terça-feira, 31 de outubro de 2023

Notas de Amsterdã

 


Amsterdã é um caos ordenado. Caminhões da limpeza urbana invadem as calçadas, mas não nos deixam chateados com isso. O pessoal está fazendo com educação um trabalho que vai ajudar o trânsito dos pedestres em seu embate com as bicicletas.

É mais fácil ser atropelado por uma delas do que por um Tram, que afinal tem um trajeto predefinido. As bicicletas, não. Existem as ciclovias, que praticamente cortam a cidade, mas essas nem todos os ciclistas respeitam (muito menos os turistas, que são muitos).

Como estivemos por lá em tempo chuvoso e frio (cerca de 8° C), não deu para apreciar a beleza dos canais. O escuro das águas e a densa neblina impediam isso.

Concentramos então o passeio na Praça Dam e seus arredores. Apesar do clima, a praça estava cheia de turistas e daquela “fauna” característica da cidade (destaque para os jovens estilosos com suas tatuagens e para os religiosos vestidos a caráter). 

Vez por outra uma revoada de pombos respondia ao perfurante barulho de uma ambulância que levava alguém para o hospital. Não fosse pelos pombos, que ofereciam um belo espetáculo visual e auditivo, talvez ninguém notasse.

Uma das marcas de Amsterdã é a liberdade, que se expressa, por exemplo, no reconhecimento profissional da prostituição. Enquanto circulava por ruas do Bairro da Luz Vermelha (acompanhado da minha esposa, ressalto!), pude ver as mulheres que se exibiam em janelas ou vitrines – algumas bonitas, outras não; algumas jovens, outras perto de dar entrada no pedido de assistência que o Estado oferece às já desprovidas de encantos para exercer o ofício. 

O que senti circulando no Bairro da Luz Vermelha foi um movimento pouco condizente com a natureza do comércio que se realiza por lá. Sou um romântico e acho que, mesmo no amor pago, deve-se preservar uma nota de discrição e um tom de meia-luz. 

         Millôr escreveu que “turismo é prostituição”, tendo em vista que por meio dessa atividade se vendem a estrangeiros alguns dos valores mais caros e íntimos de um lugar. Caminhando por aquela zona de Amsterdã, ocorreu-me uma inversão da frase: “prostituição é turismo”. Enquanto acompanhava os curiosos, eu me perguntava se aquela ostensiva exposição da mais antiga das profissões não subtraía o que nela deveria haver de atraente e misterioso. 

O comportamento dos jovens é outro dado que atesta a liberdade dos costumes na capital da Holanda. Um dos símbolos disso é a propaganda da cannabis, que não se encontra apenas nos cigarros. Aparece também em pastilhas, biscoitos, pirulitos, prometendo aos degustadores relaxamento e um pouco de paz. Uma “brisa”, como eles costumam dizer.

O problema é que, por falta de medida, essa “brisa” pode se transformar em vendaval. Foi o que vimos quando voltávamos para o hotel, à noitinha, e nos depararmos com uma cena patética e dolorosa: num grupo de três adolescentes, uma delas procurava segurar a colega que bambeava e acabou, apesar dos esforços também da terceira, se esborrachando no chão. Afastamo-nos um pouco assustados, vendo as duas tentando reanimar a mais inebriada.

Enfim, coisas de uma cidade que, além da erva, tem tulipas e moinhos. As primeiras não conseguimos ver agora, pois só florescem no mês de abril, mas há delas reproduções nas inúmeras tendas que se estendem pelas calçadas; as mulheres do nosso grupo compraram algumas. Quanto aos moinhos, ficou deles a lembrança de outra estada, em 2018, quando pudemos apreciá-los num bate e volta para Zaanse Schans.

        Meu sonho é que as duas experiências se repitam.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Crises

 

             As crises são produtivas e mesmo desejáveis. Precisa-se delas para crescer. Isso é verdade tanto para a História quanto para os indivíduos. Historicamente, a períodos de crise sucedem outros de euforia e progresso (os pós-guerras atestam essa verdade). No que diz respeito às pessoas, há relatos de crises que ensejaram profundas mudanças existenciais.

