sábado, 2 de março de 2024

Dizer pelo excesso

 

Em recente crônica publicada na “Folha de São Paulo”, Sérgio Rodrigues comenta uma frase atribuída a Drummond segundo a qual “escrever é cortar”. O cronista observa que, de tão repetida, a frase se tornou um lugar-comum. Ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato de que é preciso relativizar esse conceito; nem sempre o corte serve às intenções do autor.    

Não há dúvida de que a verborragia é um mal de que o escritor, ou redator, deve se livrar. Há nela uma espécie de automatismo que debilita a expressão. A marca do bom estilo é dizer mais com menos, e não menos com mais. Palavras “sobrando” mascaram a essência do que se quer exprimir e fatigam o leitor.   

É conhecida a passagem de Graciliano para ilustrar isso. Ele compara o exercício da escrita ao de lavar roupas. Somente depois de bem torcidas é que elas podem ir para o varal, do contrário a água acumulada impede que sequem e revelem a sua textura. Desidratar o texto, livrando-o do excesso, é também uma forma de fazer as palavras se darem a “ver”. Ou melhor, é um meio de “dizer” (um verbo caro ao autor de “Vidas Secas”) em vez de apenas encher papel.

Em princípio é assim mesmo, e tal ensinamento os professores de redação costumam passar a seus alunos. Nos exercícios de refeitura, o que se recomenda é mudar e cortar palavras. Mudar para que se chegue à adequação semântica. Cortar para deixar emergir o essencial da informação.

Deve-se no entanto ponderar que nem todo escritor é um partidário da concisão. Há deles que têm o exagero como um traço de estilo. Nesse caso a verbosidade é um ingrediente que “funciona”, promove um efeito de sentido que lhes define a persona literária. Para esses escritores o corte deixa de ser limpeza, remoção de excrescências, e se transforma em amputação.  

Augusto dos Anjos é um bom exemplo disso na poesia (na prosa, ele peca pelo rebuscamento e a falta de naturalidade). Seu estilo poético “carregado” reflete o peso que lhe ensombra o espírito melancólico. Há nele um “excesso de representação”, um dizer a mais aparentado ao Barroco. Uma das marcas desse excesso é a abundância de adjetivos, que vai de encontro ao que preceituam os defensores do estilo conciso.

            São comuns em “Eu e outras poesias” locuções como “largos fios grossos”, “aberratórias abstrações abstrusas”, “hialina lâmpada oca”, “bastos tojos acres”, “abstrusa ciência fria”, “absconsa tábua rasa”, “arimânico gênio destrutivo”, “escaveirado corrupião idiota”, “ríspidas mágoas estranguladoras” e outras em que dois adjetivos modificam um substantivo. Muitas vezes o atributo posposto apenas reitera o sentido do que vem anteposto ao substantivo. Ou seja: não representa um acréscimo de informação, mas tão somente uma reiteração expressiva. Também serve, é claro, ao preenchimento métrico do verso. 

         O excesso de adjetivos é apenas um traço do estilo do paraibano que caracteriza o excesso acima referido. Há muitos outros, que estudamos com detalhes em nossa tese “O evangelho da podridão”. Eles confirmam o quanto é relativa a máxima de que “escrever é cortar”.

          Certamente ela cabe melhor no domínio estritamente redacional, em que se tende ao “grau zero da escritura”. Ou seja, em que se busca a transparência das ideias e o rigor das informações, numa escrita tanto quanto possível destituída de recursos literários. No domínio da criação artística, é preciso ser prudente ao “escoimar” o texto do que nele aparentemente sobra. Muitas vezes está nas sobras, nas palavras a mais, o essencial do que o autor quer dizer.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Gurus filosóficos

 

O homem é um animal filosófico. A opção pelo misticismo não se estende a todos, pois exige , mas a filosofia é inevitável em nossa relação com o mundo. Somos seres pensantes, e pensar é filosofar.

Apesar disso, tentados por soluções fáceis que nos prometem uma imaginária felicidade, vivemos afastados da filosofia. Temos medo dela, pois o roteiro dos filósofos exige de nós reflexão, disposição transformadora, avaliação contínua do nosso comportamento.  

Os filósofos propõem uma meta aparentemente inatingível: a felicidade sem ilusões. Será que isso existe? É possível ao homem ser feliz no cru, isto é, defrontando-se com as dolorosas evidências que o cercam – doenças, desigualdade social, perspectiva da morte?

Filósofos como Michel Onfray e Lou Marinoff dizem que sim. Para eles é preciso que o homem deixe de lado os mitos, alimentadores da crença religiosa, e elejam a razão como guia.

