terça-feira, 31 de março de 2020

Sem título


Notas sobre a pandemia (9)


        O vazio dos espaços urbanos parece um contrassenso num país em que se ama passear e estar com os amigos. Olho para a minha rua e não vejo ninguém. Ou melhor, um retardatário volta apressado para casa. Temerá um assalto ou a contaminação? (A dúvida procede, pois os marginais não recuam nem em tempos como estes; são vírus sociais, e para eles os governos até agora não foram capazes de encontrar vacina). As luzes dos apartamentos sinalizam a prisão das pessoas lá dentro. O mais estranho é a ausência de buzinadas, que destoa da trilha sonora comum nas cidades. Todo esse silêncio nos leva a refletir, humildes, sobre a precariedade da nossa aventura no planeta. A pandemia não enterra apenas os mortos; enterra também os vivos. Só que estes últimos, cessado o flagelo, terão a possibilidade de renascer.

Dica de filme - "Viver duas vezes"

      Emílio é um ex-professor que sofre do mal de Azheimer. Após uma brilhante carreira universitária, sente a memória se deteriorar ao mesmo tempo que se torna cada vez mais obcecado por reencontrar Margarita, sua grande paixão da adolescência. Com o auxílio da filha, da neta e do genro parte para Navarra, onde supostamente a mulher se encontra.
O filme tem um roteiro bem trabalhado, apesar de explorar situações que levam às lágrimas. Mescla nostalgia a modernidade, dando destaque ao telefone celular e à prática do coaching (que sutilmente ironiza). O celular aparece como um vício (o genro e a neta de Emílio não o abandonam nem nas horas de refeição) e um indispensável instrumento da vida moderna. Em certo momento a garota diz ao avô que, no mundo atual, o celular é “um Deus”. Essa ajuda “divina”, de fato, será preciosa na busca por Margarita.    
“Viver duas vezes” é um filme sobre a passagem do tempo; a despeito da sua força inexorável, ela não apaga certas impressões. O velho professor de matemática tem na viagem rumo ao passado uma forma de se compensar do que não viveu por timidez e fixação nos estudos. Na sua memória, em que tudo vai se apagando, persiste a lembrança do sinal matemático do Infinito, símbolo da paixão timidamente partilhada entre ele e Margarita.
Engraçado e terno, “Viver Duas Vezes” é o segundo longa Netflix lançado no Brasil em 2020. Merece ser visto.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (8)


         Quem determina que não se deve sair de casa não são as autoridades médicas ou governamentais; é uma senhora ponderada, discreta e aliada da razão chamada Prudência. O preço que se paga por desprezá-la pode ser muito alto. Com não rara frequência, é a morte. Se evidências mostram que deixar a casa e participar de aglomerações levou em outros países a que se multiplicasse o número de mortos, fazer isso ou induzir outros a fazê-lo é de uma imprudência homicida. Os arautos da sensatez devem chamar os responsáveis por essa leviandade à razão. Todos estamos esperançosos de que esse “tsunâmi” passe logo, mas, como lembra Baltasar Gracián, a esperança é a grande falsificadora da verdade e deve ser corrigida com inteligência e... prudência!

domingo, 29 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (7)


     Vi depoimentos de pessoas que foram infectadas com gravidade pelo coronavírus e escaparam. Chamou-me a atenção o que disse um senhor ainda debilitado e de máscara: “É como se afogar no seco.” Vejam o que é a força de uma imagem. Ouvimos o tempo todo que a Covid-19 destrói os alvéolos pulmonares. Isso impressiona, claro, mas é abstrato e conceitual. A imagem, ao contrário, tem o poder da concretude. Atinge mais os sentidos do que o intelecto. Gera identificação por nos fazer partilhar de um afeto, uma sensação, um sentimento. Que informe emitido por uma autoridade médica nos impressionaria tanto, quanto a declaração feita por um ex-infectado de que parecia “se afogar no seco”? Fui dormir apreensivo. Nada do que eu tinha ouvido até aquele momento me evocara com tamanha intensidade o mais angustiante sintoma dessa doença, que é a falta de ar. 


sábado, 28 de março de 2020

Redação sem risco: Como fazer o texto entrar na linha

Redação sem risco: Como fazer o texto entrar na linha: Orientações para a construção do texto dissertativo, levando em conta os recursos semânticos e estruturais que asseguram a clareza e a coesão. A obra se baseia na experiência do autor em sala de aula como professor de redação e língua portuguesa para candidatos ao Enem e a concursos públicos. Os textos que nela constam apareceram inicialmente na revista Língua Portuguesa (Editora Segmento), na qual o autor colaborou por cerca de dois anos.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (6)

        
         
