domingo, 19 de fevereiro de 2017

Divagando se vai longe (5)

Comunico aos amigos que neste ano, a exemplo do que ocorreu nos últimos vinte e cinco, não sairei no bloco “As virgens de Tambaú”. O motivo é que a minha mulher (contrária à ideia) meteu as roupas dela em guarda-roupas e gavetas, e escondeu as chaves. Sem o figurino apropriado, não dá!
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Três razões pelas quais as mulheres gostam de ir ao salão de beleza. Lá elas

1) conseguem botar as unhas de fora.
2) podem dar um “permanente” se a sensação do transitório as angustia. 
3) exercitam a virtude cristã da solidariedade ouvindo os problemas pessoais das manicures.
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-- E a eleição para presidente, no próximo ano?
-- Parece que está no Bolso... (cala-te, boca!).
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O gosto aprendido satisfaz mais do que o espontâneo, pois é valorizado pelo grau de esforço que fazemos para alcançá-lo. Vem com uma ponta de orgulho e autogratificação. Já o gosto espontâneo, como não exige empenho, com o tempo se transforma em tédio.  

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A ética no hospital

Há algum tempo o “Fantástico” abordou a tentativa feita por alguns empresários de corromper um gestor hospitalar. A matéria era sobretudo didática, pois mostrava com fartura de exemplos como atuam os que se apropriam do dinheiro público. Eles são claros, objetivos, articulados, e conhecem bem os meandros desse tipo de negócio.  
Nos acostumamos a achar que a oferta de propinas vem sempre de pessoas ligadas ao Estado. Os empresários seriam na pior das hipóteses aliciados; quando cediam, era porque não tinham outra alternativa para fechar o negócio ou, que diabo!, porque ninguém é de ferro. Como resistir a engordar com valores tão altos a conta bancária?... A reportagem concorreu para desfazer essa impressão. Mostrou que muitas vezes é das empresas que partem as propostas indecentes.
E o pior é que elas não surgem de maneira episódica, por obra de uma “ovelha negra” que se rebela contra as sagradas leis do capitalismo. Surgem como efeito de um conluio e sistematizam uma prática. Essa prática, conforme salientou um dos empresários filmados na reportagem, de tão natural já ilustrava uma “ética”.
A prova da naturalidade da situação é que todos negociavam muito à vontade, entremeando os percentuais propostos (dez, quinze, vinte por cento...) com gracejos e cínicas observações pedagógicas. Um dos negociadores chegou a mostrar ao suposto gestor o que ensinava aos filhos. O conselho que dava aos seus rebentos era que sempre protegessem os contratantes, a fim de ser por eles protegidos. Incutia-lhes como demonstração de lealdade o que não passava de comparsaria.
Essa lição de casa me lembrou o conto “Teoria de medalhão”, de Machado de Assis, em que um pai instrui o filho sobre o que fazer para se tornar uma figura pública influente. Um medalhão não é bem um corrupto, mas realidade e conto têm em comum uma prática educativa que antes deforma do que constrói. E será possível construir alguma coisa numa sociedade em que o roubo dos recursos públicos é um ato “absolutamente normal -- segundo comentou a representante de uma das empresas? Que esperar de um país que normaliza a fraude? Vá ver, nós é que estamos ensinando errado nas escolas. 
Desvendada a trama, as autoridades prometeram tomar providências, e até se falou na instalação de uma CPI. Não sei as investigações ocorram mesmo e levaram à punição dos culpados. Dá um calafrio pensar que: a) esse foi apenas um entre as centenas de hospitais públicos que há no país; b) as empresas filmadas foram somente quatro entre as dezenas que prestam serviços ou fornecem produtos a essas instituições; c) nem todo gestor hospitalar é um repórter disfarçado do “Fantástico”.
Tudo isso dá a entender que são vários os condutos por onde o dinheiro escoa, relegando ao desamparo milhões de pobres e miseráveis.  O diretor do hospital onde se fez a reportagem observou com razão que roubar da saúde constitui um dos piores crimes, pois deixa sem assistência os que não podem pagar médicos e hospitais. Ou seja: é uma forma indireta de matá-los.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Corrigindo o Carnaval

