domingo, 25 de agosto de 2013

APL homenageia Augusto

      Na próxima sexta-feira, a Academia Paraibana de Letras lança edição comemorativa dos 100 anos do “Eu”. A publicação teve o apoio do Senado Federal e só se tornou possível graças ao empenho do senador Cássio Cunha Lima. Em nota introdutória, o acadêmico Gonzaga Rodrigues justifica a participação da APL lembrando que “a Academia paraibana descortinou em Augusto dos Anjos a iluminação mais convincente para legitimar a fundação da entidade. É ele o numero 1 da sua galeria de patronos”.  
     O texto desta nova edição vem acrescido das “outras poesias” recolhidas por Órris Soares e reproduz o da trigésima primeira, estabelecido por Antônio Houaiss em edições anteriores. Nele o filólogo procura esclarecer determinados conceitos (ligados sobretudo à filosofia e à ciência) e fixar a grafia dos vocábulos pouco usuais em que é rica a poesia do paraibano. Esse trabalho concorreu para fixar o corpus literário de Augusto – uma empreitada que teria o seu coroamento com a publicação, pela Nova Aguilar, da Obra Completa organizada por Alexei Bueno.   
    A edição que ora vem a público não traz as notas nem o estudo crítico de Houaiss; justifica-se sobretudo pelo interesse em homenagear o poeta e aproximá-lo mais ainda do público. Como contribuição à crítica, traz um ensaio no qual a professora Ângela Bezera de Castro, entre outros pontos, procura definir o papel de Órris no estabelecimento da edição de 1920. Ela sublinha que “o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto” – o gesto de reunir o que o poeta produziu de relevante após 1912, como o soneto “Eterna mágoa”, que se tornou importante para a avaliação da sua obra.   
    A poesia de Augusto, quanto mais é lida, mais desafia a compreensão do leitor comum e da crítica. Provoca e ao mesmo tempo fascina. Já se observou que ela é única, constitui um “caso” (inclusive no sentido médico). Infelizmente esse tipo de caracterização, que põe o foco no homem, pouco diz sobre os textos. Na melhor das hipóteses, alimenta uma curiosidade que o inusitado das imagens e das escolhas vocabulares só faz aumentar.
       A lírica do paraibano é barroca no espírito e expressionista na forma. Alimenta-se de dualismos (filosóficos, científicos, morais) e de um excesso formal que a faz se aproximar das telas de Edvard Munch (“O grito”, com aquele personagem acuado sobre a ponte, parece uma ilustração dos versos iniciais de “As cismas do Destino”). É também, com o excesso de idealização e subjetividade, uma poesia neorromântica. Ao mesmo tempo, pelo que incorpora do trivial e do degenerado, antecipa nossa modernidade literária.
     Augusto lamenta a perda do sublime, que se confunde com o homem em sua edênica pureza. Nos versos do paraibano a mediação entre a sublimidade e o grotesco se faz pela representação fraturada do corpo, cuja morbidez traduz o horror de uma consciência marcada pela culpa. Uma culpa atávica e imemorial, para cuja remissão seria preciso resgatar uma espiritualidade que o materialismo e o cientificismo pareciam radicalmente ameaçar.

domingo, 18 de agosto de 2013

Novo blog

        A convite dos editores de “Língua Portuguesa”, comecei a escrever no site da revista um blog sobre redação. O propósito é em cada postagem apresentar dicas para redigir com propriedade, correção e clareza. O público-alvo são vestibulandos (sobretudo os que vão fazer o Enem), candidatos a concursos públicos e demais interessados em aprimorar a produção textual.
         O blog se intitula “Na ponta do Lápis” e traz como texto de abertura uma matéria sobre repetição de palavras e ideias (http://revistalingua.uol.com.br/textos/blog-ponta/e-mais-grave-repetir-ideias-do-que-palavras-293815-1.asp). Tem um objetivo didático e também jornalístico, pois procura informar o leitor sobre o que escritores, críticos e teóricos da literatura dizem sobre o ato de redigir, que não se confunde com o de escrever (no sentido literário). Redator não é necessariamente escritor, por isso uma boa redação está ao alcance de qualquer pessoa que leia e pratique.
          No blog pretendo sequenciar o trabalho que venho fazendo nesta coluna e em outros dois blogs que mantenho, sobretudo o “Por um texto melhor” (http://chicovianaporumtextomelhor.blogspot.com.br). É um trabalho também articulado com minhas atividades em sala de aula, de onde tiro a maior parte do material que serve de base para exemplos, comentários e exercícios de refeitura. Para ser objetivo no ensino de redação, nada como trabalhar a partir da produção dos alunos. Essa é uma forma de evitar as abstrações e os achismos, mantendo o foco no que interessa
          E o que interessa tem quase tudo a ver com o uso da língua. Todo o mundo sabe que escrever bem não é apenas escrever certo, mas não há como chegar à primeira dessas metas sem atentar para a segunda. Escrever certo é conhecer a gramática (o que não se confunde com o mero domínio da nomenclatura) e saber o que na língua “funciona” do ponto de vista semântico e estrutural. Dominar a lógica da gramática, como observa Francine Prose num livro para escritores, contribui para a lógica do pensamento. Se a primeira condição para escrever bem é pensar bem, não há então como dispensar o conhecimento gramatical.
       No blog tratarei dessas e de outras questões referentes aos requisitos para a elaboração de um bom texto. Entre elas, a relação entre conteúdo e forma, que hoje se confunde com o problema dos gêneros textuais e dos registros de linguagem (tão explorados no Enem). Quem escreve visa a determinado fim e deve mobilizar os vários recursos da língua para atingir seu objetivo. Deve também, a partir da leitura de outros textos e da observação do mundo, saber selecionar e utilizar argumentos.

