Aproveito a releitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
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Crônicas, diálogos, frases originalmente publicados na coluna "Falou e Disse".
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Dizem que beber é uma arte – a não ser para os
alcoólatras, que bebem sem nenhuma preocupação estética. Tenho pouca
experiência no assunto, pois sempre bebi muito pouco, mas não há dúvida de que
o álcool bem administrado traz alguma forma de beleza à vida. Uma beleza não
meramente contemplativa, mas também funcional.
Uma de suas utilidades, bastante apregoada, é servir
de desinibidor para os tímidos. Outra é ajudar a esquecer os problemas de hoje –
de hoje, ressalve-se, pois em certas pessoas ele evoca reminiscências por vezes
traumáticas. Tenho um amigo que quando bebe odeia o pai, pois se lembra das
surras injustas que levou. Nesses momentos ele chora, como se ainda sentisse as
lapadas do cinturão, e só volta a se entender com o “velho” quando está de novo
sóbrio.
Seja qual for o mérito do álcool, uma coisa é certa: beber
é um aprendizado que pode começar com o que for, mas termina sempre no vinho
(mais especificamente, no vinho tinto). O vinho é a culminância, a redenção, a
prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um doloroso estágio
rumo à transcendência.
A cada momento da vida corresponde uma preferência
etílica. A adolescência é a fase da cerveja e dos runs baratos e fortes. Nessa
época ninguém se preocupa com a saúde nem com o decoro; isso, aliado à falta de
dinheiro, faz com que se aceite emborcar qualquer coisa. O importante é o efeito, a sensação,
independentemente do que possa ocorrer depois.
Lembro-me de que certa vez eu e um amigo, sem dinheiro
nem para esse cardápio trivial, compramos um litro de vodka cujo nome por si já
revolvia nosso estômago. Pagamos caro por essa ofensa a Baco. No dia seguinte,
o simples ato de abrir os olhos provocava uma fuzilaria que lacerava a nossa cabeça.
Na idade adulta também padecemos de ressaca, mas não
por escassez de dinheiro ou inexperiência. As preferências nessa idade são
outras e geralmente compatíveis com o bolso. Esse é o momento em que entram em
cena os destilados, que são nobres e sutis mas não se prestam à celebração da
vida.
É preciso chegar ao vinho para perceber que o ato de
beber tem um sentido. E que esse sentido, tal como nas cerimônias religiosas,
manifesta-se por meio de um ritual.
Depois que alguém escolhe o vinho e se fixa nele, não
há mais como descer nem como subir. A descida (cerveja, cachaça, vodka, rum)
seria um retrocesso rumo à barbárie; a subida, bem, esta só será possível
quando a alma, enfim liberta dos grilhões terrenos, adentrar os páramos da Eternidade.
Lá chegando, não será difícil encontrar Deus diante de uma garrafa de vinho quase tão velho quanto Ele. Um vinho talvez feito com parreiras do Éden, para festejar num momento de reconciliação com os homens as maravilhas da criação. E vai dar para ouvir ao longe, entre ardores e clamores, o Diabo tomando absinto.
(Em "A idade do bobo")
O mundo viu o tapa
que a primeira-dama francesa deu no marido e tem especulado sobre a razão. O
fato, como se sabe, ocorreu quando o casal ia descer do avião no aeroporto do
Vietnã.
Tenho uma tese
para desfazer a dúvida; o motivo plausível para o destempero da mulher deve ter
sido outro “avião”, este metafórico e representado por alguma aeromoça para
quem Macron teria lançado uns olhos cobiçosos.
Ressentida,
Brigitte (que está longe de ser Bardot) não se conteve e partiu para a
agressão, que se prolongou no gesto de não dar o braço ao marido quando desciam
da aeronave.
Macron também não
deu o braço… mas a torcer, e minimizou o episódio. Por meio do seu gabinete,
afirmou depois que se tratava de uma “briguinha” de casal (fico imaginando o
que ocorre quando é briga mesmo!).
O gabinete informou ainda que a imagem
fora manipulada por IA (hoje tudo é ela!) para parecer mais violenta do que
foi. Atribuiu a repercussão negativa do evento “à mídia pró-Russia”.
Não há dúvida de o
episódio é bom para o presidente russo, que tem em Macron um dos ferrenhos
opositores à invasão do seu país à Ucrânia. Apanhar publicamente da mulher tira
um pouco do brio do presidente francês e, por oposição, realça o machismo
associado ao líder soviético.