          O problema é quando elas se tornam frequentes e mesmo viciosas. Há quem se acostume a viver em conflito consigo mesmo e cultive com certa morbidez o mal-estar que isso traz. Para gente assim, os momentos críticos não são estágios para o amadurecimento pessoal; persistem como uma espécie de segunda natureza. 

         Tenho um amigo assim. Sempre que conversamos, ele diz que está insatisfeito com a vida e se preparando para mudanças radicais. Ora pretende largar o emprego, ora se dispõe a deixar a mulher (que nunca deixa, por medo de ficar sozinho). Quando lhe pergunto quais seriam os novos planos, ele não sabe responder. Quer dar uma guinada na vida, mas ignora em que direção.

           As conversas com ele me lembram o adolescente que fui – cheio de dúvidas e temeroso do futuro. Com quem namorar? Que carreira seguir? Que amigos cultivar? Questões como essas não raro me tiravam o sono, mas na adolescência isso é natural. Está-se numa encruzilhada quanto a escolhas que vão repercutir no restante da vida – e sabendo muito pouco do que a vida é. Vivenciar tal paradoxo, convenhamos, precipita qualquer um no torvelinho da crise.     

           Às vezes esse emaranhado de indecisões persiste em estágios posteriores, chegando à idade adulta e se projetando na velhice. Geralmente quem passa por isso diz que ainda não se encontrou (é tão longo esse “ainda”, que faz pensar em “nunca”). Quando enfim se dará esse encontro, para o qual a pessoa parece não estar (ou não ser) preparada?

         Meu amigo fez análise, mas depois de algum tempo desistiu. Espirituoso, me disse que seu problema não é o inconsciente, mas excesso de consciência. Esse diagnóstico pode ser interessante como jogo de palavras, mas encobre um ceticismo que beira a desesperança. Se ele rejeita a análise mas não consegue se livrar do pessimismo renitente, que procure outra alternativa. No limite, mesmo autojuda pode servir – desde que seja com fé.

            Faz dias que não nos vemos, mas sei que ao reencontrá-lo vou me deparar com o mesmo semblante sombrio e as velhas queixas. Ele me falará de suas novas deliberações e me pedirá que opine sobre elas. De que adiantaria opinar? Quem não consegue ouvir a si mesmo não vai querer ouvir os outros. Mas serei complacente quando ele começar, como das outras vezes: “Rapaz, agora é sério! Nunca estive tão mal...”.  


 

terça-feira, 3 de outubro de 2023

A busca de ser lembrado

 

Gosto do termo “brumas” para figurar o esquecimento. O que vivemos se perde numa massa brumosa que dissipa as impressões do que passou. Não se revive nada, toda lembrança é o registro de uma perda. Ainda assim insistimos em lembrar, pois disso depende em grande parte a nossa identidade. 

       Outro vocábulo que também representa o que na memória se perdeu é “oblívio” – mas desse ninguém se lembra. É um vocábulo erudito e um tanto assustador. Por também significar repouso, tem alguma ligação com a morte. 

         “Amnésia”, sim, é patológico. Sugere uma perda temporária das lembranças devido a lesão cerebral ou à ingestão de determinadas substâncias. Seu radical evoca Mnemosine, a deusa que para os gregos determinava a lembrança e o esquecimento. Segundo a mitologia, os mortos que bebiam da água do seu poço relembravam suas vidas. 

O esquecimento é o que mais tememos na morte, por isso o tema da memória provoca de forma tão intensa o nosso interesse. Quando se pensa em não morrer, ficar “para sempre”, pensa-se na verdade em permanecer na memória das pessoas. 

A morte se consuma, não quando perdemos a vida, mas quando o que fomos desaparece por completo da lembrança dos vivos. Daí o empenho em que fique registrado o nosso nome nas obras de arte ou no acervo de instituições como academias, confrarias religiosas, associações de notáveis – que às vezes nem são tão notáveis assim, mas fazem questão do registro; o importante é que o nome esteja lá. 

Nesse esforço de ser lembrado há quem desconheça a fronteira entre o bem e mal. Pouco importa se o recordam como um monstro ou um psicopata, desde que seus atos imprimam uma marca indelével na memória dos outros. Nesse grupo se enquadram os assassinos de celebridades ou os que, no exercício de funções delicadas como a de pilotos de aviação, produzem tragédias que levam à destruição de inocentes.  

