sábado, 21 de junho de 2025

Conversa com o "Bruxo"


               Aproveito a releitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para trocar um dedo de prosa com o seu autor. “Trocarnão é bem o termo, pois quem falou foi Machado. Nossa conversa, além de instrutiva, serviu-me para matar o tédio de um dia sem graça. Espero que tenha para o leitor a mesma serventia:

– O senhor é um autor melancólico. Por que se liga tanto no passado?

– O menos mau é recordar. Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras.

Em sua obra é comum o tema da loucura. Há alguma justificativa para isso?

        – O mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cérebro, que outra coisa é senão a afirmação desdenhosa da nossa liberdade espiritual?

Por que escolheu ummorto para ser o narrador de “Memórias Póstumas...”?

– A franqueza é a primeira virtude de um defunto. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte.

– De fato, um morto não se importa com o julgamento alheio...

Nãonada tão incomensurável como o desdém dos finados.

          – Por que é tão difícil a franqueza nas relações sociais?

-- A veracidade absoluta é incompatível com um estado social adiantado.

Outro tema recorrente em sua obra é a ambiguidade moral do ser humano. Por quê?

          – O vício é muitas vezes o estrume da virtude.

Até que ponto essa ambiguidade é determinada por fatores externos?

Não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.

Apesar disso, transparece na sua obra a ideia de que o homem é fundamentalmente egoísta.

– O nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão.

Que conselho o senhor daria a um jovem de hoje?

          – Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio a fim de lastimar o curso incessante das águas.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A lição de Vieira


            “Sermões escolhidos”, do Padre Antônio Vieira, é uma das obras frequentes no vestibular. Nela os alunos têm a possibilidade de conhecer nosso maior representante do conceptismo barroco.

         A vertente conceptista opunha-se à cultista, comumente exemplificada em poemas de Gregório de Matos. No conceptismo privilegiam-se as ideias, os conceitos, os jogos sutis do pensamentoenquanto que no cultismo se dá ênfase aos torneios formais (excesso de antíteses, apelo aos contrastes de cor, criação de metáforas raras etc.).

         O Barroco oscila entre essas duas tendências e muitas vezes as associa numa mesma composição. É muito difícil, nessa escola, isolar conceito de forma. A própria obra de Vieira, que é considerado um barroco clássico, demonstra isso.

         Grosso modo o Barroco se caracteriza por uma hipertrofia da forma, um excesso que visa a compensar o vazio de sentido decorrente de uma profunda crise espiritual. Vieira escapa ao desencanto porque tem os pés, ou melhor, o espírito plantado no solo do cristianismo. Seus sermões são comentários de passagens bíblicas, que ele amplifica e interpreta com engenho e paixão.

         Os “Sermõessão sobretudo um exemplo da articulação entre literatura, religiosidade e participação político-social. Vieira foi um militante que elegeu a Escravidão como o seu maior inimigo. Por defender os índios, que então se escravizavam e dizimavam aos montes, brigou com senhores de terra e com representantes da ala conservadora da Igreja. E por defender os cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo), chegou a ser preso pela Inquisição.

         O jesuíta passou à história literária como um clássico da língua. Seus sermões equilibram a “agudeza” do conceito, cara ao estilo barroco, com a clareza necessária à persuasão. Como convencer alguém das verdades cristãs sendo obscuro e cerebrino? Ou se comprazendo, como faziam os cultistas, num jogo por vezes gratuito de antíteses e paradoxos?

         Essa mania dos contrastes, ele critica numa passagem do seu famosoSermão da Sexagésima”: “Se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?”

         Depois de censurar os pregadores que “fazem o sermão em xadrez de palavras”, Vieira dá esta preciosa lição de como escrever: “O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso, Cristo comparou o pregar ao semear. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte.”

Machado cronista

  


           Fala-se muito do Machado dos romances e dos contos, e pouco se comenta o Machado de Assis cronista. Mas o velho Bruxo também foi bom nesse gênero. Uma boa oportunidade de constatar isso é lerFuga do hospício”. 

