W.
J. Solha subintitula seu novo livro, “Vida aberta”, de “tratado poético-filosófico”.
É um subtítulo estranho, pois em princípio
filosofia e poesia se excluem – ou, pelo menos, têm muito pouco em comum. Filosofar
é basicamente especular sobre o sentido do homem e do mundo, o que demanda o
uso de uma linguagem lógica, unívoca, “transparente”. Já poetar é antes de tudo
expressar a subjetividade por meio de uma linguagem impregnada de afetos e
emoções. Nesse caso prevalece a ambiguidade dos signos, marcados por desvios
que comprometem o rigor analítico e conceitual. Como então falar num tratado “poético-filosófico”?
Se perguntassem isso ao autor,
penso que ele não saberia (muito menos quereria) responder. Seu livro se propõe
justamente a romper a barreira entre essas duas modalidades textuais. A obra não
se encaixa em nenhum modelo, pois o que traz à tona é uma anárquica mistura de personalidades
artísticas, sistemas filosóficos, correntes estéticas, num apanhado que resume
a visão do autor sobre o homem e o mundo. Nela razão e inconsciente se aliam
para produzir um pensar que em que a luminosidade parece arbitrada pelo caos (ou
vice-versa). Solha nos traz uma Suma (não teológica, mas escatológica) em que,
num jato, procede ao questionamento de uma série de conceitos e crenças
produzidos ao longo da Historia.
Sua vasta erudição concorre para a amplitude
das referências trazidas à obra, mas toda essa soma de conhecimentos apenas
confirma o quão insuficiente é o saber humano. A vida transborda dos conceitos,
como disse São Tomás de Aquino, e certamente por isso o poeta/filósofo (ou o
contrário) não pretende enunciar nenhum tipo de verdade. Diz ele, a certa
altura: “...quero,/sabendo,/esse não
saber, sabendo, que faz uma aranha,/ feito extraterrestre,/ passar a fiar, sem mestre”. “Não saber, sabendo” é o
fundamento socrático das suas especulações, que emergem como um enlace
engenhoso e lúdico entre forma e sentido.
Antidiscursividade, jogos fonéticos,
enumeração caótica respondem pelo que há de poético no texto. O leitor se
surpreende com os achados, que apesar de às vezes parecerem gratuitos (ditados
pela rima) acabam se revelando descobertas originais. A originalidade se
evidencia sobretudo nas comparações, em que se estabelecem nexos imprevistos. Assim
é, por exemplo, que “... a mulher... pode não ter o abecê,/ mas seu corpo
engendra... um bebê, / como alguém que toque de ouvido... e faça parte – do que
duvido – da... Sinfônica... de Stugart (...).” O discreto ceticismo sublinha o inusitado
da aproximação, que, como tantas outras,
parece não ter nenhum vínculo.
Mas esse é o papel da linguagem em
sua função poética. Enlaçar aspectos do real por meio de analogias que só o
artista percebe, em busca de uma presumível origem comum (ou de origem alguma);
superar as dicotomias por meio da representação, que busca dar forma ao caos; “abrir
a vida” com imaginação e ousadia, associando o espírito crítico à fantasia
poética para com isso fornecer do homem uma imagem o mais possível fiel. Como Solha
faz magistralmente neste “Vida aberta”.