quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Voyeur da alegria

Nunca fui de brincar carnaval. Sempre me faltou espontaneidade para aderir ao torvelinho da massa, cantar e dançar com faz a maioria. Tem gente para quem os acordes de Vassourinhas soam como uma faísca elétrica, um toque de despertar que acende espasmos no corpo.
Infelizmente, não sou assim. Talvez por isso desenvolvi uma envergonhada inveja dos que conseguem entrar na folia (que etimologicamente significa “loucura”). De onde vem esse élan dionisíaco, que os faz entregarem-se com tanta espontaneidade à música e a dança? Não há resposta. É coisa de cada um. Enquanto uns se animam mesmo sem álcool, outros preferem observar a alegria alheia.
Isso não significa que gente como eu não sinta as vibrações do carnaval. A inaptidão física para os pinotes e saracoteios nos faz enrustidos, mas não indiferentes. Há até uma vantagem nesse comedimento: ele dá um tempero nostálgico à festa e, com isso, revela-lhe a dimensão estética. Como nos alheamos da ação – já que somos voyeurs da alegria –, apuramos nosso senso contemplativo.
O problema é que essa visão é às vezes distorcida por uma concepção romântica do evento. Imaginamos paixões fugazes, súbitos encontros com odaliscas pálidas. Procuramos uma essência que o movimento concreto dos corpos suados, ali diante de nós, só faz desmentir. Como vislumbrar nessa profusão de nádegas frenéticas o rosto magoado de Colombina? Como, nestes tempos de camisinha profilática, viver um autêntico amor de carnaval?
A verdade é que procuramos não o carnaval real, mas uma imagem que nossa inaptidão para a folia nos ensinou a cultivar. Mas quem não procura isso? Os que sem dificuldade aderem à festa também estão, em alguma medida, em busca do sonho. De um nirvana etéreo, ou antes etílico, alimentado por um ideal.
O que muda é a forma de vivenciar a alegria. Uns se entregam com o corpo, outros só com o espírito. No fim todos nos deparamos com a Quarta-Feira de Cinzas, que é o vestíbulo para mais um ano de trabalhos e penas.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Domingueiras

É melhor casar do que viver só. Casamento é solidão assistida.
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Uma tarde, caminhando pelo Largo do Machado, li num muro esta paródia do famoso verso de Vinícius sobre o amor: “Mas que seja infinito enquanto duro”.
A paródia é grosseira, mas não deixa de ter seu grau de verdade.
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Solidão que não se escolhe é abandono.
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Geralmente, quem lê bem signos não lê bem fatos nem pessoas. O grande leitor de livros aprimora sua capacidade de ler livros, mas pode se revelar um tolo ao interpretar o mundo real. Se a leitura se torna um vício, alheia-nos da realidade como outro vício qualquer.
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Dia desses visitei o escritor Ascendino Leite e o encontrei abatido, recuperando-se de uma inflamação no maxilar. Ascendino atribui todos os males por que vem passando à velhice, mas não teme a morte.
Quando falamos sobre o assunto, ele me disse que fazia suas as palavras de Leon Bloy sobre o enigma do “outro lado”: “Nenhuma angústia ou sobressalto, apenas uma grande curiosidade”.
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Foi professor, morreu pobre. Mas pelo menos teve uma vida de classe.
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Quando eu tinha 30 anos, sonhava em me aposentar com 50 para vestir bermudas e me embalar numa rede depois do almoço. Cheguei a essa faixa de idade e não pude, nem quero, realizar esse sonho. Atribuo a mudança de planos ao espírito da época, que é determinante para a forma como encaramos a vida. Há 20 anos, nossa grande fantasia era não fazer nada. Hoje, tudo nos encoraja a não parar.
O que se perde com isso? Talvez a disposição contemplativa, própria dos que envelhecem no ócio. Mas também a barriga, o reumatismo e aquele tédio que é uma espécie de ante-sala da morte.
**** Solidão não é ir dormir sozinho. É não sonhar com ninguém.

