quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Máximas saturninas (sobre a melancolia)

 A melancolia é a tristeza pelo que radicalmente nos falta. Cura-se por dispositivos simbólicos (a crença em Deus é uma de suas terapêuticas), e não por remédios. O que se cura por medicamentos é a depressão, que pode inclusive afetar os não melancólicos.    

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Quem descobriu que a Terra é chata não foram os astrônomos. Foram os melancólicos.

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O melancólico tem uma relação paradoxal com o tempo. Lamenta que ele passe, mas precisa dele para sair do estado em que se encontra. Uma das sensações mais comuns nele, por sinal, é a de que o amanhã não chega nunca.

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Dizem que o melancólico não tem fé. Isso não é verdade. Ele pode não ter crença, mas não lhe falta a fé. O corpo lhe assegura a esperança de triunfar sobre o vazio.

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O melancólico pensa lento e profundo. Deixem-no seguir seu ritmo, pois a pressa o exaspera ou mata.

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O otimista acha que o pouco é muito; o pessimista, que o muito é pouco; o melancólico, que “tanto faz”.

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Um pouco de melancolia faz bem; modera a euforia improdutiva. Tem dias em que “se produz” mais ficando na cama.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Dos males de não morrer

 

Li que o bilionário Jeff Bezos tem investido um dinheirão numa startup que pesquisa a imortalidade. Bezos, que já foi ao espaço, parece insatisfeito com a possibilidade de o homem explorar os domínios extraterrestres. Quer mais. Seu sonho é que no futuro possamos escapar de um evento que por excelência confirma a nossa condição animal – o fim da vida.

Há quem se empolgue com essa ideia do criador da Amazon e anteveja um futuro no qual, enfim, nos libertaremos do fardo de nos sabermos mortais. Estou longe de pertencer a esse grupo. Para mim, a morte é o que dá sentido à vida. A perspectiva de que um dia deixaremos de “ser” é que nos mobiliza a construir por aqui algo de valor, aproveitando bem o tempo. Tudo que nasce morre, e o homem não está imune a essa inevitável lei biológica.

Mas deixemos de lado a biologia e nos fixemos nas implicações pragmáticas da proposta do bilionário. O fato de não morrermos inviabilizaria a continuidade dos empreendimentos humanos na Terra. A morte justifica diversas práticas que, sem ela, não teriam razão de ser. Há toda uma indústria, e um vasto comércio, que se alimenta da perspectiva da nossa finitude.

Fico imaginando algumas possibilidades. Por exemplo: se não viéssemos a morrer, os bancos e as seguradoras faliriam (para não falar, claro, das casas mortuárias). Muita gente tem o cuidado de investir parte da sua renda em planos de previdência privada, ou semelhantes, a fim de ao fechar os olhos não deixar ao desamparo a mulher e os filhos. Não haveria, é óbvio, nenhum sentido em uma pessoa fazer isso sabendo que vai viver eternamente.   

Por falar em eternidade, como sem a perspectiva da morte ficaria a crença religiosa? O que a sustenta é justamente o pavor que temos não apenas de morrer mas de, morrendo, ir para um lugar pior do que este. Para evitar isso frequentamos cultos, missas e rituais semelhantes, levando para eles nossa esperança e por vezes nosso dinheiro. Em troca disso nos fortificamos com a ideia de que algo sobreviverá ao corpo perecível. Qual o sentido de tais celebrações caso nos fosse concedida uma imortalidade realmente física, e não a de um incorpóreo espírito a pairar em nebulosas dimensões siderais?

A exclusão da morte afetaria também as relações entre os casais apaixonados. Quantas paixões não se alimentam da promessa, feita pelos amantes, de dar a vida pelo outro? Paixão e morte são aliados históricos, conforme se vê na literatura e na arte em geral. A tragédia de Romeu e Julieta está aí para demonstrar a verdade dessa antiga aliança. Sem a disposição mesmo retórica para o sacrifício supremo, que é o de morrer por amor, as promessas dos amantes perderiam muito da sua credibilidade. Isso terminaria inviabilizando as ligações e por extensão os casamentos, ameaçando a existência da instituição familiar.  

Arrisco-me a dizer que pensar na ausência da morte é pior do que cogitar da sua existência. Para muitos ela é repouso, lenitivo, possibilidade de se livrar de uma vida inútil e sem graça. Se a gente mal nasce começa a morrer, como diz o poeta, é porque o espectro da morte nos acompanha desde o início. Seu papel é nos mostrar que, a despeito das clamorosas diferenças que há neste mundo, o fim será o mesmo para todos.

Só mesmo a avidez e a presunção de um bilionário para querer nos privar dessa igualitária e confortadora evidência.   

terça-feira, 14 de novembro de 2023

As cartas

 

Ela estranhou quando o carro parou em frente à sua casa tão cedo. Não costumava receber clientes naquela hora do dia. O homem que desceu do veículo tinha o semblante assustado e, ao vê-la no alpendre, lhe fez um aceno. Ela foi até o portão; antes de abrir, notou as olheiras de quem parecia não ter dormido.   

