segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A docência dos medíocres

Li num dos números recentes de “Veja” que os bons alunos brasileiros não querem seguir o magistério. Quem deseja abraçar essa carreira são os estudantes medíocres. Segundo pesquisa apresentada na reportagem, ser professor é o horizonte do “grupo dos 30% com as piores notas no boletim”. Parece que a sala de aula não atrai os que se acham preparados para conquistar coisa melhor.
Não acredito que essa recusa ao magistério se deva à profissão em si. O ensino não é dos ofícios mais árduos se o comparamos, por exemplo, com a burocracia ou com determinadas atividades do setor econômico-financeiro. Não há dúvida de que ele motiva sobretudo quem tem vocação, mas é improvável que não atraia muitos dos que se impacientam ou se trituram em atividades repetitivas atrás de balcões e birôs.
O desprezo pela docência liga-se à “imagem” dessa profissão num mundo em que o importante é ganhar bem, ganhar muito, e deixar isso claro para os outros. Na velha polarização entre o ter e o ser costuma-se associar o professor ao ser, enaltecendo-lhe o idealismo e o desprendimento (leia-se “desapego ao dinheiro”). Tais atributos não condizem com os ideais de uma sociedade pautada pelo pragmatismo e pela busca do sucesso.
A imagem do professor parece que não mais estimula os alunos para o crescimento intelectual. Sem o estímulo decorrente da identificação com quem sabe mais, é possível que estudem para cumprir o programa. Ou para no futuro se distanciarem o mais possível de uma imagem exaltada na retórica, mas desprestigiada no plano concreto das relações sociais. Trata-se de um paradoxo curioso, que se pode formular assim: “quero aprender com ele, para ser na vida o que ele não foi”.
Se os jovens não mais se identificam com o professor, é porque no fundo não o admiram. E não o admiram porque são vários os fatores que concorrem para depreciá-lo. Um deles é o parco contracheque; outro é o tratamento muitas vezes dado ao mestre num universo mercantil de ensino, em que a voz do aluno pagante se sobrepõe à do humilde operário que lhe transmite o saber. Não são raras as situações em que a direção da escola, obrigada a fazer uma escolha, opta por quem a financia mesmo que isso venha ferir a disciplina ou as diretrizes do processo ensino-aprendizagem.
É preocupante que sobretudo os maus alunos queiram se dedicar ao magistério. Isso aponta para um gradativo decréscimo na qualidade do ensino e tende a alimentar um nefasto círculo vicioso. Se os professores forem ruins, a remuneração e o respeito devidos a eles diminuirão. E se remuneração e o respeito forem insignificantes, a qualidade do corpo docente ficará pior. O resultado disso não se pode prever, mas certamente haverá mais sombra do que luz no fim do túnel.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Samba no escuro

Carnaval, ele com vontade de ir para a rua, e a mulher doente no quarto ao lado. Da sala ouvia a tosse -- curru, curru, curru... Era a noite em que sairia o bloco da sua turma. Podia ouvir ao longe o esquentar dos instrumentos e as vozes dos que se dirigiam à concentração. Daí a pouco passariam em frente à sua casa e gritariam, chamando-o. Assim faziam com quem não saía da toca para brincar. O combinado era convocar um por um. Diriam:
- Vamos, Nicanor! Tá na hora!
Não iria. A mulher tossindo no quarto, meio febril, o impediria de aderir à festa.
Levantou-se e foi de novo olhar Emilia. Ela abriu os olhos quando o viu e pareceu adivinhar-lhe o pensamento.
- Quer ir? Vá...
- Não vou deixar você sozinha.
- Não estou morrendo, ora -- disse com débil teimosia e teve um novo acesso de tosse. Curru, curru, curru...
“O diabo é essa tosse” -- ele pensou. Se pelo menos a doença fosse silenciosa! Seria mais fácil ignorá-la, fingir que estava tudo bem. Mas havia esses estampidos, que pareciam um alarme.
- Vá, homem. Eu sei que você quer brincar.
- Não. E pelo amor de Deus pare de tossir!
Nicanor voltou para a sala e ficou uns minutos sentado, ouvindo o barulho que vinha da concentração. O som de tamborins, pandeiros, cornetas tornava-se mais nítido. Intensificava-se o alarido, e dentro em pouco o grupo viria chamá-lo. Alguém diria: “Vem, rapaz. A noite é criança.” Criança? A noite era uma velha moribunda.
Emília parara de tossir. Devia se iludir com esse momentâneo silêncio? Não. A mulher tinha dito: “Pode ir... Vá.” Uma permissão que seria cobrada depois -- se não por ela, pela consciência dele. Tinha um dever.
De repente lhe deu vontade de ir ao quarto dos fundos e abrir o armário onde guardara a fantasia comprada meses antes. Nada excepcional: calça branca, paletó colorido e um chapéu também branco de malandro carioca. Sempre sonhara ser um. O que o atraía na figura do malandro era a lábia, o descompromisso, a jinga para contornar as dificuldades.
Começou a se vestir, devagarinho. Depois foi até o espelho e se olhou. Gostou do que viu. Nem parecia ele... Despertou ao ouvir o som do bloco, que havia chegado em frente à casa. Foi até à sala e espreitou pela janela semiaberta. Se o vissem, ele não poderia resistir. Mal conseguia distinguir as vozes abafadas pelo som dos instrumentos e, agora, pela tosse que recomeçou. Curru, curru, curru... Essa ele ouvia bem.
Antes que o grupo se afastasse, resolveu ensaiar uns passos. Sambou ali mesmo, no escuro da sala. Malandro que é malandro não perde a viagem. Ouvia o bloco se afastando e aos poucos mergulhando no clamor alegre da cidade. No quarto, a mulher continuava a tossir.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Considerações heterodoxas sobre o sonho