Mais Platão e menos Prozac – propõe Marinoff, que publicou um livro com esse título e se rebela contra a ideia de que os antidepressivos podem nos trazer alívio existencial. O Prozac apareceu como uma espécie de pílula da felicidade. Chegou a estar na moda até que se descobriram seus perigosos efeitos colaterais, inclusive o de induzir ao suicídio.

Até hoje não consta que alguém tenha se matado depois de ler Platão. Morreram alguns adeptos do tal amor platônico, no século XIX, mas isso ocorria mais por deformação romântica do que pelo idealismo dos sentimentos.

Onfray é mais radical. Com um rigor bem francês, prega a abolição de todas as ilusões religiosas: “ o homem ateu pode ser livre, porque Deus é incompatível com a liberdade humana”. Assim como Marinoff, ele procura estender a filosofia ao grande público e, de certa forma, ocupar o espaço hoje preenchido pelos gurus da autoajuda.

Se o projeto deles der certo, teremos daqui a algum tempo os filósofos fazendo concorrência aos psicanalistas e aos padres. Será mais uma alternativa a que entregar nosso inquieto espírito.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Como desce a cerveja?

 

Nem todos ainda conseguiram engolir o slogan da Skol. O uso do masculino em “A cerveja que desce redondo” continua entrando quadrado na cachola até de estudiosos da língua.  

Um deles publicou há algum tempo um artigo defendendo que o adjetivo se flexione no feminino. Acha que “redondo” não se refere ao verbo “descer”, mas sim ao estado do líquido. Ele justifica seu ponto de vista com o argumento de que “a redondeza é a da cerveja que, líquida, se adapta ao recipiente que a contém e acompanha a anatomia circular da garganta”.

A preferência pelo masculino envolve os níveis morfológico e semântico da língua. Do ponto de vista morfológico, refere-se à possibilidade de se transformar adjetivo em advérbio. Esse tipo de mudança é comum; constitui um caso de derivação imprópria, ou conversão.  

Por exemplo: se digo “Ele trabalha sério”, o termosério” pode não traduzir o estado da pessoa, e sim o modo como ela trabalha (seriamente). Nesse casosério” é um advérbio, por isso não concorda com o sujeito.

A fragilidade da interpretação do estudioso está no aspecto semântico; decorre de ele dar um sentido estritamente físico ao termoredondo”. Se a redondeza se refere ao estado da cerveja, que se adapta ao recipiente que a contém, tem-se a seguinte situação: caso o recipiente seja quadrado, a cerveja também adquirirá essa configuração.

Além disso, a ingestão de um líquido não se limita ao “espaço circular da garganta”, ocasião em que, segundo o autor, ele se arredonda. Transposto esse limite, o líquido assumirá formas variadas a fim de se amoldar a outras partes do tubo digestivo.  

O maior problema da leitura feita pelo especialista é nivelar o produto anunciado ao de outras marcas.  Se a vantagem está na redondeza física, em que a Skol se distinguiria da Brahma, da Schincariol ou da Antarctica? Qual o sentido de se criar um slogan que apregoa uma virtude encontrada também nos concorrentes?  

Na leitura de “redondocomo advérbio é que está o valor retórico da mensagem. Todas as cervejas são líquidas, descem fisicamente igualmas a Skol desce “redondo”. As outras, por antítese, descem “quadrado”. Essa oposição ganha sentido quando saímos do plano físico, ou literal, para o metafórico. A “redondo” associa-se a ideia de maciez, fluidez, bem-estar; “quadrado” liga-se a adstringência e desconforto.

Numa das propagandas da Skol veiculadas pela TV, deu para perceber a oposição figurada desses atributos (e no plano figurado é que eles podem se caracterizar plenamente). A tela mostrava a oposição entre uma setinha móvel, circular, amaciando um tubo digestivo, e um quadrado áspero, pontiagudo, que o feria.

Em resumo: o slogan está linguisticamente correto. Seus criadores souberam, por meio da mudança de classe morfológica, criar um sugestivo efeito semântico a fim de convencer o leitor a adquirir o produto. Um brinde a eles!   

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Carnaval ao pó da letra

Não estranhem o título. Ele faz referência ao hábito politicamente correto de proibir letras de Carnaval nas quais haveria preconceito contra determinados grupos. Tentaram fazer isso com “Tropicália” e “Cabeleira do Zezé”, mas como se viu a tentativa não vingou. O pessoal continua dando vivas à “mulata ta ta ta ta” e perguntando se, com aquela juba farta, o tal Zezé... “é” ou não.  

