sábado, 21 de outubro de 2017

Minicontos

                                         I
Num domingo à tarde, ela abriu a torneira do gás e se matou. Ninguém soube o motivo. 
Entre suas coisas, encontraram um Guia de Viagem amarrotado e notas de euro dentro de um envelope.
Estava juntando havia algum tempo. Sonhava um dia conhecer Paris.
                                        
                                       II
       Resolveu tomar satisfação com o sujeito que a olhava:
      -- Que é que há? Me assediando?  Sabe que isso dá cadeia? Eu posso te denunciar! 
      Assustado, amolece o corpo e a voz:
      -- Que nada, querida. Fiquei vidrado em seu modelito. Combina com a blusa. Mas eu em seu lugar escolhia um amarelo mais vivo.
     “Um entendido” – ela pensou. Mas então por que o olhar fixo nas suas pernas? Confusa, resolveu deixar pra lá.
       -- Tudo bem. Mas vê se sai de cima do muro, pô.

                                              III
       Ninguém suportava Albanor. Convencido e pernóstico. As clientes só o procuravam porque era um bom costureiro.
      Na antessala do ateliê, o comentário:
      -- Só quer ser as pregas!
       E Alaíde, a mais ferina:
      -- Que ele não tem mais.

                                              IV
      Joquinha nas últimas, um fio de vida. Ao lado, aflita, a esposa: 
       -- Homem, pelo amor de Deus! Decida-se!  
      Joquinha calado.
       -- Se morrer assim, você corre o risco de ir para o inferno. Acredita ou não em outro mundo? 
       A resposta, num murmúrio:
     -- Decido no caminho.

                                             V
          Na classe o chamavam de Patinho e Empenado. Evitava os colegas com medo de ouvir coisa pior (se soubessem, por exemplo, do sinal vermelho na altura do ombro). 
         Um dia o professor leu a sua redação em voz alta e lhe fez um elogio. 
        Não soube como reagir. Pensava que era brincadeira.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Tristezas de um país minguante

(à la manière de Augusto dos Anjos)

Por forças obscuras convocado,
disponho-me a sair deste meu sono
a fim de denunciar o abandono
em que o meu país está jogado.   

Aonde estou, chegam-me vívidos os reclamos
de uma nação que vê, estupefata,
sua honra consumir-se na bravata  
de mil ardis e mil torpes enganos.

O mal que a acomete é como a goela
omnívora de um bicho insaciável
que tanto mata o pobre, o miserável,
quanto espezinha a triste classe média.

O germe dessa força deletéria   
que a cada dia mais nos envergonha   
já se disseminava na Colônia
qual torva e renitente bactéria.
  
Seu nome bem se sabe, pois permeia  
quase todos os níveis da nação:
é a atávica e mórbida corrupção,
contra a qual não há rito nem cadeia.

Ela se manifesta, com acinte, 
em nível bem maior que o original
-- o país arranjou outro Cabral
para pilhá-lo com bem mais requinte!

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Diálogos (19)

Na manhã colorida, alguém pergunta ao menino:
-- Que cor você prefere?
-- Preto! – responde, amuado.
   Fecha-se o tempo.
    ****
-- Papai, o que é arco-íris?
-- É um gênero de cor.
    ****
-- Mestre, o Brasil tem jeito?
-- Não, mas a gente dá um jeitinho.
    ****
-- Existe coisa pior do que a gente se achar um fracasso?
-- Existe. É ter certeza disso.
    ****
-- Você viu, Mariinha? Dizem que no futuro vai ser possível fazer sexo com um robô!
-- Então o futuro já chegou lá em casa.   

Rapidinhas sobre o Dia do Médico

Médico é o profissional que a gente sempre procura quando fica doente. E às vezes fica doente quando procura.
                      ****
A vocação, no médico, é uma plantinha que depois de cultivada vira plantão.
                      ****
Não falem dos médicos. Quando eles erram, não sabem o que estão fazendo.
                      ****
Certos médicos levam tão a sério a medicina como sacerdócio, que nos deixam próximos da extrema-unção.
                      ****
Costuma-se falar mal dos médicos, mas quando a doença se agrava é melhor ter por perto um deles do que um padre.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Médicos? Não!

