até então doméstico e ordeiro: cama virada, roupas pelo chão, sapatos empilhados fora da sapateira, e no centro o menino segurando um cartaz onde se lia: “Fora Barrabás! Castigo nunca mais!”.

           Elvira ficou desesperada ao ver o quarto todo revirado. Quem iria arrumar?! Os mais velhos também não concordavam com aquilo. O pai aproveitou a deixa:

        – Acabou-se! Não vou mais ouvir nem atender ninguém.

         – O senhor não pode fazer isso, pai – implorou a menina. – A gente também não aprova o que ele fez. Ninguém é a favor de quebra-quebra. Quem por aqui patrocinou vandalismo já se deu muito mal...   

        – É verdade, pai. Foi um ato solitário. Zequinha é um vândalo, não faz parte do nosso movimento. Merecia até ser dispersado com gás lacrimogêneo – disse em tom de piada, que geralmente alivia a tensão comum nesse tipo de entrevero. 

        – Gás lacrimogêneo?! Ele vai chorar, sim, mas por outra razão.      

          Dito isso, foi ao quarto pegar o chinelo. Antes de ir se entender com o caçula, fez questão de dizer bem alto para que os outros ouvissem:

         – Por enquanto as manifestações estão suspensas. Até segunda ordem!

terça-feira, 8 de julho de 2025

Paixão de torcedor

       

       Um dos sinônimos de envelhecer é moderar-se. Por isso desconfie de velho com paixão. A velhice é por natureza resignada e compassiva, atributos esses incompatíveis com o fervor passional dirigido a pessoas, ideias ou times de futebol.

Para designar os verdadeiramente apaixonados por seus clubes usa-se um termo que é limítrofe da demência ou da paranoia – fanáticos. Com eles não tem acordo: ou o seu time ganha ou vence. O chamado torcedor não vai ao estádio por prazer; vai por compulsão, por cobrança. Quem observa o jogo como um evento lúdico ou artístico e está a fim de curtir o espetáculo, não é torcedor. A este só interessa a vitória.

Por que ele se chama torcedor, ora? Porque passa a maior parte do tempo torcendo as mãos e se torcendo por dentro, sofrendo como sofria José Lins ou Nelson Rodrigues – embora se comente com alguma maldade que a paixão de Nelson pelo Fluminense era mais um pretexto retórico para ele criar aquelas imagens fabulosas. Fico imaginando que belas tiradas ele produziria agora, vendo que seu time foi o único do País a chegar à semifinal do Mundial de Clubes. 

Dizem que o autor das Confissões era míope e nem conseguia ver o jogo. Já Zé Lins sofria de verdade pelo Flamengo, com suores, disritmia, pressão alta. Ninguém sabe até que ponto a angústia nos estádios concorreu para que ele um dia adoecesse, e depois morresse, do coração.

Hoje meu entusiasmo pelo futebol é moderado. Terei ficado velho? Por mais que tente não consigo “sofrer” pelo Botafogo, embora, quando ele está jogando, um discreto calor ainda me esquente os nervos. Mas nada que se compare à labareda de outros tempos, quando a visão de Garrincha entortando os adversários me fazia uivar como um sátiro no cio. 

De onde vem a obsessão do torcedor? Há, como se sabe, uma explicação psicológica para ela. O torcedor vai ao estádio para se compensar da vida, que lhe dá bem mais derrotas do que vitórias. Nos melhores momentos lhe concede alguns empates, alternando as amarguras com uns prazeres medíocres que às vezes se confundem com tédio.

Ele tem que ser paciente no dia a dia com as pequenas derrotas não apenas suas, mas de pais, esposa, filhos. Tem que ser complacente com os que ama, sob pena de magoá-los e perdê-los. O time de futebol existe, então, para satisfazer suas fantasias de triunfo. Para, em algum domínio da existência, fazê-lo vencedor. Daí a intransigência com que recusa, no campo, o placar adverso.

         Um dos efeitos da intolerância do torcedor é a chamada “dança dos técnicos”. O movimento característico dessa coreografia desesperada é o tropeço. Muitos despencam se os resultados com os times que dirigem não são satisfatórios, mesmo que as derrotas sucedam a expressivas vitórias. Para eles não há distância entre a glória e a danação – os dois extremos a que pode se resumir a vida.

A magia de um humor fino