Falta de jeito

Terça-feira passada, como sempre ocorre no Big Brother, foi dia de paredão. Quem assistiu ao programa notou um fato curioso: antes de apresentar o veredicto do público, Pedro Bial leu um discurso indicando o motivo para a eliminação do candidato.
O discurso tinha a veemência possível num programa dessa espécie e o caráter de uma reprimenda. Parecia que a produção fazia um alerta, embora desnecessário, aos demais concorrentes.
O teor das palavras do apresentador foi mais ou menos o seguinte: não basta estar aqui; é preciso mostrar que se quer ganhar o jogo. Ninguém perdoa quem se comporta com mornidão e sugere que é indiferente continuar ou não na disputa. Se os candidatos não demonstram ambição e gana, a batalha perde o sentido.
Mal ele começou a falar, já sabíamos quem ia sair. O fleumático ali não era o Rafinha, que desde a escolha para o paredão parecia um pássaro assustado. Vez por outra as câmeras o mostravam sozinho, com o ar sombrio e os lábios se mexendo como se estivesse rezando. Quem parecia alheio ao drama, posando de espectador, era o cearense Rafael “Galego”. O público não lhe perdoou esse aparente desligamento.
Ao ir embora, o acadêmico de medicina não quis ficar por baixo. Meio sem jeito, atrapalhado com as luzes e as câmeras, deu a entender que tinha consciência do que havia feito. Seu mutismo fora estratégico. Estivera na casa “para curtir”, para assumir uma postura que, ele sabia muito bem, não ia agradar nem aos telespectadores nem à produção do programa.
É difícil acreditar nessa justificativa. De repente o rapaz tímido e tartamudo, que sempre víamos com a mão no queixo como se quisesse proteger o rosto dos olhares do Brasil, assume ares de contestador. Procura passar a imagem de um anticandidato, para quem pouco importava ganhar ou perder.
Não teria sido mais honesto admitir que lhe faltava jeito? Nem todos os que são escolhidos por causa da beleza se dão bem no dia-a-dia da casa. Para estar ali é preciso ter malícia e algum despudor. É preciso saber “fazer um tipo”, demonstrar esperteza sem chegar ao extremo do mau-caratismo.
Rafael parecia longe de preencher esse figurino. Então se comportou como a raposa da fábula, dando a entender que esnobava o programa e seus participantes. Fingiu na hora errada e acabou se revelando incoerente. Se menosprezava assim aquele circo, o que é que estava fazendo lá?

domingo, 20 de janeiro de 2008

A boa escrita

Você escreve certo ou escreve bem? Essa pergunta pode soar estranha, mas o fato é que nem sempre um texto correto é um texto bem escrito. Para chegar à correção, basta que se tenha o domínio das normas de gramática.
Já o bem escrever pressupõe algo mais. Depende de consciência lingüística. Quem a tem fica menos ligado nas regras do que no poder comunicativo e no valor expressivo das palavras.
A consciência lingüística está levando, por exemplo, à aposentadoria da mesóclise. Antigamente era sinal de distinção encher o texto de “far-lhe-ei”, “dir-te-ia”, “vê-lo-ás” e construções semelhantes. Jânio Quadros, que era professor de português, notabilizou-se por empregar o pronome no meio do verbo até em bilhetinhos para os assessores.
Hoje se prefere dizer “Lhe farei uma visita” a “Far-lhe-ei uma visita”. A segunda construção soa pernóstica, pouco natural. A pronúncia retorcida das construções mesoclíticas não resistiu ao despojamento da nossa época. Escrever bem hoje é valorizar as formas breves e simples, que atingem com mais eficiência o leitor.
Não foi apenas a mesóclise que se ausentou do cardápio. No plano semântico, passou-se a valorizar as palavras de uso comum. “Propósito” em vez de “desiderato”; “destacado” no lugar de “conscípuo”; “desprezível” preferencialmente a “despiciendo”.
No domínio da sintaxe, períodos longos e invertidos deram lugar às orações absolutas e à ordem direta. Em vez de “Ontem, depois de horas de espera, quando ninguém mais achava que o roqueiro Z aparecesse, ele resolveu sair do hotel e dar autógrafos aos fãs” – esta construção mais clara e simples: “Ontem o roqueiro Z resolveu sair do hotel e dar autógrafos aos fãs. Isso depois de horas de espera, quando ninguém mais achava que ele aparecesse”.
Escrever bem é pensar no leitor. Não é justo fazê-lo quebrar a cabeça com períodos quilométricos ou palavras cerebrinas. Por sinal, acabei de fazer isso ao usar o termo “cerebrinas”. O consolo é que ninguém perde nada indo ao dicionário. A simplificação da linguagem, própria dos tempos que correm, não nos deve levar a esquecer esse hábito salutar.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Modéstia e linguagem