Muitos fazem tudo pela glória póstuma esquecidos de que o essencial mesmo é “permanecer”        enquanto estiverem vivos. Isso significa atuar, comprometer-se, ser determinante na vida dos que deles dependem ou com os quais mantêm vínculos de afeto.   

Quem falha nessa tarefa, muitas vezes em prol de uma duvidosa notoriedade aos olhos dos pósteros, está condenado ao esquecimento em vida (um esquecimento que por vezes se confunde com desprezo). E deve amargar para sempre os efeitos da escolha errada.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A voz

 

Em 2023 completei 50 anos de magistério. É muito, mas não o suficiente para ter aprendido o que devia – sobre o que ensino e, mais ainda, sobre o ato de ensinar.  Tudo começou por influência (e intimação) de meu pai, que era professor no Liceu Paraibano e em escolas particulares da capital. Certa vez um pequeno grupo o procurou para dar aulas para concurso público. Sem tempo, e sabendo do meu gosto pelas letras, ele transferiu a tarefa para mim.

Eu não me sentia “pronto” e, num primeiro momento, pensei em recusar. Gostava de ler, mas tinha pouco conhecimento sobre a língua portuguesa. Além disso, era excessivamente tímido para encarar uma plateia mesmo pequena como aquela. O “Velho” insistiu e me apontou a estante, onde havia gramáticas e dicionários. Veio daí meu primeiro contato com Celso Cunha, Evanildo Bechara, Rocha Lima e outros que me instruíram no uso da chamada norma culta. 

Além do que aprendia com eles, eu lia o que encontrava de literatura na estante. Meu pai gostava de Machado, Eça, Cyro dos Anjos, autores mais ligados à tradição lusitana e cujo uso da língua se distanciava do oralismo que marcava a modernidade. Mais de uma vez o ouvi falar em estilo castiço, adjetivo em que se misturavam o respeito à norma e o vínculo com a tradição. Eu temperava essas leituras com a de Jorge Amado, José Lins do Rego e dos cronistas modernos – Rubem Barga à frente.

Aceitei essa primeira turma, muitas vezes estudando na véspera a aula que daria no dia seguinte, e a partir e daí não parei mais. Mesmo porque era precioso o dinheirinho que ganhava com as aulas particulares, que me permitiam bancar a cerveja do fim de semana com os amigos. O “Velho”, afinal, nunca fora pródigo nas mesadas. Vez por outra eu lhe passava “um pinto”, mas de uma quantia tão minguada quanto a ave que serve de metáfora ao surripiamento que os adolescentes costumam fazer na carteira dos pais. Se a quantia fosse grande, o infrator poderia ser descoberto e ter que aguentar, no mínimo, uma vergonhosa repreensão.

Depois de algum tempo lecionando em residências, veio o momento de dar aulas numa instituição escolar. Eu tinha 22 anos quando ingressei no Curso 2001, então localizado à rua Duque de Caxias.  Ele funcionava num sobrado de dois andares e ar vetusto, como eram muitos daquele logradouro. Depois de um ano numa espécie de estágio probatório, ouvi do diretor Roberson Vasconcelos (que também ministrava a disciplina) a informação de que a partir dali as aulas de Língua Portuguesa ficariam inteiramente por minha conta.

Comecei então a vivenciar uma situação paradoxal. Como em 1971 eu passara no vestibular para Medicina, tive que conciliar as aulas do Ciclo Básico com as tarefas no 2001. Muitas vezes saía do Hospital Santa Isabel, onde pagava cadeiras como Semiologia e Técnica Cirúrgica, para dar aulas no cursinho. Era estranho aquela figura de jaleco branco entrar na classe e começar a falar em temos da oração, mas logo o pessoal se acostumava.

Ali começou um trabalho que se prolongaria pela vida afora. Não vou repisar aqui as “agruras” do magistério, que no Brasil é pouco reconhecido e mal remunerado. Se tivesse que me arrepender devido à falta de reconhecimento e à baixa remuneração, características que de antemão conhecia, eu nem teria começado. Fiz a escolha por confiar em que a vocação supriria o que houvesse de menos financeiramente compensador no ofício. Afinal, ela é a voz que dita a última palavra – e ai de quem se faz surdo ao seu apelo.

O poder da frase