             Em relação ao romance, ao conto e à poesia, a crônica é considerada um gênero menor. Geralmente ela se atrela ao jornal, o que tende a lhe conferir um caráter efêmero. O cronista escreve para o hoje, não para a posteridade. Mas isso é verdade até certo ponto, pois não se aplica aos grandes estilistas. É basicamente o estilo que salva a crônica do efêmero, e disso há muitos exemplos em nossa literatura. Entre eles destaco Rubem Braga, Nelson Rodrigues e o próprio Machado.

         A crônica mescla seriedade e frivolidade, é uma forma de associar o útil ao fútil – caracterização, por sinal, que o próprio Machado criou. O cronista não tempo nem espaço para esmiuçar a alma humana, como faz o autor de ficção. Seu território são as emoções de superfície, produzidas pelo impacto dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, ele usa essa aparente trivialidade como ponto de partida para tecer comentários sobre a natureza humana, a sociedade e a política da sua época. Em Machado, por exemplo, uma simples fofoca de sociedade pode ensejar uma reflexão sobre a vaidade ou a hipocrisia. Não raro ele responde aos fatos com ironia e humor, domínios em que é reconhecidamente mestre.  

            A fuga dos habitantes de um hospício, por exemplo, lhe serve de pretexto para a reflexão sobre a frágil fronteira entre sanidade e loucura, tema que enfocou genialmente na novela “O alienista”. “Uma vez que se foge do hospício de alienados (e não acuso por isso a administração), onde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo?”. O cronista na sagaz estratégia que os loucos empregaram para a fuga uma forma de inteligência que “diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo”.

            Um dos temas recorrentes no livro é o impacto dos bonds elétricos na vida das pessoas. Eles vieram aposentar as carruagens puxadas a burros mas, como tudo que representa progresso, criaram novos contratempos. Isso leva o cronista a elaborar um decálogo que disciplina o comportamento dos usuários no novo veículo.

            O Artigo I, por exemplo, dispõe sobre os encatarroados; eles podem entrar nos bondscom a condição de não tossirem mais de três vezes em uma hora, e no caso de pigarro, quatro”. O Artigo VI trata da leitura dos jornais: “Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus.”

         Por essas pequenas amostras, vê-se que o Machado cronista de alguma forma prolonga o dos contos e dos romances; as crônicas de “Fuga do hospício” constituem pequenos recortes sobre a vaidade e o ridículo humano. A diferença é que, nelas, a pena da galhofa prevalece sobre a tinta da melancolia. É preciso, afinal, alternar com o riso a sombria seriedade que os compromissos do dia a dia nos infligem.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Divino vinho



Dizem que beber é uma arte – a não ser para os alcoólatras, que bebem sem nenhuma preocupação estética. Tenho pouca experiência no assunto, pois sempre bebi muito pouco, mas não há dúvida de que o álcool bem administrado traz alguma forma de beleza à vida. Uma beleza não meramente contemplativa, mas também funcional.

Uma de suas utilidades, bastante apregoada, é servir de desinibidor para os tímidos. Outra é ajudar a esquecer os problemas de hoje – de hoje, ressalve-se, pois em certas pessoas ele evoca reminiscências por vezes traumáticas. Tenho um amigo que quando bebe odeia o pai, pois se lembra das surras injustas que levou. Nesses momentos ele chora, como se ainda sentisse as lapadas do cinturão, e só volta a se entender com o “velho” quando está de novo sóbrio.

Seja qual for o mérito do álcool, uma coisa é certa: beber é um aprendizado que pode começar com o que for, mas termina sempre no vinho (mais especificamente, no vinho tinto). O vinho é a culminância, a redenção, a prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um doloroso estágio rumo à transcendência.

A cada momento da vida corresponde uma preferência etílica. A adolescência é a fase da cerveja e dos runs baratos e fortes. Nessa época ninguém se preocupa com a saúde nem com o decoro; isso, aliado à falta de dinheiro, faz com que se aceite emborcar qualquer coisa.  O importante é o efeito, a sensação, independentemente do que possa ocorrer depois. 

