domingo, 24 de julho de 2011

Impressões do Velho Mundo (4)

A visita à Espanha foi corrida, pois dedicamos três dias a Madri e outros três às cidades de Córdoba, Sevilha e Granada. Tínhamos que fazer opções, e uma delas foi visitar museus. Outra foi se concentrar no centro da capital. Facilitou esta última o fato de nos hospedarmos no Hotel Arosa, que fica numa transversal da cosmopolita e badalada Gran Via.

Sair de Portugal para a Espanha é como deixar um aconchegante quarto de província onde se descansa ao som do fado e ir para uma praça feérica na qual se grita e dança o flamenco. Lisboa tem algumas centenas de milhares de habitantes; Madri, quatro milhões. Mas o contraste não vem dessa diferença quantitativa; vem da combustão interna das pessoas, alguma coisa que se instila no sangue e, caso não seja controlada, pode se refletir em antipatia ou mesmo agressão.
Um de meus termômetros para avaliar a disposição espiritual dos habitantes de uma cidade é o comportamento dos motoristas de táxi. Saindo da estação “Atocha” entramos em um desses transportes e pedi ao motorista que nos levasse ao hotel, que ficava na Rua Salud. Pronunciei mal o nome (disse alguma coisa como “Salute”) e fui corrigido em tom arrogante: “’Salute’ é italiano. É ‘Salud!’”. Interpretei o reparo como uma prova de zelo pela língua e o aceitei com humildade.
Pouco depois chegávamos à tal rua e vi que o táxi que levava nossos companheiros de viagem estava parado em frente ao hotel. Não havia necessidade de esperar que descessem para sairmos do nosso, de modo que informei ao motorista que íamos saltar. Eu e minha mulher já havíamos semiaberto a porta quando ele, vendo que o outro táxi se afastava, arrancou em meio aos nossos gritos. Irritara-se talvez porque pretendíamos descer antes do local combinado, e por pouco não nos jogou no chão. Não pude deixar de notar o contraste: em Lisboa nos deparamos com motoristas ranzinzas, mas em nenhum momento com um maldoso.
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À noite fomos ver o primeiro espetáculo de flamenco a que assistiríamos no país (o segundo seria em Granada). A dança ocorre num tablado que se projeta em direção à plateia. Primeiro entram os músicos e se postam na parte de trás, um ao lado do outro. Alguém dedilha a guitarra, outro percute o pandeiro, e o solista entoa uma melodia de agudos lastimosos que mais parecem uma queixa.
Vêm os dançarinos e começam a se apresentar, um por um, cada qual buscando superar o outro na perícia do sapateado. Os pés vibram, multiplicam-se, tirando da madeira lascas de fúria e som. O matraquear ininterrupto deixa suspensa a plateia (noto ao meu lado um japonês boquiaberto, a máquina fotográfica esquecida no colo).
Depois da primeira dançarina, esbelta e flexuosa como uma índia de Alencar, vem outra de aspecto matronal. Parece uma mamma italiana e não uma dançarina de flamenco. Dela se espera pouco, mais aí está o engano; a mulher tem eletricidade nas pernas. Um lado bom dessa dança é que seus praticantes demoram a se aposentar. Não precisam de todo o corpo -- bastam a alma e os pés.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Impressões do Velho Mundo (3)

Dizem que o europeu trata hoje melhor os turistas devido à crise econômica. Precisa dos euros que eles deixam no continente. Quem esteve por lá há vinte, trinta anos, garante que o francês não era tão cordato. Nem o português tão paciente com as perguntas “óbvias” feitas pelos brasileiros (para nós, a obviedade é sobretudo deles). Seja qual for a razão, o fato é que não percebi a antipatia nem a soberba com que frequentemente pintavam para mim os habitantes do Velho Mundo.