        Historicamente, os períodos de privação ensinam mais do que os de bonança. Que lição a crise provocada pelo coronavírus vai nos dar? Não falo das atitudes generosas que os governos são obrigados a tomar agora para que a economia não entre em colapso e milhões não morram de fome. Refiro-me a ações estruturais, profundas, que preparem os países para não ser pegos desprevenidos em flagelos semelhantes (aos quais sempre estamos suscetíveis). Uma crise como a do coronavírus revela o quanto há de falho num sistema que se baseia na avidez do lucro e na iníqua distribuição de renda. Todos ajudam agora, pois o sistema não pode entrar em pane. Mas quantos manterão a ajuda quando o pesadelo com a Covid-19 se desfizer e outras pragas menores continuarem, normalmente, a espezinhar ou destruir os fracos e desassistidos? Enfim, amanhã vai ser outro dia ou continuaremos imersos na mesma noite?

quinta-feira, 26 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (5)


      O coronavírus é uma ameaça letal, por isso causa estranheza que em meio às discussões sobre a melhor forma de combatê-lo prevaleçam os interesses políticos. Interesses mesquinhos, que pouco têm a ver com o bem-estar da coletividade. Ou, se têm, é de forma tangencial. Já se percebeu que o enfrentamento da Covid-19 é um desafio ao bom senso e ao tirocínio administrativo. Quem apresentar melhores propostas para combatê-la contará com um valioso trunfo nas eleições de 2022. Isso tem feito com que a retórica de palanque substitua em alguns o interesse por informações confiáveis, embasadas nos estudos da ciência. Toda essa medíocre querela demonstra que o pior vírus (o de mais deletérios efeitos) é o que instila nos homens a ambição pelo poder.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (4)


Pelo que ouvi de médicos infectologistas, as máscaras só deveriam ser usadas por portadores do vírus. Poucos, no entanto,vêm atendendo a essa restrição. O resultado é que têm faltado máscaras para quem de fato delas necessita – como o pessoal da Saúde. Não convém abusar desses higiênicos tapumes, que às vezes também funcionam como um depurador estético; há quem fique menos feio com elas. Nossas autoridades têm considerado a máscara uma espécie de símbolo da seriedade com que estariam tratando a pandemia. Mas é preciso portá-las com dignidade, do contrário o efeito é pior. Máscaras que ficam caindo, são indevidamente manuseadas ou se prendem a uma orelha só indicam oportunismo e improviso. Podem até fazer seus portadores perderem a popularidade.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (3)


A longa reclusão em casa começa a gerar preocupação com o estado psicológico das pessoas. Que fazer? Psicólogos têm usado as redes sociais para atender gratuitamente os que precisem de ajuda. Muitos deverão procurá-los alegando sintomas diversos, como depressão e ansiedade. Entende-se esse tipo de reação, mas há um fator que suaviza os efeitos da falta de convivência; é a percepção de que o confinamento é geral. Saber que todos vivem o mesmo drama ajuda a suportar a quarentena. Faz as pessoas perceberem que estão isoladas, mas não sozinhas. A solidariedade é que vai derrotar o coronavírus.

domingo, 22 de março de 2020

Notas sobre a pandemia (2)


O homem faz malabarismos num dos sinais da Epitácio Pessoa. Parece argentino ou venezuelano. Os carros param e apreciam, mesmo sem querer, a arte daquele artista de rua. Terminado o número, ele circula entre os automóveis sorrindo e estendendo o boné. Ninguém baixa os vidros. O motivo certamente é o medo do vírus, que desencoraja qualquer contato humano que implique a possibilidade de contágio. Não se sabe se o homem é portador, mas, por via das dúvidas... Alguns veem essa possibilidade como um pretexto para continuar indiferentes a esse tipo de abordagem. Nunca baixaram os vidros e têm agora uma boa razão para não fazer isso.


Notas sobre a pandemia (1)


Amanhã, segunda, é dia de ficar em casa. Terça, também. E quarta, quinta, sexta, sábado, domingo... A quarentena torna iguais os dias. E nas emissoras de TV o assunto é o mesmo. Os canais mostram a devastadora escalada da Covid-19 no mundo e as estratégias dos governos para debelar a pandemia. Quem resistia a deixar o domicílio vai aos poucos aceitando a ideia de permanecer recluso. Os que não concordarem adoecerão, pois é patológico se insurgir contra aquilo que não tem saída. E a saída, agora e pelos próximos dias, é não sair. Aproveite para conhecer melhor a sua casa e as pessoas que nela moram. Tudo indica (felizmente!) que você não terá outra oportunidade como essa.

