quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O anúncio

           

         


            Costumávamos nos reunir aos sábados na casa de Ferdinando, um velho amigo da adolescência, para ouvir música e tomar cerveja. Nesses encontros falava-se de política, esportes, antigas badernas, enfim, daquilo que podia animar uma roda composta por amigos e amigas de longa data.   

Um dos frequentadores era Alessandro, que fazia poemas e até já os publicara em mais de um livro que distribuía com os mais íntimos. Ele aparecia pouco e quando vinha costumava recitar seus versos. Era um poeta à moda antiga, que no recitativo fazia questão de adequar o gestual às imagens. Entre uma composição e outra, enxugava a testa porejada de suor.

Num dos encontros a que o poeta veio, Ferdinando teve a ideia de chamar Bobô. Esse era o apelido de uma colega já entrada em anos que morava com a mãe umas três casas distante da dele. Bobô era solteira (solteirona, como se dizia) e o seu estado civil parecia incomodar alguns, que vez por outra tentavam arranjar pretendentes para ela.    

Tímida e de óculos, a moça tinha o aspecto senhorial de quem já havia aceitado a sua condição. Acostumara-se a cuidar da mãe e parecia preencher a vida com isso. Aos domingos iam as duas à igreja, vestidas com roupas sóbrias e mantilhas escuras.

A ideia do anfitrião era aproximá-la de Alessandro, que nesse dia veio com um amigo que não conhecíamos. Ferdinando sabia que Bobô tinha pelo poeta algum interesse e queria ver se os dois iniciavam uma relação que terminasse em casamento.  Pediu que um de nós fosse chamar a moça e, não sei bem por quê, designou-me para fazer isso. Fui sem hesitar, pois simpatizava com ela e queria muito que tivesse alguém quando a mãe lhe faltasse.   

Expliquei-lhe que a turma estava reunida na casa de Ferdinando e que lá também se encontrava o poeta. Aceitou o convite e só pediu um tempinho para se arrumar. Voltei satisfeito pelo dever cumprido, e ficamos esperando. Pouco depois ela chegou, meio desconfiada, olhando com um ar acanhado os presentes.

– Lembra-se de Alessandro? – perguntou-lhe o dono da casa.

– Claro! – respondeu meio sem jeito, estendendo-lhe a mão. Ainda suado devido à recitação do último poema, Alessandro retribuiu com um “Encantado”. Depois apresentou o amigo, que com um lenço lhe enxugava a testa.

A conversa seguia ruidosa e risonha, como é próprio desses encontros. Quietinha no seu canto, Bobô vez por outra olhava para o poeta, cujo rosto estava um pouco avermelhado devido à cerveja. Ferdinando perguntou se ele trabalhava num novo livro e quais eram os planos para o futuro. Por acaso pretendia se casar? Afinal era um solitário e, como já dissera o velho Machado, sempre chega o dia em que a solidão cansa...

Alessandro fez uma pausa antes de responder.  Levou nisso cerca de meio minuto, como se avaliasse o efeito da resposta. Então se levantou e, com a solenidade que o álcool lhe permitia, dirigiu-se a todos:

– Pessoal, quero fazer um anúncio importante.

 O grupo silenciou, curioso por saber de que se tratava.  

– Vou me casar.

O anfitrião ficou surpreso e pareceu um tanto decepcionado, mas logo reagiu:

– Isso merece um brinde! Pode-se saber quem é a felizarda?

– Na verdade, é “um felizardo” – consertou, apontando o amigo que viera com ele. O outro se levantou e, com o ar de quem acabara de receber um elogio, dirigiu ao grupo um discreto aceno.

O dono da casa e mais alguns presentes olharam para Bobô, que sorriu e baixou os olhos. Pouco depois alegou que precisava sair, tinha ainda que dar à mãe dois remédios naquela noite. O pessoal disse que entendia e deixou-a ir sem protestos. Para desanuviar o clima, Ferdinando pediu ao poeta que dissesse outros versos.

– Aquele que você fez comemorando os dois anos do nosso namoro – sugeriu o futuro marido.   

          – Por que não? – concordou Alessandro. E começou a recitar.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

O ganho da opinião


       
        A opinião é um ganho civilizatório. É uma forma educada de contestar os outros. Quem opina discorda (afasta-se pelo coração), mas a vida é assim mesmo. Nem sempre a concórdia é possível num universo em que são tão diversos os fatos e as pessoas. Ao afirmar que toda unanimidade é burra, Nelson Rodrigues traduziu o essencial: uma verdade se afirma, sobretudo, pelo que ela contesta. Como o outro lado, por sua vez, também não abdica de contestar, espera-se chegar a uma provisória pacificação pelo equilíbrio das diferenças.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Coisas

 


Dois amigos conversam após a aula de filosofia.    

– Viu que coisa?

– Vi. Achei a aula coisificante!    

– Ele não explicou o que disse que ia explicar.   

– Pois é. O conceito kantiano da...

– Isso! Da “coisa em si”!    

– “O que está além da representação, inacessível ao intelecto e aos sentidos”. Esse era o espírito da coisa, mas terminei sem entender bulhufas.

– Ele poderia ter explorado mais a noção de “coisidade” da coisa. Ou mesmo de alienação, apelando dialeticamente para Marx.

– Marx?! Não misture as coisas.

– Sei que o tema é complexo, mas com algum esforço ele talvez conseguisse.  

– Talvez. A coisa só não foi pior porque ele acabou reconhecendo a falha. Essa foi para mim a melhor coisa da noite: o seu reconhecimento de que não é lá grande coisa.

– Também não humilhe o homem... Isso é coisa de ressentido.

– Ressentido coisa nenhuma.

– Não podemos julgar o professor apenas por esse erro. Cada coisa tem sua medida, não é certo extrapolar.