O que notei por vezes foi um ar repreensivo para com nossa espontaneidade latina. Quando em Córdoba entramos num restaurante e juntamos as mesas, o garçom comentou que não havia necessidade disso para apenas seis pessoas. A partir daí, ficou de cara amarrada. Felizmente na hora em que chegamos ainda não se servia o almoço, somente as “tapas” (entradas), o que nos levou a deixar o local. Fomos comer em outro canto, onde não era preciso juntar mesas.
Com os garçons, por sinal, tomamos conhecimento de uma característica dos europeus que me soou muito simpática -- a intolerância à pressa. Também sou lento e abomino este mundo americanizado, que faz da velocidade uma virtude. Não adiantava chegar no restaurante e convocar logo o garçom (ou seja, era prudente não ir com muita fome). Ele simplesmente não vinha e parecia ter especial satisfação em punir o ansioso com mais demora. Fomos nos acostumando e aprendendo a esperar.
Quando enfim aparecia, o tratamento que nos dispensava era respeitoso e equânime. Com uma eficiência destituída de segundas intenções. A razão maior para isso é que lá não existe o tal dos 10%, que no Brasil é fonte de raiva e discriminação. Raiva do funcionário, que não recebe do patrão esse percentual; e discriminação com os clientes que porventura se negam a pendurar na conta o acréscimo abusivo. Ninguém servia esperando a gorjeta, e quando a recebia se mostrava surpreso -- sobretudo, é claro, se a quantia superava as expectativas. E não precisava ser 10%; dois ou três euros era suficiente para provocar um sensibilizado agradecimento.
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Eu só conhecia Óbidos pela descrição que dela faz Érico Veríssimo em “Solo de Clarineta”. O gaúcho apresenta-a como “um prodígio de pacífica convivência arquitetônica e urbana e de graciosa economia de espaço”. Destaca suas ruas estreitas e curvas, que “sobem e descem, pavimentadas de pedra irregular, por entre as quais crescem ervas”.
“Ela é isso e muito mais” -- pensava eu enquanto caminhava pela cidade-fortaleza que Dom Dinis deu de presente a Isabel de Aragão. Não que falte rigor descritivo ao autor de “Música ao vento”. É que nenhum retrato que se faz de gente, cidade ou paisagem se compara à percepção real que temos delas.
Estar em Óbidos era deixar de imaginá-la a partir de um desenho feito por outrem. Era sentir nos pés e nos olhos a estreiteza daqueles sobrados e becos, e de repente se deparar com um portal mourisco, um par de colunas gregas ou uma sacada de onde os namorados se acenavam com o recato próprio da época. Uma época tão surpreendente, que era possível a alguém presentear a mulher com uma cidade e tudo que havia nela.

domingo, 10 de julho de 2011

Impressões do Velho Mundo (2)

Os três fadistas se revezam, juntos, a intervalos de dez ou quinze minutos. Entre as apresentações comemos sardinhas e tomamos vinho no bar do aconchegante distrito de Alfama. Nossa atenção se divide entre os cantores e o movimento do povo na ruazinha serpenteante e de paralelepípedos saltados (uma tortura para o sapato das mulheres). Passam turistas, mercadores, mulheres de preto, jovens tatuados. É Lisboa à noite, e praticamente acabáramos de chegar do Brasil.

De repente ouve-se um agudo que parece querer perfurar nossa alma. Não chega a isso, claro, mas a intenção é mesmo atingir o fundo de nossas emoções. Bater lá dentro para evocar perdas passadas, a tristeza de um amor perdido, o vazio de um sonho que se desvaneceu em suas próprias brumas. É uma nova rodada de fado que se inicia. Meus olhos se voltam da rua para os cantores, que se mostram contrariados quando não são ouvidos com religiosa atenção. Dá para entender. O fado não é apenas música, é um ritual em que se celebra determinada forma de sentir a vida. Tem que ser acompanhado com respeito e silêncio.
Quando a audição acaba, um dos cantores -- de terno branco e lenço azul emergindo de um dos bolsos do paletó -- aproxima-se de nós e pergunta com suave aflição: “Estão a gostar?”. Claro, claro, respondemos, não sem trocar uns com os outros um maroto sorriso latino, que logo se apaga. O homem se afasta, satisfeito. Dentro em pouco virá nova rodada, mas já de barriga e espírito cheios deixamos a tasca e vamos circular pelas ruazinhas do distrito.
Elas são cercadas de sobrados antigos, quase todos do tempo dos mouros. Nas varandas, dependuradas como estandartes, fileiras de roupas para secar. Vestidos, camisas, cuecas, calcinhas -- um vestuário banal que se carrega de exotismo para a nossa curiosidade de turistas.

