sábado, 21 de novembro de 2009

Soneto desnaturado

(variação sobre um velho tema)

Ser mãe é cuidar bem do próprio corpo
(de preferência, numa academia).
É desmamar o pirralho bem cedo
para livrar o seio das estrias.

É dormir como um justo, ressonando,
depois de uma passagem na “balada”,
e acordar sem remorsos, no outro dia,
por ter deixado o filho com a empregada.

É não abdicar dos seus projetos,
fugir de ser babá dos próprios netos
(caso venham chamá-la para isso).

É desprezar o chato que a condena,
dizendo que a pior de suas penas
seria “padecer num paraíso”.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Nudez imprópria

Numa passagem de “Dom Casmurro”, Bentinho passeia com o agregado José Dias numa das ruas centrais do Rio. Vão conversando amenidades (José Dias disparando seus superlativos) quando uma mulher tropeça a poucos metros deles. Com a queda, ela deixa ver parte da liga que lhe aperta uma das meias.
Para Bentinho, seminarista sem vocação, o efeito é arrebatador. Os dois continuam a conversa mas o rapaz não consegue tirar a cena da cabeça. Sua perturbação não diminui quando ele chega ao seminário, pois, como escreve Machado, “as batinas tinham ar de saias”. Ou seja, a indumentária dos padres evocava o tombo da mulher e a exposição do artefato erótico.
“Uma liga!” -- se espantará o leitor de hoje. É certo que não se usam mais ligas, nem meias, nem aqueles vestidões compridos que pareciam embalsamar o corpo feminino. Naquele tempo a roupa quase não mostrava nada, e justamente por isso o pequeno elástico que fazia a meia aderir à coxa era um poderoso estopim erótico. Era uma pista, um indício que acendia a imaginação e com ela o desejo (o erotismo não está no que se explicita, mas no que se entremostra e apela à imaginação).
Lembrei-me dessa passagem a propósito da estudante de São Bernardo do Campo que foi vaiada, e quase linchada, por haver ido à faculdade seminua. A televisão mostrou e repetiu a cena: a moça acuada numa sala, chorando, e do lado de fora uma multidão uivando como uma horda de lobos morais. Se pudessem a estraçalhavam ali, em nome dos bons costumes. Quando ela saiu, sob escolta, teve que ouvir gritos de p... até deixar o estabelecimento.
Muito se discutiu o comportamento da turba, que parecia tomada por uma ira santa. Uns o consideraram injustificável numa época de costumes arejados. Não se explicaria tanto puritanismo em pleno século 21, quando a mulher quebrou tabus a ponto de usar biquíni e fio dental. Mais do que zelo pelos bons costumes, haveria nas vaias intolerância e preconceito.
A reação não parecia coisa de civilizados, concordo, mas é preciso reconhecer que a moça apelou. Foi para a faculdade com um microvestido vermelho que lhe deixava as pernas de fora e era um chamariz para os olhares masculinos. Quem vai às aulas daquele jeito quer mesmo estudar? Ou quer chamar a atenção para si com a mira em outros propósitos? O exibicionismo do corpo não se harmoniza com a concentração e o recato exigidos numa sala de aula.
Se faltou à turba moderação, faltou à garota senso. O despropósito com que se vestiu mostra que ela não tinha noção de onde estava. Ou, se tinha, ignorou a praxe e acabou atentando contra o decoro. As vaias agressivas seriam uma forma de revidar o acinte.
Estamos longe do tempo em que a visão de uma liga era capaz de tirar o sono de um adolescente. A liga se foi, e com ela o pudor, que tornava o corpo feminino um mistério. Ninguém precisa fantasiar o que se escancara nas ruas, nos bares, nas praias, e torna banal a nudez. Certos limites, contudo, devem ser preservados. Se à mulher não é mais proibido se desnudar, que pelo menos ela se dispa em locais convenientes.

Dizer pelo excesso