Mas o politicamente correto é insaciável. Quem pensa que ele se sentiu derrotado não sabe de que a sua voracidade é capaz. Diante disso, resolvi dar minha modesta contribuição. Afinal de contas, o que caracteriza o Carnaval é a inversão de valores e papéis sociais. Basta lembrar que na Idade Média, durante essa época, costumava-se destronar a autoridade real e coroar um indivíduo do povo. Daí veio a figura do Rei Momo, que hoje circula por ruas e salões afetando uma majestade que está longe de ter. 

Mas vamos ao meu contribuo, que consistirá por enquanto numa breve indicação de músicas que devem se acrescentar às duas já mencionadas.   

Comecemos por “Aurora”. Trata-se de uma marchinha aparentemente inócua. Essa impressão muda quando se observam com atenção os versos iniciais: “Se você fosse sincera,/ô ô ô ô Aurora,/ veja só que bom que era,/ô ô ô ô Aurora.”  A desconfiança sobre a sinceridade de Aurora reflete uma mentalidade machista. Se não é sincera, Aurora mente, e mentindo lança sobre as pessoas do seu gênero a sombra do ardil e da trapaça. Como não relacionar isso com a mentira que Eva pregou em Adão para que ele, inocentemente, comesse a maçã? Proponho então que se decrete o crepúsculo de “Aurora”, deixando de cantá-la e dançá-la nas ruas e nos salões.

E “Máscara Negra”? Todos conhecem o clássico de Ze Kéti e Pereira Matos. É sem dúvida uma música bonita, mas lamento dizer que não deve mais ser cantada. Se não, vejamos. No finalzinho da letra o “Pierrô” diz à “Colombina”: “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é Carnaval.”  Perceberam a atitude autoritária e truculenta? Quem pode negar que isso é assédio? Ele se propõe a beijar a mulher sem o seu consentimento e cinicamente pede que ela não o leve a mal (ou seja, tem consciência de que o beijo vai de alguma forma importuná-la). “Máscara negra” deve ficar de fora em respeito à integridade do corpo da mulher, que tem o direito de beijar (e ser beijada) por quem ela queira. Afinal de contas, Não é Não.

Acho que se deve incluir também “Jardineira”. Essa marchinha parece de um lirismo inocente, mas não deve mais constar no repertório carnavalesco. Quem não se lembra da letra? Indagada sobre a sua intensa tristeza, a moça responde que o motivo foi uma camélia que caiu do galho e morreu depois de dar dois suspiros. O emissor diz então à moça que não fique triste porque ela tem o mundo ao seu dispor e (prestem atenção agora!) é muito mais bonita do que a camélia que morreu. Ou seja, ele aceita alegremente a morte da flor, o que mostra pouco respeito pela Natureza (e, por extensão, pela ecologia).

E “Marcha da Cueca”? A letra é bastante conhecida. Alguém se diz disposto a matar quem roubou sua cueca para fazer pano de prato. Até aí nada grave. Pode-se interpretar o propósito homicida como uma hipérbole; o emissor estaria indignado com quem deu essa inusitada serventia a sua roupa íntima. O grave aparece depois, quando ele confessa que a cueca foi um presente que ganhou... da namorada. Namorada dar cueca de presente? Para fazer isso ela devia desaprovar as roupas de baixo que ele usava. E como conheceu essas roupas?! Essa música constitui um péssimo exemplo para os jovens que namoram com recato e decência.

          Fico por aqui a fim de não aborrecer o leitor. Minhas pesquisas, no entanto, vão continuar (a propósito, acabou de me ocorrer “Pirata da perna de pau”, que deve ser banida em respeito aos deficientes físicos). Aguardem novas contribuições, pois com um pouco de boa vontade (e espírito carnavalesco!) é possível considerar o politicamente correto como um baluarte contra as brigadas da intolerância e do preconceito. Ele ainda vai mudar este país.

            

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A folia de cada um

    

Sempre fui um folião enrustido. Como tinha dificuldade de aderir à folia, a família e os amigos me consideravam anticarnavalesco – o que não é verdade. Brinco por dentro, com uma espécie de euforia espiritual. Pode parecer contraditório falar em espírito a propósito de uma festa que celebra a carne, mas a contradição é apenas aparente. O desejo é físico mas pode se sublimar, e nesse caso a alma se funde com o corpo.  Freud que o diga.  

