sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Divagando se vai longe (16)


A fé é a convicção que dispensa prova. Atende a uma necessidade subjetiva. Se preciso crer em algo, pouco importa que ele seja ou não verdadeiro. O princípio que impera nesse caso é oposto ao de São Tomé, que queria primeiro ver para só então crer. A lógica (ou antilógica) que preside a fé é o “crer para ver”. Essa visão, claro, limita-se a um indivíduo ou a um grupo que partilha dos mesmos ideais. Não se evidencia para todos, pois não constitui uma realidade objetiva.
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O mercado está tão instável que daqui a pouco vão mudar o nome da Moody’s para Modess, já que a agência altera a classificação de risco todo mês em função das novas regras.
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      O corpo pode ser tanto objeto de enlevo e prazer sexual quanto instrumento de ofensa e agressão. Cheiros, orifícios, excrementos podem servir de referências grosseiras para depreciar os outros. Nesse caso o corpo anatômico triunfa sobre o corpo pulsional; o erotismo cede à fisiologia. A isso corresponde um vocabulário dito chulo, que mostra sem disfarces o lado feio da nossa anatomia.
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Não se pode chamar de acidente uma ocorrência para a qual existem razões objetivas. Uma morte no trânsito provocada por alguém que dirige depois de ingerir bebida alcoólica nada tem de acidental. Foi ocasionada pelos efeitos do álcool e era previsível. Um evento acidental surge do inesperado, do que contraria todos os cuidados e medidas que podem evitá-lo (alguém que normalmente vai ao médico e sofre um infarto ao volante, por exemplo). Não se pode falar em acaso a propósito de eventos para os quais existe a concorrência da ação humana. Acidental, quando alguém bebe e dirige, é ele chegar ao destino sem atropelar ou matar ninguém. A Lei deve levar isso em conta ao julgar quem se alcooliza e comete infração no trânsito. Quem bebe, afinal de contas, sabe o que está tomando e conhece os efeitos que a bebida traz.
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        Amar é respeitar a solidão do outro. É não considerar o seu silêncio como indiferença ou rejeição. Os diálogos que alguém tem consigo muitas vezes só são possíveis porque existe ao lado uma presença confortadora, que estimula a reflexão e impede que a solidão se transforme em abandono.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Divagando se vai longe (15)


Sem consenso não há concórdia. Deveria ser diferente, e o ser humano bem que poderia “associar o coração” mesmo àqueles que pensam diferente dele. Infelizmente está longe de ser assim. Tendemos a só gostar de quem se alinha conosco em termos de política, religião ou moral. Uma prova disso é o clima de inimizade que se criou nas últimas eleições. Ninguém estava disposto a fazer um julgamento racional. Os argumentos não apareciam para fundamentar a verdade, mas sim para justificar uma visão preconcebida. O resultado foi um cortejo de inimizades. Isso porque o raciocínio que determina os afetos é: não posso gostar de quem não pensa como eu, mesmo que essa pessoa tenha virtudes, seja um grande ser humano. Gostamos das pessoas não pelo que elas são, mas pelo que têm em comum conosco.
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Por que se escreve? Porque falta sentido à vida e sobre isso é preciso dizer alguma coisa. A escrita é exercício e aventura. É um jogo sério, pois se faz com palavras, e juntá-las nem sempre conduz ao resultado que se espera. Um jogo de tentativas e muitos erros, mas que nos poucos acertos revela umas tantas verdades sobre nós. O homem não se constrói apenas por obras, constrói-se também por signos; o escritor é o artífice maior dessa construção.
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Segundo Kafka, a paciência é uma segunda coragem. Precisamos ser resistentes para suportar as incertezas da espera. Mas a tendência é agirmos com precipitação por medo do que poderá vir. Paciência não é só coragem; é também confiança.
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         Há pessoas que acreditam num Ser Superior para não se sentir inferiores (arrogância). Outras adotam essa crença para realçar sua pequenez (humildade). O problema não é se Deus existe ou não. É se somos capazes de admitir Sua existência e, sobretudo, que efeito ela terá em nossas vidas. Infelizmente poucos retribuem o conforto de acreditar nele com um comportamento moralmente digno. Vão à igreja para salvar “suas” almas, como se bastasse acreditar para se redimir.
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        As pessoas se assemelham muito nos defeitos e pouco nas virtudes. Certamente porque as virtudes são raras e alcançam um número muito pequeno de indivíduos. Isso explica a identificação promovida pela arte, que enfoca sobretudo as “almas defeituosas”. Encontrar nos personagens as nossas próprias falhas ajuda-nos a conviver com elas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O tema de redação do Enem 2018