sexta-feira, 20 de março de 2020

O vírus e nós


Dizem que a ficção antecipa a realidade, e nada melhor para confirmar isso do que a situação que estamos enfrentando com essa ameaça do coronavírus. As ruas vazias, como se vê em São Paulo e em outras grandes metrópoles mundiais, parecem o cenário de um filme de terror. A diferença é que nos filmes a gente visualiza o inimigo, enquanto que agora ele é microscópico e praticamente invisível. Essa invisibilidade reduz as chances de derrotá-lo, pois dá a muitos a impressão de que ele não existe. Não falta quem considere os alertas das autoridades médicas um exagero a que a mídia, interessada em aumentar a audiência, dá imensa repercussão.
O brasileiro gosta de assumir esse tipo de comportamento. Prefere muitas vezes negar o perigo a enfrentá-lo, pois o enfrentamento exige esforço e sobretudo renúncia a certos prazeres. Um deles é ir à praia, onde o aglomerado de banhistas constitui um ambiente propício à contaminação de vírus, bactérias e outros micro-organismos que podem ameaçar-lhe a vida.
Em outro aspecto a ameaça da Covid-19 lembra uma obra de ficção — o da expectativa quanto ao final. Espera-se que ele seja feliz, claro. O problema é quanto de insanidade teremos que repelir, e quanto de sofrimento suportar, até que o pesadelo acabe.
O vírus vem abalando a economia mundial e ameaça levar os países à recessão. Isso dá medo, pois historicamente as guerras sucedem períodos de grande crise econômica. O ser humano convive mais facilmente com o vazio do sentido do que com o do bolso. Tendo o que comer, ele encontra energia para especular sobre o enigma da existência. De barriga vazia, não há como direcionar o intelecto a elucubrações transcendentes. O imperativo é matar a fome, que no capitalismo se multiplica em outros apetites. Já se vê nos supermercados a ânsia em fazer provisões e garantir o suporte material básico para a sobrevivência.
Somos egoístas, indiferentes ao próximo, ligados primeiro em nosso bem-estar – mas também somos aferrados ao instintual impulso de sobreviver.Tal impulso fica seriamente ameaçado ante a perspectiva de uma guerra de grandes proporções. Essa ideia paradoxalmente (ou nem tanto) me faz otimista. A possibilidade de uma hecatombe universal alerta-nos para o imperativo de preservar a vida na Terra. E não será um vírus, por mais contagioso e “coroado”, que terá a força de mudar isso. Resistiremos, mas para que muitos não caiam pelo caminho é preciso que sejamos solidários. No atual momento, ajudar os outros é ajudar a nós mesmos.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Milton na Academia


Milton enverga hoje o Fardão e certamente fará isso com um garbo em nada condizente com um dos sentidos que esse verbo tem. Pode-se pensar em tudo, menos em vê-lo encurvado sob o peso da glória acadêmica. Altivo, fez por merecê-la.
Somos amigos de longa data, pois começamos juntos em cursinhos pré-vestibulares. Ele por sinal me sucedeu no antigo Curso 2001, quando em 1978 ingressei na Universidade. Pouco depois Milton faria o mesmo, trazendo para o curso de Letras um vasto cabedal de conhecimentos e de habilidades como professor. Era sobretudo um didata, sem que isso implicasse redução da competência como pesquisador e intérprete literário. A sala de aula era o seu laboratório e o seu palco. Não admira, pois, que fizesse (e continue fazendo) tanto sucesso entre os alunos.     
Num tempo em que a moda era introduzir nos cursos de Letras correntes importadas (sobretudo da França), ele se voltou para os estudos clássicos. Grande conhecedor da mitologia, procurava resgatar a herança dos gregos e sobretudo dos latinos, bases do humanismo que ainda hoje inspira as escolhas éticas do ser humano. Empenhou-se em criar uma área voltada para esses estudos, que foram se estendendo da graduação à pós-graduação.
Ultimamente tem publicado muito nas redes sociais, interpretando obras literárias (como “Os miseráveis”), referindo passagens autobiográficas e falando das suas convicções políticas. É arguta e sensível, por exemplo, a leitura que ele fez dos tipos humanos que povoam o universo de Vitor Hugo. Nas redes ele também enfoca a sua origem humilde e o esforço dos pais para fazer os filhos terem acesso à escola. O empenho, pelo que se percebe hoje, foi coroado de êxito.
Quem priva da sua amizade conhece-lhe o bom humor e a verve, por vezes, “docemente pornográfica”. Dependendo do alvo, essa doçura pode se transformar em acidez, mas nada que agrida ou fira ninguém. Milton é sobretudo da conversa, dom que exercita semanalmente, por exemplo, em colóquios matutinos na Livraria do Luiz. Há algum tempo passou a usar chapéu, o que concorreria para lhe dar um ar de sapiente maturidade não fosse ele avesso a qualquer tipo de ostentação – mesmo a que deriva de uma conquista nobre como a do saber. Um saber do qual não estão ausentes as inquietações metafísicas. Percebe-se em seus últimos textos uma grande preocupação com a espiritualidade, associada à nostalgia ante a contingência de envelhecer.
Diante disso, deve de algum modo ser-lhe gratificante a perspectiva de se tornar imortal. O que vejo nele de definitivo, capaz de resistir à sucessão do tempo, é a seriedade intelectual, o empenho acadêmico, a busca por conciliar a modernidade com a imorredoura lição da cultura greco-latina – tudo isso traduzido em textos que primam pela elegância e o rigor vernáculo. Para nosso recreio, ainda entremeia essa vertente “séria” com epigramas irônicos e mordazes, que retomam a tradição de alguns de seus mestres latinos. Parabenizo-o pela conquista de hoje e desejo que, na APL, ele dê sequência ao trabalho que nos acostumamos a apreciar.

Dizer pelo excesso