Lembro-me de que certa vez eu e um amigo, sem dinheiro nem para esse cardápio trivial, compramos um litro de vodka cujo nome por si já revolvia nosso estômago. Pagamos caro por essa ofensa a Baco. No dia seguinte, o simples ato de abrir os olhos provocava uma fuzilaria que lacerava a nossa cabeça.

Na idade adulta também padecemos de ressaca, mas não por escassez de dinheiro ou inexperiência. As preferências nessa idade são outras e geralmente compatíveis com o bolso. Esse é o momento em que entram em cena os destilados, que são nobres e sutis mas não se prestam à celebração da vida.

É preciso chegar ao vinho para perceber que o ato de beber tem um sentido. E que esse sentido, tal como nas cerimônias religiosas, manifesta-se por meio de um ritual.

Depois que alguém escolhe o vinho e se fixa nele, não há mais como descer nem como subir. A descida (cerveja, cachaça, vodka, rum) seria um retrocesso rumo à barbárie; a subida, bem, esta só será possível quando a alma, enfim liberta dos grilhões terrenos, adentrar os páramos da Eternidade.

         Lá chegando, não será difícil encontrar Deus diante de uma garrafa de vinho quase tão velho quanto Ele. Um vinho talvez feito com parreiras do Éden, para festejar num momento de reconciliação com os homens as maravilhas da criação. E vai dar para ouvir ao longe, entre ardores e clamores, o Diabo tomando absinto. 

         (Em "A idade do bobo")

Cena de "avião"

O mundo viu o tapa que a primeira-dama francesa deu no marido e tem especulado sobre a razão. O fato, como se sabe, ocorreu quando o casal ia descer do avião no aeroporto do Vietnã.

Tenho uma tese para desfazer a dúvida; o motivo plausível para o destempero da mulher deve ter sido outro “avião”, este metafórico e representado por alguma aeromoça para quem Macron teria lançado uns olhos cobiçosos.

Ressentida, Brigitte (que está longe de ser Bardot) não se conteve e partiu para a agressão, que se prolongou no gesto de não dar o braço ao marido quando desciam da aeronave. 

Macron também não deu o braço… mas a torcer, e minimizou o episódio. Por meio do seu gabinete, afirmou depois que se tratava de uma “briguinha” de casal (fico imaginando o que ocorre quando é briga mesmo!). 

O gabinete informou ainda que a imagem fora manipulada por IA (hoje tudo é ela!) para parecer mais violenta do que foi. Atribuiu a repercussão negativa do evento “à mídia pró-Russia”. 

Não há dúvida de o episódio é bom para o presidente russo, que tem em Macron um dos ferrenhos opositores à invasão do seu país à Ucrânia. Apanhar publicamente da mulher tira um pouco do brio do presidente francês e, por oposição, realça o machismo associado ao líder soviético. 

        Mas, enfim, tudo se supera, e não é difícil que, numa próxima viagem, o casal desça do avião sorrindo e de mãos dadas. Por via das dúvidas, a estar correta a minha tese, é prudente que o chefe da comitiva presidencial fique atento ao glamour das comissárias de bordo. E que, se for o caso, a primeira-dama se contente com uns beliscões.           

           

quinta-feira, 22 de maio de 2025

A rosa fenecida


            Desligo a TV como quem fecha um livro de histórias. Acabou-se, a princesa morreu. E a tela escurece engolindo o carro florido, deslocando-se lentamente como um jardim móvel. No centro desse canteiro, acompanhada por milhões de olhos perplexos, jaz fenecida a rosa da Inglaterra. Ela eclodiu, como é próprio das rosas, deu o seu breve recado ao mundo e logo, logo se desfez. 