O “politicamente correto” se voltou recentemente para o Carnaval. Alguns blocos baniram do seu repertório músicas que consideram ofensivas a minorias. Entre as banidas estão “Tropicália” e “Cabeleira do Zezé”. A primeira, por fazer referência à mulata (ta-ta-ta-ta); a segunda, por atingir os gays.
Resolvi me filiar a essa cruzada e dar a minha colaboração. Nosso cancioneiro carnavalesco, de fato, tem sido preconceituoso com determinados segmentos cujas escolhas sexuais são pouco ortodoxas. Ou com grupos historicamente injustiçados. Minha contribuição consistirá, por enquanto, numa breve indicação de músicas que devem se acrescentar às já proibidas.   
Comecemos por “Aurora”. Trata-se de uma marchinha aparentemente inócua. Essa impressão muda quando se observam com atenção os versos iniciais: “Se você fosse sincera,/ô ô ô ô Aurora,/ veja só que bom que era,/ô ô ô ô Aurora.”  A desconfiança sobre a sinceridade de Aurora reflete uma mentalidade machista. Se não é sincera, Aurora mente, e mentindo lança sobre as pessoas do seu gênero a sombra do ardil e da trapaça. Como não relacionar isso com a mentira que Eva pregou em Adão para que ele, inocentemente, comesse a maçã? Proponho que não se cante nem se dance mais “Aurora”.
E “Máscara Negra”? Todos conhecem o clássico de Ze Kéti e Pereira Matos. É sem dúvida uma música bonita, mas lamento dizer que não deve mais ser cantada. Se não, vejamos. No finalzinho da letra o “Pierrô” diz à “Colombina”: “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é Carnaval.” Perceberam a atitude autoritária e truculenta? Quem pode negar que isso é assédio? Ele se propõe a beijar a mulher sem o seu consentimento e cinicamente pede que ela não o leve a mal (ou seja, tem consciência de que o beijo vai de alguma forma importuná-la). “Máscara negra” deve ficar de fora em respeito à integridade do corpo da mulher, que tem o direito de beijar (e ser beijada) por quem ela queira.
Acho que se deve incluir também “Jardineira”. Parece de um lirismo inocente, mas não deve mais constar no repertório carnavalesco. Quem não se lembra da letra? Indagada sobre a sua intensa tristeza, a moça responde que o motivo foi uma camélia que caiu do galho e morreu (depois de dar dois suspiros). O emissor diz então à moça que não fique triste porque ela tem o mundo ao seu dispor e (prestem atenção agora!) é muito mais bonita do que a camélia que morreu. Ou seja, aceita com indiferença a morte da flor, o que mostra pouco respeito pela natureza (e, por extensão, pela ecologia). Desde quando a vida de um vegetal vale mais do que a de um ser humano?
E “Marcha da Cueca”? A letra é bastante conhecida. Alguém se diz disposto a matar quem roubou sua cueca para fazer pano de prato. Até aí nada grave. Pode-se interpretar o propósito homicida como uma hipérbole; o emissor estaria indignado com quem deu essa inusitada serventia a sua roupa íntima. O grave aparece depois, quando ele confessa que a cueca foi um presente que ganhou... da namorada. Namorada dar cueca de presente? Para fazer isso ela devia desaprovar as roupas de baixo que ele usava. E como conheceu essas roupas?! Essa música constitui um péssimo exemplo para os jovens que namoram com recato e decência.
Fico por aqui a fim de não aborrecer o leitor. Minhas pesquisas, no entanto, vão continuar (a propósito, acabou de me ocorrer “Pirata da perna de pau”; essa música deve ser banida por desrespeitar os deficientes físicos). Aguardem novas contribuições, pois considero o “politicamente correto” uma espécie de Lava-Jato da intolerância e do preconceito. Ele ainda vai mudar este país.

Novos pecados poéticos

EM TEMPO  
O rio do tempo
como líquida estrada
vai tocando a vida    
rumo à foz do nada.

E nessa viagem
nada principia
que não se desfaça     
(tarde ou não o dia).

DÉBITO 
Quem quer e não faz
morre querendo,
e só o querer não salva.
O por fazer não preenche
o branco vazio da alma.
É um débito que se adia,
promessa que não se salda.

QUANDO EU NÃO FOR MAIS
Quando eu não for mais,  
não terei saudade alguma de ter sido.
Não sentirei a falta, nem a morte,
pois para senti-las é preciso estar vivo.

Apenas os que me conheceram
saberão que fui (mas não quem fui:
esse mistério morrerá comigo).

Saber-se ausente é impossível.
Quem sabe de alguma forma está presente
(do contrário, não teria como saber).
Ser ausente é ter a inconsciência de não estar
(no mundo ou em qualquer outra esfera)
e nada sofrer com isso,
pois consciência e dor
são faces do mesmo signo.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Divagando se vai longe (4)

Fiz até o quarto ano de Medicina. Quando pagava Psiquiatria, o professor levou a turma para ouvir o depoimento de um paciente que saía de uma crise psicótica.
O paciente não estava totalmente curado, mas tinha alguma consciência do que passara. Contou uma série de detalhes que eu já esqueci.  Mas me lembro do que disse para explicar como se livrara de um delírio: “Torei a escuridão”.
 “Torar a escuridão”. Isso é uma imagem (uma representação figurada), mas ele lhe atribuía um sentido literal. Explica-se: o psicótico não sonha nem metaforiza (é a chamada delusão). Para ele, “torar a escuridão” é mesmo quebrar alguma coisa escura...
 Isso me fez pensar que a loucura é uma poesia doente, assim como a poesia é uma loucura sã.
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Precisava mostrar a cela onde Eike vai dormir e o fosso onde ele faria suas necessidades? Os presos comuns sempre enfrentaram condições degradantes e ninguém teve curiosidade por isso. Talvez mandar mais ex-milionários para a cadeia ajudasse a melhorar as condições carcerárias do País... Fica a proposta.
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A imagem é o ingrediente fundamental da poesia, que se define como um discurso por imagens. Mas ela também aparece na prosa e mesmo no discurso cotidiano, informal. Um dos seus papéis, nesse caso, é concretizar noções abstratas.
Quando explico isso em classe, costumo dar como exemplo um instrutor de autoescola que quer mostrar ao aluno a melhor maneira de segurar a direção. Ele pode dizer mais ou menos o seguinte: “Considere que a direção é uma esfera cortada por duas linhas, uma longitudinal e outra transversal. Suas mãos devem se apoiar na parte superior dessa esfera e se afastar cerca de 10 graus do eixo longitudinal...”.
O aluno, claro, não ia entender coisa nenhuma e talvez procurasse outra autoescola.
Suponha agora que, em vez daquela explicação abstrata, o instrutor disesse: “Dirija em dez e dez”. Pronto. Fez-se a luz. A analogia com os ponteiros do relógio marcando dez e dez dá ao aluno a imagem nítida, concreta, de como ele deve posicionar as mãos no volante.
         Só de teimoso ele vai, por exemplo, dirigir em “seis e meia”... Mas aí a culpa já não será do instrutor.

Dizer pelo excesso