Eles nos apalpam, furam, fazem-nos beber líquidos intragáveis e, ao mesmo tempo, proíbem-nos de comer comidas gostosas.  
São incansáveis bisbilhoteiros. Perguntam coisas íntimas como se quisessem desvendar nossos segredos – e o pior: anotam tudo numa ficha (para depois fazerem sabe-se lá o quê!).
Se metem na nossa vida amorosa, querendo saber se transamos ou não (às vezes até com quem). Restringem-nos o sexo quando gostaríamos de transar ou obrigam-nos a fazê-lo mesmo contra a vontade.
Interferem em nossos hábitos, mandando-nos permanecer na cama quando queríamos estar na rua. Ou andar, quando o bom mesmo era ficar em casa vendo televisão.
Medem nossa altura, avaliam nosso biotipo, implicam com o nosso peso, sugerindo que devemos diminuí-lo sem nem perguntar se estamos dispostos a isso. Por vezes ignoram a nossa fome.
Não têm respeito por medalhas, títulos, condecorações. Tudo que lhes interessa, em nossos ascendentes, é saber se padeciam de tal ou qual doença. Isso às vezes obriga a dizer, por exemplo, que um tio comendador sofria de flatulência (o que não fica bem para a imagem do morto).
Médicos? Sim! Sobretudo na hora de receber alta e ver que saímos da doença sãos e salvos.

domingo, 15 de outubro de 2017

Alunos

       Geralmente são os alunos que julgam o professor. Eles quase sempre o veem como um símbolo de poder e não perdem a oportunidade de lhe apontar manias, trejeitos, falhas físicas ou morais.
         Mas o oposto também é verdadeiro. O professor observa com espírito crítico seus alunos, conhece-lhes as virtudes e as mazelas. De tanto vê-los ao longo dos anos (pois, no fundo, eles são sempre os mesmos), sente-se até capaz de elaborar uma tipologia. E quais são os tipos mais comuns?
       Há o aluno esforçado, que não deve ser confundido com o inteligente. O esforçado é cuidadoso com as tarefas, copia tudo que é dito na classe e geralmente se senta na primeira fila. Faz questão da proximidade com o mestre, como se deste emanasse um fluido que lhe aprimorasse o espírito.
O esforçado procura superar com aplicação o que lhe falta em brilho. E por vezes se sai melhor do que o inteligente, que termina relaxando os deveres. Grande parte dos médicos, políticos e funcionários de carreira é feita de esforçados. Eles quase sempre vencem na vida, enquanto que o inteligente pode chegar a extremos de sucesso ou fracasso. Seu destino, como o da mulher muito bonita, é quase sempre uma incógnita.
Outro tipo interessante é o desafiador. Ele não está na classe para aprender, mas para encarar um duelo pessoal com o mestre. Por um ressentimento que Freud explica, tende a contestar tudo o que o professor diz. Talvez a origem dessa rivalidade, vá lá, seja complexo de Édipo mal resolvido; o desafiador tende a projetar no mestre seus conflitos com o pai.
Há o sossegado, para não dizer preguiçoso, que assiste às aulas pensando noutra coisa. Na balada do fim de semana, por exemplo. Ele estira as pernas e quase se deita na cadeira. Faz questão de conforto, pois é preciso compensar no corpo os penosos sacrifícios infligidos à mente.
Há os tímidos, que são quase todos. Esses enrubescem até quando respondem “presente”. A diferença é que uns enfrentam o olhar crítico dos colegas e dizem o que precisa ser dito, enquanto que outros penosamente se deixam emudecer.
Conheço bem esse tipo, pois fui um deles.

http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo-/

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Dicionário heterodoxo

CANSAÇO – Estado de fadiga física ou mental que acomete sobretudo quem não faz nada. 

CÉU – O que os pobres almejam ganhar em outro mundo, e os ricos preferem desfrutar mesmo neste. 

CONFIDENTE – Pessoa que a gente escolhe para dizer aos outros os nossos segredos.

CONVICÇÃO -- Certeza que temos de uma verdade até aderirmos à verdade oposta.

COVARDIA – Manifestação vergonhosa do instinto de preservação

CULPA – Dívida imaginária a um credor que se agiganta à medida que nos sentimos menores.  

ECONOMIA – O que os ricos fazem por opção, e os pobres, por necessidade.

ESPÍRITO PÚBLICO – O que se manifesta nos políticos a cada quatro anos (e desaparece no intervalo). 

FIDELIDADE – Compromisso de não trair o outro desde que outro não nos atraia.

FUTURO – O que a gente sempre espera mas nunca chega, pois quando chega já não é mais.

GOSTOSURA – O que os homens dizem de certas mulheres, e as mulheres dizem de certas tortas.

MACHISMO – Desvario da hombridade, que no fundo mascara o medo de não ser considerado homem.

PERFECCIONISMO – O que nos tira o prazer de fazer bem feito pelo receio de não fazer melhor.

PROMESSA – Garantia que damos, em determinado momento, do que não vamos cumprir depois.  

VERGONHA – O que sempre falta a quem precisa e às vezes sobra em quem não merece.

SOLIDÃO – O preço da liberdade, que muito poucos se dispõem a pagar.

UTI – Lugar onde geralmente se morre depois de gastar os tubos.

Dizer pelo excesso