Esse foi um conto às avessas, rigorosamente modelado pela vida real: o príncipe e a princesa não terminaram juntos (em verdade, já se tinham separado havia muito tempo) e nem sequer houve um beijo de despedida. Foi sobretudo a história de um tempo em que reis, rainhas, príncipes e princesas já não sabem como representar o seu papel. Ou talvez já não tenham, mesmo, nenhum papel a desempenhar.    

A moça era branca, loura e parecia uma princesa de verdade – quero dizer: uma genuína princesa de mentira. Pois a autenticidade das princesas se pauta em referências imaginárias. Elas são tanto mais verdadeiras quanto mais correspondem à imagem dos nossos sonhos. Com a sua timidez charmosa e o seu ar grave e medroso, Diana evocava uma dessas figuras que maravilharam a nossa infância. Tinha um ar maternal e preceptor, um ar de quem nasceu para guiar com ternura. Do seu todo frágil, emanava uma espécie de fortaleza compassiva.

Além do mais, parecia ter feito o percurso oposto ao de Cinderela. Pois a heroína da história era só, e rejeitada, antes de se casar com o príncipe. Com Diana aconteceu o contrário: depois de se casar com Charles é que se sentiu rejeitada e traída. Pode-se dizer que a corte, com seu fausto frio e suas megeras centenárias, foi verdadeiramente o seu borralho. E se ela recebeu vinte e seis milhões de dólares pelo divórcio, é certo que não saiu do casamento menos amargurada e menos só. 

O mundo todo, ao longo de uma década e meia, acompanhou o seu drama. Para enfrentar a realeza, a moça elegeu um aliado imponderável, múltiplo e exigente: a opinião pública. Seu confessionário e seu divã eram as páginas dos jornais e as câmeras de televisão. Daí que ficamos conhecendo em detalhes os lances da sua vida. Primeiro foi a indiferença e a traição de Charles, depois vieram o divórcio e as tentativas de um novo relacionamento – passando pela anorexia e pela bulimia. 

Estarrecido, o mundo percebeu um dia que a princesa não tinha fome. Ou, se comia, lançava tudo fora, e definhava. O mundo percebeu essas reações e se compadeceu; a falta de fome e a rejeição ao alimento eram efeito da tristeza e da solidão. Então perdoou, com fascinada cumplicidade, a confissão de adultério. Poucas vezes um adultério foi tão compreendido e, intimamente, tão festejado. O marido e a família do marido mereciam. Diana não fizera mais do que dar o troco.

Ela queria apenas ser rainha no coração do povo, mas não escapava também de ser outra coisa: mãe do possível futuro rei da Inglaterra. O seu grande desafio era harmonizar essa condição com a liberdade mundana, que aparentemente ganhou ao se separar do príncipe. Por mais que não quisesse, no entanto, a sombra indireta do trono a detinha, limitava-a, pendia sobre a sua cabeça como uma guilhotina azul. Penso que essa ambiguidade a matou. Diana não era uma mulher livre, e quis se comportar como tal. Enquanto estivesse presa ao trono pela expectativa de ser mãe de um futuro rei, jamais poderia namorar e ter casos como uma pessoa qualquer. E morreu fugindo da fama. Ou de uma possível má fama. 

Ninguém defende, é claro, a fúria daqueles paparazzi. Mas eles foram meros instrumentos, mediadores inescrupulosos entre a princesa e o seu público, que tanto a compreendia quanto a devorava. E se Diana morreu da popularidade (ou com medo dela), se foi consumida pela própria fama, resta saber que destino terá o seu exemplo ou, mais propriamente, a sua imagem. Como ela será trabalhada, isso é um mistério. O certo é que a realeza a teme. Por isso não permitiu que lhe vissem a derradeira face. Nada propiciaria mais a divinização, ou o delírio fanático, do que o rosto exangue da morta.  