Mas, enfim, tudo se supera, e não é difícil que, numa próxima viagem, o casal desça do avião sorrindo e de mãos dadas. Por via das dúvidas, a estar correta a minha tese, é prudente que o chefe da comitiva presidencial fique atento ao glamour das comissárias de bordo. E que, se for o caso, a primeira-dama se contente com uns beliscões.
Desligo a TV como quem fecha um livro de histórias. Acabou-se, a princesa morreu. E a tela escurece engolindo o carro florido, deslocando-se lentamente como um jardim móvel. No centro desse canteiro, acompanhada por milhões de olhos perplexos, jaz fenecida a rosa da Inglaterra. Ela eclodiu, como é próprio das rosas, deu o seu breve recado ao mundo e logo, logo se desfez.
Esse foi um conto às avessas,
rigorosamente modelado pela vida real: o príncipe e a princesa não terminaram
juntos (em verdade, já se tinham separado havia muito tempo) e nem sequer houve
um beijo de despedida. Foi sobretudo a história de um tempo em que reis,
rainhas, príncipes e princesas já não sabem como representar o seu papel. Ou
talvez já não tenham, mesmo, nenhum papel a desempenhar.
A moça era branca, loura e parecia
uma princesa de verdade – quero dizer: uma genuína princesa de mentira. Pois a
autenticidade das princesas se pauta em referências imaginárias. Elas são tanto
mais verdadeiras quanto mais correspondem à imagem dos nossos sonhos. Com a sua
timidez charmosa e o seu ar grave e medroso, Diana evocava uma dessas figuras
que maravilharam a nossa infância. Tinha um ar maternal e preceptor, um ar de
quem nasceu para guiar com ternura. Do seu todo frágil, emanava uma espécie de
fortaleza compassiva.
Além do mais, parecia ter feito o
percurso oposto ao de Cinderela. Pois a heroína da história era só, e
rejeitada, antes de se casar com o príncipe. Com Diana aconteceu o contrário:
depois de se casar com Charles é que se sentiu rejeitada e traída. Pode-se
dizer que a corte, com seu fausto frio e suas megeras centenárias, foi
verdadeiramente o seu borralho. E se ela recebeu vinte e seis milhões de
dólares pelo divórcio, é certo que não saiu do casamento menos amargurada e
menos só.
O mundo todo, ao longo de uma década
e meia, acompanhou o seu drama. Para enfrentar a realeza, a moça elegeu um
aliado imponderável, múltiplo e exigente: a opinião pública. Seu confessionário
e seu divã eram as páginas dos jornais e as câmeras de televisão. Daí que
ficamos conhecendo em detalhes os lances da sua vida. Primeiro foi a
indiferença e a traição de Charles, depois vieram o divórcio e as tentativas de
um novo relacionamento – passando pela anorexia e pela bulimia.
Estarrecido, o mundo percebeu um dia
que a princesa não tinha fome. Ou, se comia, lançava tudo fora, e definhava. O
mundo percebeu essas reações e se compadeceu; a falta de fome e a rejeição ao
alimento eram efeito da tristeza e da solidão. Então perdoou, com fascinada
cumplicidade, a confissão de adultério. Poucas vezes um adultério foi tão
compreendido e, intimamente, tão festejado. O marido e a família do marido
mereciam. Diana não fizera mais do que dar o troco.
Ela queria apenas ser rainha no
coração do povo, mas não escapava também de ser outra coisa: mãe do possível
futuro rei da Inglaterra. O seu grande desafio era harmonizar essa condição com
a liberdade mundana, que aparentemente ganhou ao se separar do príncipe. Por
mais que não quisesse, no entanto, a sombra indireta do trono a detinha,
limitava-a, pendia sobre a sua cabeça como uma guilhotina azul. Penso que essa
ambiguidade a matou. Diana não era uma mulher livre, e quis se comportar como
tal. Enquanto estivesse presa ao trono pela expectativa de ser mãe de um futuro
rei, jamais poderia namorar e ter casos como uma pessoa qualquer. E morreu
fugindo da fama. Ou de uma possível má fama.