– Entre, moço – falou, sem perguntar de que se tratava. Não era preciso. A fama que acumulara fazia com que a procurassem sobretudo por uma razão: desfazer algum temor ligado ao futuro.  

Ela o fez atravessar o pequeno alpendre rumo a uma saleta onde havia uma mesa forrada com um pano verde sobre o qual estava um baralho já gasto. Sentou-se e fitou o rapaz com um ar doce e compreensivo. Aprendera, com o tempo, que essa expressão acalmava os que a vinham procurar.  

– O que o atormenta, meu jovem?

Ele baixou a vista e, com algum esforço, falou as primeiras palavras:  

– Daqui a pouco vou encontrar alguém. Quero saber se corro algum risco.

Disse e ficou mudo. Ela esperou que continuasse. Depois ponderou que, se lhe desse uma ideia de que adivinhava o motivo da sua inquietação, despertaria nele mais confiança.  

– O que é que no comportamento dele lhe provocou tanto medo?

“Dele”. Então ela sabia que se tratava de um homem! E, de fato, era o marido da colega de trabalho com quem vinha saindo há alguns meses.

– Como sabe que é “ele” e não “ela”?

– “Ela” ocupa sua mente, mas de outro modo – respondeu com um olhar malicioso, dando à expressão um ar conivente que o confortou.   

A senhora é perspicaz – ele disse, com um suspiro que fez os olhos dela brilharem ainda mais.  

Explicou-lhe então que vinha se encontrando com uma mulher casada. Os encontros ocorriam com a máxima discrição, claro. Chegara a ponderar que o que fazia não estava certo, mas se sentia incapaz de resistir. Desejava-a, tinha paixão por ela, e sabia que era correspondido.

Fez uma pausa, levemente emocionado com o que acabara de dizer. Em seguida explicou que mal conhecia o marido, por isso estranhou o telefonema pedindo-lhe um encontro para falar “da situação profissional da esposa”. Ficou com a mosca na orelha. E se ele soubesse de tudo e pretendesse lhe fazer algum mal?

Depois de ouvi-lo, a mulher pegou o baralho e começou a misturar as cartas.  

– Vamos ver o que elas dizem. As cartas não mentem jamais.

Esse lugar-comum lhe soou como uma verdade profunda. As cartas pareceram infalíveis e certamente o orientariam sobre o que deveria fazer. A mulher pediu que tirasse uma delas, depois outra, juntou as duas e olhou por cerca de meio minuto a combinação. Depois levantou a vista e o fitou com um sorriso entre cúmplice e triunfante.

– Tranquilize-se, meu filho. Ele não sabe de nada.

– Tem certeza de que ignora o que há entre nós?

– Absoluta. Siga em paz e viva com intensidade essa paixão, pois a vida é curta.  

Sorriu, aliviado, e lhe perguntou quanto devia.

– Dê o que o seu coração mandar.

Abriu a carteira e lhe passou uma quantia generosa. O alívio que as palavras dela lhe trouxeram não tinha preço. Ao se despedir, apertou a mão da mulher e agradeceu com uma humildade que a surpreendeu. Ela é que devia se mostrar humilde diante daquele homem elegante e de uma classe social bem superior à sua. Mas o que dá a cada um a medida da sua importância é a situação que está vivendo, e ele se sentia frágil em razão da dúvida que o afligia.    

Depois que saiu, ela contou as notas. Era um montante considerável, que lhe permitiria consertar o ar-condicionado e comprar uns objetos com que vinha sonhando.

Depois do jantar, sentou-se diante da TV para assistir ao noticiário local. Ficou curiosa ao se deparar com a primeira manchete: um marido que se soubera enganado matou com três tiros o amante da esposa. Em seguida vinham detalhes do crime e a foto da vítima. Tomou um susto ao ver que era o homem que tinha vindo consultá-la pela manhã. A mesma roupa, o mesmo cabelo, e nos olhos vidrados um ar de perplexidade.

Por um instante sentiu remorso, mas logo tratou de banir do espírito esse sentimento. Qual fora a sua culpa? Não tinha concorrido para o crime. Deixara o rapaz confortado como podia ter feito o oposto. Se confirmasse as suspeitas dele e estivesse errada, poderia pôr fim à vivência de uma grande paixão.  

Pensando bem, foi melhor que ele ignorasse o que estava por acontecer e marchasse tranquilo para o fatídico encontro. A sentença já fora providenciada pelo destino, e quem era ela para interferir nos seus desígnios? O que fez, no final das contas, foi dar um pouco de ilusão a quem já se condenara pelos seus próprios atos.

Com esse pensamento recontou o que o morto tinha lhe dado, antecipando os pequenos luxos que iria comprar.


O poder da frase