           Preferiram enterrá-la muda. Sem rosto e sem auréola.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Modismo e destino

                

              Alguém já se referiu à “tirania da moda”, e a expressão não poderia ser mais apropriada. A moda assemelha-se às doenças – pega. Ninguém sabe que moda vai pegar, ou de que vai adoecer. Instalado o processo patológico, no entanto, desfaz-se toda ideia de gratuidade. E a gente trata de se curar, efetivamente, do que mal que está sofrendo. No imenso mar da perplexidade moderna, a moda é a marola que se encrespa mais pelo brilho, mais para se deixar ver ao enorme sol da vaidade, e depois murcha na anônima superfície do tempo. O que é a moda, enfim, senão a eternidade do efêmero?

         Mas o curioso é que a moda invadiu territórios onde antes se percebia alguma inflexibilidade, e um louvável rigor. Certos hábitos ou certas práticas – como o ritual da sedução amorosa, os vestidos das mulheres ou as gravatas dos homens – podem e devem variar. É da sua natureza substituir-se, alternar-se conforme o gosto das pessoas e o fluir das estações. Já outros tipos de prática ou de mercadoria, era bom que permanecessem infensos a qualquer mudança. Que ficassem iguais a eles mesmos, pois dessa fidelidade à tradição é que decorre a sua eficácia, o seu poder de influir nas pessoas.

         Tomemos como exemplo a medicina. Ela também apresenta os seus modismos, e nada tem oscilado tanto, nos últimos tempos, quanto os procedimentos terapêuticos. Cada época tem uma espécie de matriz etiológica oficial, uma “causa maior” que tudo explica.

         Há cerca de dez anos, por exemplo, tudo era psicossomático. Uma gripe, uma diarreia ou mesmo um câncer eram o resultado de complexas interações psicológicas e físicas. E não se adoecia do corpo, adoecia-se basicamente da alma. Mas esse tempo passou, leitor perplexo, e de nada adianta continuares indo ao analista. Porque hoje, conforme atroam os meios de comunicação, ressoando a verdade dos laboratórios – hoje tudo é genético. O teu infarto ou a tua psicose maníaco-depressiva estão programados, inexoravelmente inscritos em teus genes, e nada podes fazer para escapar de ti mesmo. Diariamente, os cientistas descobrem um novo gene que comanda alguma coisa. E os cromossomos, ficamos sabendo com estupor, cada vez mais dispõem sobre o nosso destino.

         Para teres uma ideia desse avanço, lembro-te que se descobriu, faz alguns dias, o gen que determina a opção político-ideológica das pessoas. Diante disso, ser direita ou esquerda, petista ou neoliberal, não é questão de consciência ou de arbítrio – é mero efeito de cartografia genética. Daqui a pouco eles vão isolar o gen da religiosidade, bem como o das virtudes (ou defeitos) morais.

         Tais possibilidades, obviamente, nos angustiam. Se tudo é genético, como fica o problema da consciência e do livre-arbítrio? Então vivemos apenas para realizar um percurso predeterminado, submetidos a um código transcendente aos nossos sonhos, projetos e intenções? E as nossas escolhas, e a nossa liberdade? Calma, leitor. Antes de tudo, reflete que essa tirania da genética também é um modismo. Daqui a algum tempo, vai-se descobrir um “princípio ativo” subjacente ao código genético e capaz de modificá-lo em função das nossas disposições anímicas. Feita essa descoberta, tudo voltará a depender das vicissitudes do nosso psiquismo. Estaremos, pois, de volta à primazia do psicossomático.

      Além do mais, mesmo se considerando que os gens programam os nossos sentimentos e dispõem sobre as nossas ações, quem disse que determinismo é destino? Às vezes levamos a vida a lutar contra os nossos determinismos, e fazemos dessa luta inglória, mas nem sempre vã, o nosso destino. Diferentemente do determinismo, que representa um conjunto de fatores que vêm de fora, o destino sempre envolve o indivíduo. Sempre envolve o “eu”. Digamos que o destino reflete a maneira aquiescente, ou contrastante, segundo a qual reagimos ao nosso determinismo.

         E se falo dessas coisas, leitor paciente, é que esse tipo de assunto – ao contrário das gravatas dos homens ou dos vestidos das mulheres – nunca sai da moda.

Conversa com o "Bruxo"