Nunca desista dos seus sonhos, mesmo porque isso não iria adiantar. Está provado que precisamos sonhar para manter nosso equilíbrio psicológico e a paz em casa. Quem não sonha dorme mal e perde o senso de humor. Antes de Freud, a ciência tinha preconceito contra os sonhos; achava que eles eram apenas uma forma de a mente reagir aos estímulos recebidos durante o dia. O pai da psicanálise demonstrou que não era nada disso. Sonhamos para realizar desejos, mesmo (ou sobretudo) os inconfessáveis.
Tem gente que volta a dormir para retomar um sonho interrompido por alguma razão. Sobretudo quando se trata de um sonho erótico. Um amigo meu passou por experiência parecida. Sonhou que estava em idílio com uma mulher belíssima (mistura de Gisele Bündchen e Juliana Paes), quando foi acordado pelos latidos do seu cão. Depois de conseguir que ele se calasse ameaçando cortar-lhe a ração do dia seguinte, voltou a dormir com o pensamento voltado para a deusa do sonho. Adormeceu, porém... decepção. Sonhou que era abordado por um fiscal da vigilância sanitária. Depois compreendeu o porquê: no dia anterior tinha lido uma reportagem sobre a possível volta da dengue... O sonhos têm disso: trazem tanto o que se deseja, quanto o que se teme. É uma forma de prazer e de exorcismo.
Um fenômeno curioso apontado por Freud é a “distorção onírica”. Ela é que dá ao sonho aquele aspecto irracional que faz as mentes cartesianas desprezarem seu conteúdo. Mas aí é que está o engano: a distorção decorre da censura, o tal superego, que não lhe deixa em paz nem quando você está dormindo. É um censor que deforma as imagens oníricas e só permite que se reconheça em parte o objeto de desejo. Por exemplo: se você quer muito ser médico, pode sonhar com uma cobra. A explicação está em que a cobra (ou melhor, a serpente) é o animal que circunda o bastão de Esculápio, deus da Medicina segundo os gregos. Pode-se também interpretar esse vínculo como uma alusão a quanto hoje um bom médico... cobra.
O sonho não é uma simples lembrança, mas uma vivência. Na chamada “cena do sonho”, representamos um papel e sentimos emoções por vezes insuportáveis. Isso já levou um repórter a escrever, a propósito de um indivíduo que sucumbiu durante um pesadelo: “Ao acordar, estava morto."

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Seleção de frases (6)

A coisa mais inútil é esperar o sono chegar. Quando ele chega, a gente já está dormindo.
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Comprou um cartão para a namorada e fez no verso um oferecimento em prosa.
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Quem corta as próprias asas não merece pena.
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O homem comum vive de sonhos. O poeta, de lira.
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Só tem o direito de se desviar a gramática quem a conhece. Uma coisa é errar por ignorância; outra, errar por estilo.
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Tinha certeza de que era uma celebridade. Só faltava as pessoas descobrirem isso.
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Depois de certa idade, o melhor presente de aniversário que a gente ganha é mesmo estar presente.
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Bons tempos aqueles em que o comandante era o último a abandonar o navio.
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Toda culpa é desproporcional ao ato. O voyeur sempre expia mais do que espia.