         Carnavalescos como eu têm dificuldade de cair no samba, no passo ou no frevo. Gostam mais de olhar, imunes ao tumulto dos clubes e das ruas.  São diferentes dos que rejeitam o Carnaval com o argumento de que nessa ocasião o homem se animaliza. Animal ele nunca deixou de ser – um animal soterrado por séculos de civilização. A festa é o meio de deixar emergir a “fera” aprisionada. Ou isso, ou a neurose, a psicose e outros males a que o progresso nos conduz. É preciso vez por outra tirar a máscara de bons moços.   

         O carnavalesco enrustido compreende a necessidade de liberar o que há em nós de instintivo. Não só compreende como sente um pouco de inveja dos que fazem isso sem inibições, entregando-se sem reservas à alegria. O que ele tem não é moralismo, é pudor, cuja manifestação visível é a timidez. Ao perceber isso, os outros o provocam e às vezes o humilham.

Não adianta. Nada o faz balançar o corpo, nem mesmo os primeiros acordes de “Vassourinhas", que sempre me pareceu um dos maiores símbolos do Carnaval pelo seu poder de despertar as massas (nos clubes ou nas ruas, quando tudo ameaça se tornar monótono, esses acordes reacendem a animação). A tendência do enrustido é ver o Carnaval como nostalgia. Nostalgia do presente, pelo momento que escapa, e a óbvia nostalgia do passado, pela lembrança de outros Carnavais. Na sua imaginação, eles eram melhores do que os de hoje.

É como se naquele tempo não houvesse tanta agitação ou maldade e fosse possível brincar sem maiores riscos. As mulheres pareciam mais pudicas; e as músicas, cheias de um romantismo que convidava aos devaneios de um grande amor (mesmo que esse amor, como diz a letra da canção, desaparecesse com a fumaça). Para o nostálgico, que é parente do melancólico, tudo que se distancia da realidade é melhor.

         Crença ilusória. Os Carnavais do passado não são diferentes dos de agora. Cada época imprime à festa a sua marca, mas o significado profundo permanece o mesmo. Quando eu era menino, costumava ouvir relatos de mortes nos salões devido aos porres com lança-perfume; ou de agressões, provocadas por ciúme, que terminavam em assassinatos. Sob o aparente romantismo latejava a febre das grandes paixões, potencializadas pela música e as drogas.

        Vou assistir à festa pela televisão, de olho também nos problemas que o País e o mundo enfrentam. Espero que eles não tenham a força de inibir os que veem na festa a possibilidade de esquecer por uns dias a violência das nossas ruas e o eventual alastramento da guerra no Oriente Médio. Parece injusto “brincar” nesse contexto de conflagração urbana e luta pelo poder. Mas por isso mesmo é preciso se entregar aos apelos da música e da dança, nem que seja pela fria intermediação de um monitor de TV.            

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Para melhor agradecer

Tenho lido críticas por parte de estudiosos da língua ao uso de “Gratidão” no lugar de “Obrigado”. Alegam que esse é um caso de pedantismo e não deve substituir a forma clássica com que nos acostumamos a reconhecer um favor. “Gratidão”, de fato, soa um tanto pomposo. É como se, com a escolha do substantivo, o favorecido quisesse enfatizar o sentimento e não simplesmente mostrar que dele está imbuído.

       – Já que você não pôde ir para o almoço, vim aqui lhe trazer uns sanduíches.   

       – Gratidão.          

       Vejam que o beneficiário, ou beneficiária, não se limitou a mostrar-se agradecido(a). Evocou o que no ser humano é uma manifestação de grandeza de alma. Escolhendo o substantivo, leva o receptor a preencher todo um contexto elíptico (“Diante do favor que me fez, demonstro-lhe minha...”). Convenhamos em que isso torna o diálogo um tanto solene e pouco natural.   

       Risque-se então “Gratidão”, estou de acordo. Mas por que usar necessariamente “Obrigado”, e não “Grato?  Este é sintético, franco, e não sugere nenhum prévio compromisso da parte do favorecido.

        No “Obrigado”, como se sabe, o contemplado “se obriga” ao dever da retribuição. Confessa-se compelido a retribuir o favor mesmo que não esteja sendo sincero. Fala mais por um dever social do que por um impulso espontâneo, que traduza o reconhecimento pelo benefício recebido.

As coisas que fazemos por obrigação nem sempre são prazerosas. Quem já não ouviu de alguém a justificativa de que “fez porque foi obrigado”, ou seja, de que agiu de determinada maneira porque não tinha alternativa? Por que transferir essa possibilidade ao domínio das gentilezas e dos favores?

