quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Gurus filosóficos

 

O homem é um animal filosófico. A opção pelo misticismo não se estende a todos, pois exige , mas a filosofia é inevitável em nossa relação com o mundo. Somos seres pensantes, e pensar é filosofar.

Apesar disso, tentados por soluções fáceis que nos prometem uma imaginária felicidade, vivemos afastados da filosofia. Temos medo dela, pois o roteiro dos filósofos exige de nós reflexão, disposição transformadora, avaliação contínua do nosso comportamento.  

Os filósofos propõem uma meta aparentemente inatingível: a felicidade sem ilusões. Será que isso existe? É possível ao homem ser feliz no cru, isto é, defrontando-se com as dolorosas evidências que o cercam – doenças, desigualdade social, perspectiva da morte?

Filósofos como Michel Onfray e Lou Marinoff dizem que sim. Para eles é preciso que o homem deixe de lado os mitos, alimentadores da crença religiosa, e elejam a razão como guia.

Mais Platão e menos Prozac – propõe Marinoff, que publicou um livro com esse título e se rebela contra a ideia de que os antidepressivos podem nos trazer alívio existencial. O Prozac apareceu como uma espécie de pílula da felicidade. Chegou a estar na moda até que se descobriram seus perigosos efeitos colaterais, inclusive o de induzir ao suicídio.

Até hoje não consta que alguém tenha se matado depois de ler Platão. Morreram alguns adeptos do tal amor platônico, no século XIX, mas isso ocorria mais por deformação romântica do que pelo idealismo dos sentimentos.

Onfray é mais radical. Com um rigor bem francês, prega a abolição de todas as ilusões religiosas: “ o homem ateu pode ser livre, porque Deus é incompatível com a liberdade humana”. Assim como Marinoff, ele procura estender a filosofia ao grande público e, de certa forma, ocupar o espaço hoje preenchido pelos gurus da autoajuda.

Se o projeto deles der certo, teremos daqui a algum tempo os filósofos fazendo concorrência aos psicanalistas e aos padres. Será mais uma alternativa a que entregar nosso inquieto espírito.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Como desce a cerveja?

 

Nem todos ainda conseguiram engolir o slogan da Skol. O uso do masculino em “A cerveja que desce redondo” continua entrando quadrado na cachola até de estudiosos da língua.  

Um deles publicou há algum tempo um artigo defendendo que o adjetivo se flexione no feminino. Acha que “redondo” não se refere ao verbo “descer”, mas sim ao estado do líquido. Ele justifica seu ponto de vista com o argumento de que “a redondeza é a da cerveja que, líquida, se adapta ao recipiente que a contém e acompanha a anatomia circular da garganta”.

A preferência pelo masculino envolve os níveis morfológico e semântico da língua. Do ponto de vista morfológico, refere-se à possibilidade de se transformar adjetivo em advérbio. Esse tipo de mudança é comum; constitui um caso de derivação imprópria, ou conversão.  

Por exemplo: se digo “Ele trabalha sério”, o termosério” pode não traduzir o estado da pessoa, e sim o modo como ela trabalha (seriamente). Nesse casosério” é um advérbio, por isso não concorda com o sujeito.

A fragilidade da interpretação do estudioso está no aspecto semântico; decorre de ele dar um sentido estritamente físico ao termoredondo”. Se a redondeza se refere ao estado da cerveja, que se adapta ao recipiente que a contém, tem-se a seguinte situação: caso o recipiente seja quadrado, a cerveja também adquirirá essa configuração.

Além disso, a ingestão de um líquido não se limita ao “espaço circular da garganta”, ocasião em que, segundo o autor, ele se arredonda. Transposto esse limite, o líquido assumirá formas variadas a fim de se amoldar a outras partes do tubo digestivo.  

O maior problema da leitura feita pelo especialista é nivelar o produto anunciado ao de outras marcas.  Se a vantagem está na redondeza física, em que a Skol se distinguiria da Brahma, da Schincariol ou da Antarctica? Qual o sentido de se criar um slogan que apregoa uma virtude encontrada também nos concorrentes?  