         “Na ponta do lápis” é mais uma frente que se abre num trabalho contínuo, sistemático e basicamente voltado para a sala de aula. O fato de esse blog vir a público, e numa publicação prestigiosa como a revista da Editora Segmento, é para nós motivo de satisfação. Vale como um reconhecimento e um estímulo. Espero por meio dele continuar sendo útil aos que desejam comentar, discutir e sobretudo praticar a língua, que é um instrumento essencial para o homem se conhecer e atuar no mundo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A agonia da festa

       (Escrevi esta crônica há alguns anos, quando quiseram afogar a Festa das Neves na Lagoa. O bom de reler o texto é constatar que ela resistiu.)
 
        Não sei qual vai ser a avaliação oficial da Festa das Neves. Dirão que ela foi animada, uma das melhores dos últimos anos, e possivelmente alguns vão acreditar. Como palanque a Festa sempre é boa. A apresentação de artistas de fora em shows tarde da noite confirma o prestígio que os órgãos públicos dão ao evento e agrada sobretudo aos notívagos. Novas lâmpadas para a Lagoa são um bem que se incorpora à cidade e, aparecendo no bojo da Festa, parecem um termômetro luminoso e feérico do seu sucesso.
          A verdade, contudo, é que a Festa das Neves perde a graça a cada ano. Repetitiva e esgarçada na imensa Lagoa, mais parece um conjunto de parques de diversão sem qualquer vínculo espiritual com o motivo maior das comemorações. Não quero aqui bancar o saudosista, mas é fácil ver que o novo local está aos poucos matando o tradicional evento. Desfeita a ligação entre o sagrado e o profano, perde-se cada vez mais a referência que, durante décadas, serviu de motivo às comemorações. Longe do seu foco irradiador, a Festa órbita em pobreza e desleixo.
           Sei que não se pode reeditar a singeleza e o lirismo dos anos passados, quando ela conseguia empolgar a classe média e se diversificava em atrações de apuro e bom gosto. Os profissionais liberais tinham cada qual a sua noite e se envolviam numa disputa alegre para vencer os concorrentes. Namoros e casamentos começaram ali, a partir de bilhetinhos que eram, ao mesmo tempo, esforçadas tentativas poéticas. A Festa tinha a exuberância decorrente do prestígio que a sociedade, como um todo, lhe conferia.
           Hoje não é fácil tirar a meninada do shopping, onde é possível comer, se divertir e comprar com a máxima comodidade possível. E fica mais difícil atrair a garotada e seus pais quando se cortam os atrativos de um evento que, por excelência, alimenta-se do vínculo com a tradição.
          Há cerca de três anos tentou-se restaurar um pouco desse clima, inclusive com a reedição do jornalzinho Nonevar, órgão oficial da Festa que circulou nos primeiros anos do século. Nele Augusto dos Anjos escreveu quadras comerciais, criticou os smarts, almofadinhas da época, e fez o hiperbólico perfil de algumas beldades casadoiras. Mas o Nonevar parece que não resistiu ao pragmatismo dos novos tempos. Além do mais, feito para circular em espaços pequenos ou no recesso dos pavilhões, não teria como sobreviver na imensidão da Lagoa.
           Por automatismo ou fidelidade, fui como tenho feito há anos dar o meu passeio na parte profana dos festejos. Esperava-se algo novo além de Monga, a mulher que vira macaco, ou dessas engenhocas radicais que nos centrifugam as vísceras a pretexto de nos divertir. Como estou velho para esportes radicais, fui ver a metamorfose de Monga – e mesmo esse velho truque de espelhos não é mais o que era. Com um monte de holofotes piscando, muito barulho e má técnica, e apesar do anúncio que falava em nos roubar a alma à meia-noite, não assustou sequer a minha filha de doze anos.
           E que dizer do cachorro-quente, que tem sido a pièce de resistence gastronômica do evento? Entre tantas barracas, talvez eu não tenha tido sorte na escolha. Pois comi alguma coisa esfiapada que diziam ser carne, afogada num molho insípido que tinha cheiro e gosto de água. E assim, este ano, nem pelo tradicional cachorro-quente  a festa das Neves valeu.
           Houve anos, e não tão remotos, em que ela foi melhor. Sei que essa alternância faz parte do calendário das festas e mesmo da vida, em que tudo obedece a ciclos e fases.  Mas não podemos esperar que apenas o tempo, sem qualquer interferência nossa, traga de volta o brilho às tradicionais comemorações em honra da padroeira. Dividir a Festa em duas, está mais do que provado, é tirar-lhe um pouco a alma.  Sem a proximidade com a liturgia e sem o antigo prestígio que lhe dava a classe média, ela agoniza em broncos espasmos de som, e de luz.

Dizer pelo excesso