Em nome do politicamente correto

        Com a vigilância do politicamente correto, é preciso evitar denominações que agridam as pessoas. Sugiro algumas alternativas:

feio - esteticamente mal configurado;
fofoqueiro - comentador da vida alheia;
barrigudo - provido de vasta amplitude abdominal;
baixinho - verticalmente reduzido;
“burro” - intelectualmente deficitário;
banguelo - desprovido do aparato necessário à mastigação;
cabeçudo - dotado de hipertrofia craniana.





domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sobre o plágio do meu slogan

Há alguns anos, a frase “Curso Chico Viana - Não dá pra passar sem ele” tornou-se o slogan do meu curso (o que está fartamente documentado em apostilas e jornais). Estranhei ao vê-la, no Facebook, ilustrando o comercial de um professor de redação desta cidade.
Diga-se, a bem da verdade, que a cópia não foi total. O colega trocou o meu “pra” por um “para”: “Curso Tal - Não dá para passar sem ele.” Isso me convenceu de que seu objetivo, além de copiar-me, foi também me “corrigir”. Ele produziu uma espécie de plágio retificador (se é que isso existe, pois a apropriação total de um conteúdo artístico, científico ou cultural por outrem é apenas plágio --- sem adjetivos).
O que teria levado o professor a fazer isso? Certamente a ideia equivocada de que “para” é mais... correto do que “pra”. Tal modo de ver merece algumas considerações, pois um dos assuntos que mais se discutem hoje no ensino da língua (e particularmente no da redação) é a pertinência dos registros de linguagem.
No meu slogan, o uso do “pra” se justifica por duas razões. A primeira é que o conectivo aparece numa mensagem publicitária, tipo de texto em que há espaço para o uso informal da língua. Os redatores das agências de publicidade nem sempre se pautam pela norma culta ou pelo registro formal. Tendem, por exemplo, a cometer transgressões na regência em frases do tipo: ”Encontre a casa que você precisa” (e não “de que”).
A segunda razão, ainda mais forte, é que a mensagem publicitária visa atingir o cérebro e o coração do destinatário. Seu objetivo é convencer e, sobretudo, persuadir. Um dos meios de conseguir isso é lançar mão de recursos da linguagem poética, tanto no plano semântico quanto no sonoro. Daí ser comum no texto publicitário o uso de metáforas, versos, rimas. Em meu slogan, apelei para o metro heptassilábico: “Não/ dá/ pra/ pa/ssar/ sem/e/le” (“ss” juntos porque se trata de divisão métrica, não silábica). A cesura na segunda, na quinta e na sétima sílabas dá um tom incisivo à frase e se harmoniza com a veemência logicamente respaldada na “condição necessária” (embora não suficiente): “Sem ele, é impossível passar” -- nos dois sentidos que o verbo “passar” tem no slogan.
Trocando o “pra” por “para”, o colega compromete a maior parte desses efeitos. Quebra o metro heptassilábico e produz uma desagradável impressão sonora. A presença de mais um “a” prolonga desnecessariamente a assonância (aaaaa) e ressalta a cacofonia gerada pelas consoantes “p” e “r” (parapa - parece o caracrachá do Severino). Em vez do heptassílabo, ele criou um octossílabo trôpego e manco, que está longe da fluidez desejável numa mensagem publicitária.
Meu slogan foi inspirado num, da “Folha de São Paulo”, muito elogiado pelo uso que faz da dupla negação: “Folha - Não dá pra não ler”. (grifo meu). A dupla negação aponta para um conteúdo afirmativo forte e reforça a “condição necessária”. Talvez o colega trocasse o “pra” pelo “para” no slogan da “Folha”, destruindo a força do pentassílabo e comprometendo a eficiência da expressão. Talvez até, quem sabe, sua ânsia corretiva o levasse a modificar o verso de Bandeira, que passaria para “Vou-me embora para Pasárgada”. O problema é saber em nome de quê ele faria tais correções.







Dizer pelo excesso