Na leitura de “redondocomo advérbio é que está o valor retórico da mensagem. Todas as cervejas são líquidas, descem fisicamente igualmas a Skol desce “redondo”. As outras, por antítese, descem “quadrado”. Essa oposição ganha sentido quando saímos do plano físico, ou literal, para o metafórico. A “redondo” associa-se a ideia de maciez, fluidez, bem-estar; “quadrado” liga-se a adstringência e desconforto.

Numa das propagandas da Skol veiculadas pela TV, deu para perceber a oposição figurada desses atributos (e no plano figurado é que eles podem se caracterizar plenamente). A tela mostrava a oposição entre uma setinha móvel, circular, amaciando um tubo digestivo, e um quadrado áspero, pontiagudo, que o feria.

Em resumo: o slogan está linguisticamente correto. Seus criadores souberam, por meio da mudança de classe morfológica, criar um sugestivo efeito semântico a fim de convencer o leitor a adquirir o produto. Um brinde a eles!   

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Carnaval ao pó da letra

Não estranhem o título. Ele faz referência ao hábito politicamente correto de proibir letras de Carnaval nas quais haveria preconceito contra determinados grupos. Tentaram fazer isso com “Tropicália” e “Cabeleira do Zezé”, mas como se viu a tentativa não vingou. O pessoal continua dando vivas à “mulata ta ta ta ta” e perguntando se, com aquela juba farta, o tal Zezé... “é” ou não.  

Mas o politicamente correto é insaciável. Quem pensa que ele se sentiu derrotado não sabe de que a sua voracidade é capaz. Diante disso, resolvi dar minha modesta contribuição. Afinal de contas, o que caracteriza o Carnaval é a inversão de valores e papéis sociais. Basta lembrar que na Idade Média, durante essa época, costumava-se destronar a autoridade real e coroar um indivíduo do povo. Daí veio a figura do Rei Momo, que hoje circula por ruas e salões afetando uma majestade que está longe de ter. 

Mas vamos ao meu contributo, que consistirá por enquanto numa breve indicação de músicas que devem se acrescentar às duas já mencionadas.   

Comecemos por “Aurora”. Trata-se de uma marchinha aparentemente inócua. Essa impressão muda quando se observam com atenção os versos iniciais: “Se você fosse sincera,/ô ô ô ô Aurora,/ veja só que bom que era,/ô ô ô ô Aurora.”  A desconfiança sobre a sinceridade de Aurora reflete uma mentalidade machista. Se não é sincera, Aurora mente, e mentindo lança sobre as pessoas do seu gênero a sombra do ardil e da trapaça. Como não relacionar isso com a mentira que Eva pregou em Adão para que ele, inocentemente, comesse a maçã? Proponho então que se decrete o crepúsculo de “Aurora”, deixando de cantá-la e dançá-la nas ruas e nos salões.

E “Máscara Negra”? Todos conhecem o clássico de Ze Kéti e Pereira Matos. É sem dúvida uma música bonita, mas lamento dizer que não deve mais ser cantada. Se não, vejamos. No finalzinho da letra o “Pierrô” diz à “Colombina”: “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é Carnaval.”  Perceberam a atitude autoritária e truculenta? Quem pode negar que isso é assédio? Ele se propõe a beijar a mulher sem o seu consentimento e cinicamente pede que ela não o leve a mal (ou seja, tem consciência de que o beijo vai de alguma forma importuná-la). “Máscara negra” deve ficar de fora em respeito à integridade do corpo da mulher, que tem o direito de beijar (e ser beijada) por quem ela queira. Afinal de contas, Não é Não.

Acho que se deve incluir também “Jardineira”. Essa marchinha parece de um lirismo inocente, mas não deve mais constar no repertório carnavalesco. Quem não se lembra da letra? Indagada sobre a sua intensa tristeza, a moça responde que o motivo foi uma camélia que caiu do galho e morreu depois de dar dois suspiros. O emissor diz então à moça que não fique triste porque ela tem o mundo ao seu dispor e (prestem atenção agora!) é muito mais bonita do que a camélia que morreu. Ou seja, ele aceita alegremente a morte da flor, o que mostra pouco respeito pela Natureza (e, por extensão, pela ecologia).