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No dia seguinte vamos visitar o Mosteiro dos Jerônimos. É uma construção em estilo manuelino, a que se associam elementos góticos e renascentistas. Foi construído em 1502, segundo me explica o guia, para celebrar a viagem bem-sucedida de Vasco da Gama às Índias.
Fazemo-nos fotografar em frente a sua fachada portentosa, que mistura imagens, colunas despojadas e ornamentados capitéis. Depois entramos na nave, cuja imensa arqueadura sugere mistério e grandeza. Alguém me indica o túmulo de Vasco da Gama, que está por baixo de uma galeria, mas não me emociono tanto quando diante do túmulo de Camões.
Sei que essa é uma lápide simbólica, ninguém jamais encontrou o corpo do autor d’Os Lusíadas --- mesmo assim ela é que mais me impressiona. No momento em que a visito, um grupo de camonianos cerca a estátua do bardo. A homenagem se deve a que nessa data, 10 de junho, comemora-se o aniversário da sua morte e o Dia de Portugal. Os admiradores discursam e cantam com um ar devoto. Parecia que ele era ali o maior dos santos.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Impressões do Velho Mundo

Ir à Europa foi, durante muito tempo, o sonho de todo brasileiro em certo momento da vida. Depois de trabalhar, adquirir patrimônio e fazer um razoável pé de meia, chegava enfim a hora de conhecer o Velho Mundo. Lá tinha história, nobreza, tradição, e o lustre que faltava aos “bárbaros” da América.

Numa passagem de “O cortiço” Aluísio de Azevedo refere entre os sonhos do burguês João Romão ir ao continente europeu e com isso fazer inveja aos que por aqui ficavam. Romão não pensava em aprender nos museus ou nas excursões pelos recantos históricos; não queria absorver o conhecimento de séculos e séculos de civilização. Queria tão-somente mostrar aos outros que pudera fazer a viagem. Voltaria o mesmo sujeito de espírito bronco que usara os recursos mais torpes para enriquecer -- mas a notícia de que estivera por lá lhe daria alguma forma de distinção.
Hoje as coisas mudaram. Com o desenvolvimento do setor turístico e o barateamento das passagens, não é preciso esperar muito para cruzar o Atlântico -- a não ser, como no meu caso, que o receio esteja mesmo em cruzar o Atlântico. Tudo ficou tão mais fácil, que acabei tomando coragem e indo. O roteiro incluiu Portugal (Lisboa), Espanha (Madri, Córdoba, Sevilha, Granada) e França (Paris).
A quem me pergunta “como foi?”, “valeu a pena?”, “o que mais lhe impressionou?”, respondo que meu espírito ainda está aterrissando (sem que nesse verbo haja nenhum tipo de menosprezo). Ver todos esses lugares em cerca de 18 dias representou uma maratona para o corpo e um deslumbre para a alma. Vai ser preciso tempo para processar tantas informações colhidas em prospectos, fones de guias turísticos, audiofones de museus. Por enquanto, prevalecem as impressões; depois virá o entendimento.
Evitei ao máximo ler jornais e assistir à TV durante a minha estada, mas não precisava deles para perceber que a Europa está em crise. Em Portugal, mais de um motorista de táxi falou sobre o assunto. Na Espanha, cruzamos tanto em Madri quanto em Sevilha com uma passeata de “indignados”, que bradavam palavras de ordem contra os ricos. Paris foi dos poucos lugares onde não vi manifestação alguma, mas isso não surpreende; com tantos turistas nas ruas, os manifestantes não teriam por onde transitar.
Sempre ouvi que o europeu é grosso, intolerante e de poucas palavras. Esse mito caiu depois da viagem (sobretudo em relação aos franceses). Com raras exceções, as pessoas a quem nos dirigimos nos trataram com simpatia e afabilidade.
Quem não está prevenido pode estranhar, em Portugal, uma espécie de “obviedade linguística” que parece estar entre a ingenuidade e o sarcasmo -- mas talvez não seja nada disso. Dois exemplos: uma noite, saindo da Alfama, perguntamos a um transeunte qual o melhor transporte para voltarmos para o hotel. Ele respondeu mais ou menos o seguinte: “- Se forem de ônibus, terão que seguir o trajeto especificado. Já o táxi vai deixá-los onde queiram ficar.” Agradecemos a preciosa lição.
Na volta à Lisboa, vindos de Madri, perguntamos ao funcionário que carimbava os passaportes onde ficava o portão 45 (no qual embarcaríamos para o Brasil). Resposta: “Fica depois do 44".

Dizer pelo excesso