A Internet era uma das apostas dos professores para a redação do Enem 2018. A dúvida estava em qual aspecto da WEB a banca poderia enfocar; em 2011, por exemplo, ela abordou o desafio de manter a privacidade num universo em que são tênues os limites entre o público e o privado. Desta vez, solicitou que os candidatos se posicionassem sobre a manipulação do comportamento dos usuários pelo controle dos dados que circulam na Rede.  
O tema não poderia ser mais atual e oportuno. A imprensa tem noticiado com bastante frequência ações que atestam essa manipulação. Seja pela invasão de hackers, seja pela seleção de algoritmos que privilegiam ideologias ou produtos, grandes conglomerados do setor de informática buscam selecionar o que deve e o que não deve chegar aos usuários. Essa atitude, que é um misto de censura e publicidade enganosa, tem colocado em xeque a legitimidade da Web como instrumento da globalização. Ao mesmo tempo acena com a possibilidade de que, se esse processo não for detido, os internautas acabem se transformando em bonecos sem consciência nem vontade.
Como sugestões para o desenvolvimento do tema, a banca apresentava quatro textos motivadores – sendo o terceiro um quadro demonstrativo do largo uso da internet, por jovens e adultos, para funções as mais diversas. Nos três outros, expõem-se diferentes aspectos da manipulação. O primeiro descreve o mecanismo pelo qual se selecionam os produtos enviados a usuários de um serviço de música digital. Um algoritmo fundado em preferências iniciais praticamente determina as escolhas futuras, de modo que se tira do cliente qualquer possibilidade de opção. Ele pensa que é livre, mas seu gosto está determinado.
No texto 2 repete-se o alerta, que se dirige agora aos usuários das redes sociais. Os dados a que eles têm acesso são filtrados por um “exército de moderadores” que controlam aquilo que deve ser eliminado (a propósito, você escolhe mesmo os amigos com quem se relaciona no Facebook? Por que só as mesmas pessoas recebem e curtem suas postagens?). Os algoritmos decidem o que você pode dizer aos seus seguidores; eles opinam por você. Como às opiniões corresponde uma identidade, eles acabam tomando o seu lugar no mundo (esse parece ser o propósito inconfesso da Inteligência Artificial!).  
Os alertas quanto à possibilidade de manipulação se completam no texto 3, que aborda os tópicos de notícia selecionados para chegar até o usuário. Tal seleção põe em dúvida a relevância desses tópicos para a tomada de decisões. Pensamos conhecer os principais aspectos de um problema (por exemplo, os efeitos da imigração na economia de um país), mas deles conhecemos apena uma parte. Isso evidentemente compromete a natureza das nossas decisões, que podem muitas vezes ser injustas.
Uma dúvida dos estudantes é se era pertinente abordar as fake news sem fugir ao tema. A meu ver, sim. O importante era não limitar a abordagem às “notícias falsas”.  As fake news manipulam dados, e na linguagem da informática dado é tudo que entra no sistema – de traços emocionais a fatos ou comportamentos que tendem a se repetir. O computador os analisa e extrai deles determinados padrões (os chamados algoritmos). A partir daí é possível promover manipulações que venham deturpar a compreensão do passado e condicionar ações futuras (como a vitória numa eleição).  
Possuir dados significa ter poder, pois a partir deles torna-se possível elaborar algoritmos que preveem e determinam escolhas não apenas individuais como também coletivas. Essa prática, denominada dataísmo, é longamente discutida por Yuval Noah Harari em “Homo Deus” (de quem, a propósito, apresentamos em um dos nossos Simulados uma passagem retirada do best-seller “Sapiens; uma breve história da humanidade”).  
         Segundo Harari, a base do dataísmo é o reconhecimento, promovido pela biologia e pela ciência da computação, de que “organismos são algoritmos e de que girafas, tomates e seres humanos são apenas métodos diferentes de processamento de dados” (p. 371). Esse ponto de vista tem hoje um largo respaldo científico.
Diante disso, não há por que num tema como a manipulação de dados pela internet deixar de fazer menção às fake news, que buscam confundir a percepção que as pessoas têm da realidade e, por meio disso, “dominar” suas escolhas. As notícias falsas não esgotam as possibilidades de manipulação, repito, mas constituem um bom exemplo de como é possível destruir (ou enobrecer) a imagem de pessoas e instituições a fim de mudar o conceito que se tem delas.
O fato de as fake news não terem sido realçadas nos textos motivadores não significa que o candidato devesse desprezá-las. Como o nome o diz, os fragmentos da coletânea visam motivar e não apresentar tópicos exclusivos; fica a critério do candidato explorar outros que também sejam relevantes. 

Dizer pelo excesso