A vaidade e a presunção são defeitos sociais graves. Quem é modesto obtém com mais facilidade a aceitação dos outros.
Não me refiro obviamente à modéstia falsa, que não passa de um disfarce para mascarar a soberba. Falo de uma modéstia sincera e desarmada – esse traço gentil do espírito. Ela é um atributo dos simples, que segundo a Bíblia herdarão o reino dos Céus.
É verdade que, nestes tempos de ceticismo e muita ânsia aquisitiva, talvez a muitos não interessem os latifúndios celestes. Eles prefeririam algo mais concreto e próximo, como um terreno em Intermares ou um apartamento no Cabo Branco.
Enquanto não chegam esses bens (e sobretudo na falta deles), vale a pena ser cordato para transitar melhor entre os semelhantes.
A modéstia é sobretudo uma questão de linguagem. A gente se revela presunçoso menos pelo que faz do que pelo que diz. E quando diz o que não faz o indivíduo peca duplamente, acrescentando à arrogância a mentira. É preciso, então, muito cuidado com o discurso.
Como ser humilde lingüisticamente? A grande estratégia é usar pouco o eu. Cada um é o principal personagem da sua vida, claro, mas para que ilustrar isso o tempo todo?
A armadilha do “eu” é tão perigosa que, no registro formal da língua, sugere-se para escapar a ela o uso do plural da modéstia. “Vimos”, em vez de “venho”. “Solicitamos”, em vez de “solicito”.
Fale pouco de si e, ao fazê-lo, não abuse dos adjetivos. Deixe aos outros a tarefa de enumerar seus atributos. Com alguma prática é possível fazer da vida um texto ameno, em que a impessoalidade generosa se sobrepõe ao individualismo excludente.

Entre o jogo e a verdade

O que chama a atenção nas entrevistas dos candidatos ao Big Brother é a falta de humildade. O discurso deles segue o mesmo diapasão:
- Estou aqui para fazer a diferença. Não vou deixar pra ninguém.
- Sabe aquela pessoa que, quando chega, decide? Sou eu.
- Olha, cara, o Brasil vai me amar, me adorar. Pode ficar certo disso.
- Sou não menos que demais.
Parece até letra de Caetano. Qualquer um dos concorrentes deixa Narciso com complexo de inferioridade. E nós, seres comuns, feitos de carne, osso, medo e insegurança, ficamos nos perguntando qual a fonte de tanto egocentrismo. O normal seria proclamar a vitória no fim, mas eles já começam se dizendo campeões.
É claro que ser selecionado constitui uma vitória. Para estar entre os 14 eles tiveram que vencer milhares de candidatos e se destacar por virtudes como beleza, desembaraço, personalidade, carisma. Mas isso não basta para justificar o delírio de grandeza.
O que os leva, então, a se dizerem os maiores? Uso o verbo “dizer” não por acaso. Dizer é diferente de sentir. Muitos dos que se dizem “os tais” sabem que são menos do que isso. Mas não podem fugir ao blefe, que faz parte do jogo.
Em situação normal, quem se diz extraordinário deve ser olhado com desconfiança. No tipo de competição em que eles se encontram, exaltar as próprias qualidades é o primeiro passo para criar uma imagem. Essa imagem será decisiva para impressionar o público, que não gosta de perdedores.
Mas o público também não gosta de mentirosos. Quem diz que é sem ser, ou sem pelo menos se aproximar da excelência que apregoa, terá a punição devida. Não sou de ficar vendo o Big Brother, mas se há um aspecto que me interessa no programa é o desmonte gradativo dessas qualidades forjadas.
Nesse tipo de jogo é fundamental a simulação, e ninguém pode simular o tempo todo. Em um ou outro momento de descuido, transparece como num negativo radiográfico a dimensão obscura e real de cada um. O público gosta de cultivar ídolos, mas também se delicia com a revelação desse lado fraco e por vezes mesquinho. Ela, e não o trombetear de virtudes ilusórias, é que vai decidir quem sai e quem fica.

Dizer pelo excesso