E “Marcha da Cueca”? A letra é bastante conhecida. Alguém se diz disposto a matar quem roubou sua cueca para fazer pano de prato. Até aí nada grave. Pode-se interpretar o propósito homicida como uma hipérbole; o emissor estaria indignado com quem deu essa inusitada serventia a sua roupa íntima. O grave aparece depois, quando ele confessa que a cueca foi um presente que ganhou... da namorada. Namorada dar cueca de presente? Para fazer isso ela devia desaprovar as roupas de baixo que ele usava. E como conheceu essas roupas?! Essa música constitui um péssimo exemplo para os jovens que namoram com recato e decência.

          Fico por aqui a fim de não aborrecer o leitor. Minhas pesquisas, no entanto, vão continuar (a propósito, acabou de me ocorrer “Pirata da perna de pau”, que deve ser banida em respeito aos deficientes físicos). Aguardem novas contribuições, pois com um pouco de boa vontade (e espírito carnavalesco!) é possível considerar o politicamente correto como um baluarte contra as brigadas da intolerância e do preconceito. Ele ainda vai mudar este país.

            

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A folia de cada um

    

Sempre fui um folião enrustido. Como tinha dificuldade de aderir à folia, a família e os amigos me consideravam anticarnavalesco – o que não é verdade. Brinco por dentro, com uma espécie de euforia espiritual. Pode parecer contraditório falar em espírito a propósito de uma festa que celebra a carne, mas a contradição é apenas aparente. O desejo é físico mas pode se sublimar, e nesse caso a alma se funde com o corpo.  Freud que o diga.  

         Carnavalescos como eu têm dificuldade de cair no samba, no passo ou no frevo. Gostam mais de olhar, imunes ao tumulto dos clubes e das ruas.  São diferentes dos que rejeitam o Carnaval com o argumento de que nessa ocasião o homem se animaliza. Animal ele nunca deixou de ser – um animal soterrado por séculos de civilização. A festa é o meio de deixar emergir a “fera” aprisionada. Ou isso, ou a neurose, a psicose e outros males a que o progresso nos conduz. É preciso vez por outra tirar a máscara de bons moços.   

         O carnavalesco enrustido compreende a necessidade de liberar o que há em nós de instintivo. Não só compreende como sente um pouco de inveja dos que fazem isso sem inibições, entregando-se sem reservas à alegria. O que ele tem não é moralismo, é pudor, cuja manifestação visível é a timidez. Ao perceber isso, os outros o provocam e às vezes o humilham.

Não adianta. Nada o faz balançar o corpo, nem mesmo os primeiros acordes de “Vassourinhas", que sempre me pareceu um dos maiores símbolos do Carnaval pelo seu poder de despertar as massas (nos clubes ou nas ruas, quando tudo ameaça se tornar monótono, esses acordes reacendem a animação). A tendência do enrustido é ver o Carnaval como nostalgia. Nostalgia do presente, pelo momento que escapa, e a óbvia nostalgia do passado, pela lembrança de outros Carnavais. Na sua imaginação, eles eram melhores do que os de hoje.

É como se naquele tempo não houvesse tanta agitação ou maldade e fosse possível brincar sem maiores riscos. As mulheres pareciam mais pudicas; e as músicas, cheias de um romantismo que convidava aos devaneios de um grande amor (mesmo que esse amor, como diz a letra da canção, desaparecesse com a fumaça). Para o nostálgico, que é parente do melancólico, tudo que se distancia da realidade é melhor.

         Crença ilusória. Os Carnavais do passado não são diferentes dos de agora. Cada época imprime à festa a sua marca, mas o significado profundo permanece o mesmo. Quando eu era menino, costumava ouvir relatos de mortes nos salões devido aos porres com lança-perfume; ou de agressões, provocadas por ciúme, que terminavam em assassinatos. Sob o aparente romantismo latejava a febre das grandes paixões, potencializadas pela música e as drogas.

        Vou assistir à festa pela televisão, de olho também nos problemas que o País e o mundo enfrentam. Espero que eles não tenham a força de inibir os que veem na festa a possibilidade de esquecer por uns dias a violência das nossas ruas e o eventual alastramento da guerra no Oriente Médio. Parece injusto “brincar” nesse contexto de conflagração urbana e luta pelo poder. Mas por isso mesmo é preciso se entregar aos apelos da música e da dança, nem que seja pela fria intermediação de um monitor de TV.            

O poder da frase