 –Tá bom. Mas saiba uma coisa: se aquilo se repetir, eu pego uma coisa da sala e jogo nele. 

– Que coisa?

– Uma bem pesada, claro.   

–Tolice. Isso não é coisa que se faça. Ele tem o seu valor.

– Tinha! Veja como são as coisas: não faz muito tempo ele era o tuxaua, “uma coisa" em termos de filosofia. E agora?

– Mas ele vai se reabilitar. Se há uma coisa certa neste mundo, é que um dia se segue ao outro.

– Se reabilitar como? Fazendo o quê?

– Sei lá. Qualquer coisa que nos leve de novo a confiar nele.

– E qual seria?

– Aí é que está a coisa: cabe a ele descobrir.

– Desconfio de que não conseguirá.    

– Por quê? Você está com má vontade... Pegue suas coisas e vamos embora.

– Já vou. Mas tem uma coisa: se ele não se reabilitar, vou passar isso na sua cara. Você está defendendo demais aquele coisa-ruim. Parece até que há... alguma coisa entre vocês dois.

Vamos embora, antes que eu me irrite! Você já não está falando coisa com coisa!

domingo, 20 de agosto de 2023

Augusto versus IA

 


Um amigo pediu à Inteligência Artificial que produzisse um poema “ao estilo de Augusto dos Anjos”. Recebeu esta composição e quer saber o que eu acho: 

 

Nas veias, o sangue pulsa impuro,

Um rio de tormento e aflição.

O corpo, um templo decadente,

Onde a vida se esvai em vão.

 

Oh, Augusto dos Anjos, mestre do lamento,

Tuas palavras ecoam como pranto.

Descreves a angústia da existência,

Num mundo de desencanto.

 

Os ossos, frágeis estruturas,

A sustentar a carne em decomposição.

Somos meros espectros ambulantes,

Em busca de uma ilusória redenção.

 

A vida, um teatro macabro,

Onde os atores são marionetes.

E o palco é o cenário derradeiro,

Das dores mais secretas e inquietantes.

 

Augusto dos Anjos, poeta maldito,

Tuas rimas ecoam na escuridão.

Retratas a efemeridade da vida,

Numa poesia de sombra e solidão.

                            ****

Como se vê, os versos são bem ruinzinhos. Falta-lhes rigor métrico e a expressividade própria do “Poeta do Eu”. 

O simplismo das imagens mostra um pastiche pouco criativo (pois sabemos que há os criativos), por meio do qual “o autor” procura imitar a visão de mundo do poeta. Há uma série de obviedades sobre o sofrimento e a transitoriedade humanos que está longe de refletir o universo da culpa e da morte presente no “Eu”. 

Dizer que o sangue é “um rio de tormento e solidão” é impróprio e denota um profundo mau gosto. E o fato de Augusto ter escrito “O lamento das coisas”, uma vigorosa representação da energia que potencializa o desejo, não autoriza que o chamem de “mestre do lamento” — como se a sua poesia não passasse de um rol de lamúrias. 

Enfim, a IA ainda tem muito que aprender para chegar ao nível do nosso poeta (se é que um dia conseguirá isso). 

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

A promessa

  


Terminado o almoço ele se aproxima do pai, que está quase adormecendo no sofá.

– Pai!

– Hum.

– A gente pode conversar um pouco?  

– Hum.

– “Hum” quer dizer que pode ou não? 

– Pode. Mas fale logo, que eu quero tirar minha soneca.

          – Tem coisas que eu gosto em você... no senhor, e tem outras que não gosto.

– Por exemplo...

– Gosto quando me leva pro cinema ou compra gibis pra mim. Não gosto quando me bota de castigo ou não me deixa jogar futebol com a turma. E sobretudo não gosto quando o senhor briga com a mamãe, como agora.

 – Eu não brigo com ela. Ela é que briga comigo.  

 – Dá no mesmo. Fico triste de ver os dois discutindo pelos mesmos motivos. E quase sempre ela está com a razão. 

– Você acha? Às vezes sua mãe exagera...

– Não é exagero. É cuidado. Ela pensa muito na casa, na família, em nós dois.

– E eu não penso?! Você é muito pequeno para entender isso. Agora me deixe dormir.

– Só se o senhor prometer que não briga mais com ela.

– Por que essa conversa agora?

– Porque domingo é seu dia, eu vou ter que lhe dar um presente e não quero fazer isso de má vontade. 

– “Vai ter”?

– Não se preocupe. O presente já está comprado e vou lhe dar de qualquer maneira. Mas a gente precisava, antes, ter essa conversa. De homem para homem.

– De menino para homem, você quer dizer.

– Está vendo? O senhor não me respeita. “Menino”! O que tem demais ser menino?

– Nada, contanto que não se meta em assuntos de adulto. Com o tempo você vai compreender que brigas de casal não são o fim do mundo. Acontecem em todo casamento. Isso não quer dizer que os dois não se gostem. Pergunte à sua mãe pra ver se não é verdade. Agora vá, que já está passando a hora do meu cochilo.

O menino se afasta e volta depois de alguns minutos.

– Pai...

– O que é agora?!

         – Perguntei a ela. Brigas de casal acontecem, mesmo, em todo casamento.

– Eu não lhe disse?

– Mas não precisam durar tanto tempo. Por que não aproveita, que domingo é seu dia, e faz as pazes?  

– Isso deve partir de sua mãe.

– Não acho. Esse tipo de decisão deve partir do pai, que é o chefe. Ele é quem toma a iniciativa.  

– Está bem. Vou pensar.    

          Era uma promessa, mas o menino ficou aliviado. Sabia que ele não era de quebrar promessas. Tudo indicava que teria um ótimo Dia dos Pais.


O poder da frase