Ninguém defende, é claro, a fúria
daqueles paparazzi. Mas eles foram meros instrumentos, mediadores
inescrupulosos entre a princesa e o seu público, que tanto a compreendia quanto
a devorava. E se Diana morreu da popularidade (ou com medo dela), se foi consumida
pela própria fama, resta saber que destino terá o seu exemplo ou, mais
propriamente, a sua imagem. Como ela será trabalhada, isso é um mistério. O
certo é que a realeza a teme. Por isso não permitiu que lhe vissem a derradeira
face. Nada propiciaria mais a divinização, ou o delírio fanático, do que o
rosto exangue da morta.
Alguém já se referiu à “tirania da moda”, e a expressão não poderia ser mais apropriada. A moda assemelha-se às doenças – pega. Ninguém sabe que moda vai pegar, ou de que vai adoecer. Instalado o processo patológico, no entanto, desfaz-se toda ideia de gratuidade. E a gente trata de se curar, efetivamente, do que mal que está sofrendo. No imenso mar da perplexidade moderna, a moda é a marola que se encrespa mais pelo brilho, mais para se deixar ver ao enorme sol da vaidade, e depois murcha na anônima superfície do tempo. O que é a moda, enfim, senão a eternidade do efêmero?
Mas o curioso é que a moda invadiu
territórios onde antes se percebia alguma inflexibilidade, e um louvável rigor.
Certos hábitos ou certas práticas – como o ritual da sedução amorosa, os
vestidos das mulheres ou as gravatas dos homens – podem e devem variar. É da
sua natureza substituir-se, alternar-se conforme o gosto das pessoas e o fluir
das estações. Já outros tipos de prática ou de mercadoria, era bom que
permanecessem infensos a qualquer mudança. Que ficassem iguais a eles mesmos,
pois dessa fidelidade à tradição é que decorre a sua eficácia, o seu poder de
influir nas pessoas.
Tomemos como exemplo a medicina. Ela
também apresenta os seus modismos, e nada tem oscilado tanto, nos últimos
tempos, quanto os procedimentos terapêuticos. Cada época tem uma espécie de
matriz etiológica oficial, uma “causa maior” que tudo explica.
Há cerca de dez anos, por exemplo, tudo
era psicossomático. Uma gripe, uma diarreia ou mesmo um câncer eram o resultado
de complexas interações psicológicas e físicas. E não se adoecia do corpo,
adoecia-se basicamente da alma. Mas esse tempo passou, leitor perplexo, e de
nada adianta continuares indo ao analista. Porque hoje, conforme atroam os
meios de comunicação, ressoando a verdade dos laboratórios – hoje tudo é
genético. O teu infarto ou a tua psicose maníaco-depressiva estão programados,
inexoravelmente inscritos em teus genes, e nada podes fazer para escapar de ti
mesmo. Diariamente, os cientistas descobrem um novo gene que comanda alguma
coisa. E os cromossomos, ficamos sabendo com estupor, cada vez mais dispõem
sobre o nosso destino.
Para teres uma ideia desse avanço,
lembro-te que se descobriu, faz alguns dias, o gen que determina a opção
político-ideológica das pessoas. Diante disso, ser direita ou esquerda, petista
ou neoliberal, não é questão de consciência ou de arbítrio – é mero efeito de
cartografia genética. Daqui a pouco eles vão isolar o gen da religiosidade, bem
como o das virtudes (ou defeitos) morais.
Tais possibilidades, obviamente, nos
angustiam. Se tudo é genético, como fica o problema da consciência e do
livre-arbítrio? Então vivemos apenas para realizar um percurso predeterminado,
submetidos a um código transcendente aos nossos sonhos, projetos e intenções? E
as nossas escolhas, e a nossa liberdade? Calma, leitor. Antes de tudo, reflete
que essa tirania da genética também é um modismo. Daqui a algum tempo, vai-se
descobrir um “princípio ativo” subjacente ao código genético e capaz de
modificá-lo em função das nossas disposições anímicas. Feita essa descoberta,
tudo voltará a depender das vicissitudes do nosso psiquismo. Estaremos, pois,
de volta à primazia do psicossomático.
Além do mais, mesmo se considerando que
os gens programam os nossos sentimentos e dispõem sobre as nossas ações, quem
disse que determinismo é destino? Às vezes levamos a vida a lutar contra os
nossos determinismos, e fazemos dessa luta inglória, mas nem sempre vã, o nosso
destino. Diferentemente do determinismo, que representa um conjunto de fatores
que vêm de fora, o destino sempre envolve o indivíduo. Sempre envolve o “eu”. Digamos
que o destino reflete a maneira aquiescente, ou contrastante, segundo a qual
reagimos ao nosso determinismo.