Se “me obrigo” diante de alguém, tenho-o como credor ou juiz – tipos sociais que não nos acostumamos a ver com simpatia. O primeiro nos cobra, o segundo nos julga, e ninguém se sente à vontade quando submetido a tais injunções. 

Sei que a sociedade se rege por obrigações de uns para com os outros. Mas não fica bem estendê-las ao domínio das reações espontâneas e afetuosas, como as que experimentamos diante de quem nos presta um favor ou concede uma graça. 

Não vou deixar de dizer “Obrigado”, que já é um clichê e cujo esvaziamento semântico vem se estendendo ao plano morfológico. Tanto é assim que o empregam tanto homens quanto mulheres (para desespero dos adeptos da linguagem neutra, que escolheriam “Obrigade”).

Mas confesso que prefiro mesmo “Grato”, que não comporta nenhum dever retributivo e tem o mesmo étimo de “Gratidão”. Além do mais, sendo um adjetivo, enfatiza o estado do beneficiário e não “a substanciosa” grandeza do sentimento. Sem falar que ganha da concorrente pela extensão. Os manuais de estilo, como se sabe, recomendam o uso de palavras curtas, e por esse critério o dissílabo “Grato” é preferível ao polissilábico “Obrigado”.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O desafio de manter o foco

 


Hoje se fala muito em manter o foco. São incontáveis os livros sobre o tema, que a meu ver implica basicamente dois tipos de atitude: ter em mente um objetivo e persistir até alcançá-lo. Muitos não sabem o que querem e se esforçam em vão. Outros até miram com clareza o alvo, mas não têm constância para chegar até ele.

O problema não atinge apenas pessoas comuns ou de mediana inteligência. Acomete também os gênios. Um caso famoso é o de Leonardo da Vinci, que costumava deixar os trabalhos pela metade (embora, segundo seus biógrafos, o motivo para isso fosse nobre: a sua imensa curiosidade por tudo). Outro caso é o de Jean-Paul Sartre; em texto que li há algum tempo, Wilson Martins criticava no filósofo existencialista, entre outras interrupções, o fato de não ter dado prosseguimento a “O ser e o nada”. Ele teria morrido devendo isso à humanidade.

Quem não completa o que começou fica sobretudo em débito consigo mesmo. E, pelo número de publicações que o problema vem suscitando, são muitas hoje as pessoas nessa situação. A cada manhã começam algo novo, mas o impulso para sequenciá-lo só vai até a noite. No dia seguinte, ao acordar, parecem ter perdido o fio que as conectava ao antigo propósito e têm que recomeçar do zero.

Não que esse pessoal queira se “reinventar” a cada dia. Esse verbo possui uma conotação positiva e se refere à capacidade, que poucos têm, de estar sempre renovando seus projetos. O recomeço a que me refiro consiste em reconectar os fios de uma deliberação que, por uma misteriosa química, a noite dispersou.

Isso não é nada fácil, pois depende de uma aliança entre vontade e predisposição inata. Ou seja, a genética interfere. Sabe-se que, se não comanda tudo, ela tem um peso que pode amargamente contrabalançar o empenho com que o indivíduo procura reencontrar o seu rumo.

A atenção que hoje se dá ao foco mostra que a dificuldade de estabelecer uma diretriz (intelectual ou existencial) está em boa medida ligada aos estímulos da vida moderna. Atualmente são muitos os apelos para seguir diferentes tendências de comportamento, grande parte deles potencializada pela instantaneidade da internet. Como se situar nessa avalanche de ideias que requisitam nossa atenção ao mesmo tempo que a despedaçam?

Os inúmeros apelos à dispersão fazem com que o desafio de manter o foco seja sobretudo interior. Mais do que ficar atento ao que se passa no mundo, o indivíduo deve voltar a atenção para si mesmo. Deve escolher em função de “quem é”, e não “ser” em função do que escolhe. Pois muitas vezes as escolhas, ao contrário do que diz o mestre do existencialismo citado linhas atrás, são determinadas por ilusões que a sociedade inculca no indivíduo para adequá-lo ao seu funcionamento.

Em tempo: o propósito desta crônica é um tanto terapêutico, pois também tenho dificuldade de manter o foco. Sei que, se me concentrasse suficientemente nas tarefas, produziria mais e talvez melhor. Já tentei menosprezar o problema fazendo uma frase: “Os gurus da autoajuda dizem que é preciso ter foco. Isso para mim não é problema; tenho vários.” Em seu humorístico nonsense, a frase pode ter ficado interessante – mas não afastou o abatimento que vez por outra a falta de constância nas metas provoca em mim.

Dizer pelo excesso