domingo, 8 de maio de 2022

Lembrando Ruth

 


Este é meu primeiro Dia das Mães sem ter a quem presentear. Dei-me conta disso quando, no shopping, Denise escolhia um presente para a minha sogra e, súbito, me veio o pensamento: “O que vou comprar para mãe?”

Ela morreu em dezembro, por que então cogitar de presenteá-la? A psicanálise diria que a morte ainda não fora processada no meu inconsciente. O que nos faz sentir a perda é a repetição de situações nas quais dolorosamente percebemos uma lacuna.  E assim, de lacuna em lacuna, vai o morto se apartando da nossa existência até que se consuma a orfandade.   

Nos últimos nos, convivi com ela doente e imobilizada. Sondas, máscaras, equimoses perfuravam ou marcavam o seu corpo. Essa imagem se superpunha às que apareciam nas fotografias e embotava um pouco a lembrança dos momentos que vivi com ela.

Depois do desfecho inevitável, começo a recobrar as memórias que marcaram o seu papel de mãe.  Entre elas, a que mais me toca são as noites que ela passava me abanando por causa das crises de asma. Por horas meneava intensamente o leque na tentativa de abrandar a dispneia feroz. Isso chegava a me incomodar pelas horas de sono que lhe eram subtraídas.  Com o tempo, vendo-a avançar na idade (viveu 94 anos), percebi com alívio que essa vigília não lhe comprometera a saúde. Seria terrível cumular a asma com o remorso.   

Havia momento líricos, quando na máquina de costura ela cantava tangos ou valsas “do seu tempo”, que terminava sendo o meu. Ou quando na cozinha, preparando o seu delicioso pavê branco, cantarolava   modinhas ou fragmentos de hinos aprendidos no Colégio Cristo Rei, de Patos, onde estudou por muitos anos.

Órfã de mãe, Ruth morou na casa de um tio até se casar. A ausência materna fez com que ela se dedicasse aos filhos com redobrada aplicação. Como se quisesse intensificar neles a presença e os cuidados que faltaram em sua vida. Para isso havia a casa, que ela sempre preparou com empenho e arte de acordo com as ocasiões. Natais e São-Joões tinham a sua marca, traduzida em enfeites caprichados e comidas gostosas. Era uma esteta do lar.   

Agora que o tempo esmaece o trauma da perda, sinto que a sua imagem se recompõe com os traços vívidos do passado. Torna-se então possível visualizá-la nos momentos em que ela foi determinante e mesmo nos triviais, pois todos contam para lhe dimensionar a figura. Se não há mais a quem a presentear, resta o consolo de tê-la em nós sempre presente.

domingo, 1 de maio de 2022

A resistência do olhar



           A máscara é por excelência o símbolo da pandemia. Divide as pessoas entre as que seguem a ciência e as que, no rastro do discurso presidencial, desprezam suas orientações. Para além do papel utilitário, é um adereço capaz de traduzir as preferências estéticas dos que a usam (escrevo no presente porque a pandemia ainda não acabou).   

No futuro, a imagem mais eloquente do flagelo provocado pelo coronoavírus será a de pessoas mascaradas. O objetivo, claro, é impedir a contaminação, mas a ele se acrescentam outros efeitos, como o de despersonalizar o indivíduo escondendo-lhe parte do rosto.

O mascarado pandêmico não ri; se o faz, não deixa isso perceptível. Nele as emoções, que normalmente transparecem em todo o semblante, concentram-se no olhar. A mordaça que lhe encobre boca e nariz é uma espécie de recusa à fala, uma opção pelo silêncio opressivo que as circunstâncias lhe impõem.      

Esses detalhes não passariam despercebidos a um artista como Rodolfo Athayde, para quem a máscara é “um véu incompleto que nos protege”. Um véu que vela e ao mesmo tempo revela. Num belo volume recentemente impresso na Gráfica JB, Rodolfo vai ao “Xis” da questão. Reúne intelectuais e artistas paraibanos que, posando de máscaras, mostram na variedade de posturas, figurinos e expressões do olhar diferentes formas de encarar o desafio da contaminação.

No metalinguístico ensaio introdutório à obra, o autor faz uma espécie de resumo do significado das máscaras na sua vida. Inicialmente associadas a mistério e aventura (“A primeira foi a máscara do Zorro que estava por esses lugares”), com o tempo elas lhe penetraram o universo profissional e artístico. Serviram-lhe de tema a trabalho anteriores e acabaram se constituindo num indício do que nos limita na modernidade.  

Vivemos num mundo globalizado, mas isso não nos facilita a comunicação. Quanto maior a proximidade de uns com os outros, mesmo (ou sobretudo) virtual, maior a tendência a escondermos partes de nós. Como enfatiza Rodolfo no referido prefácio, “nem nos conhecemos mais porque são muitas as novidades do outro e o tempo é curto”.

A proposta de “Xis” é, na verdade, a de um desmascaramento. As máscaras nos vestem para nos desnudar. O título da obra remete à onomatopeia por meio da qual comumente se convocam as pessoas a sorrirem quanto vão ser fotografadas. Trata-se de uma ironia que o autor enfatiza iconicamente no desenho da capa – um “Xis” (que é também uma incógnita) confundido com uma máscara semidesfeita.   

Fotografar é cristalizar no tempo imagens que, o mais das vezes, se constituem em testemunhos de uma época. A nossa ficará marcada pela pandemia; ela a muitos tirou a vida, e a outros infligiu prejuízos materiais ou danos psicológicos. Captar nos rostos mascarados o seu efeito é uma forma não apenas de mantê-la na lembrança, mas sobretudo de surpreender na postura e no olhar dos que se mascaram diferentes reações ao trauma que ela representa.    

          Rodolfo se propõe ao registro de “uma pandemia que não resista ao nosso olhar”, seja ele de medo, perplexidade ou desesperança. Faz isso com sucesso, pois a representação artística desses sentimentos é uma forma de se libertar do estigma da doença. Além disso, como é próprio da arte, ela reafirma a capacidade humana de transcender suas limitações e ampliar o autoconhecimento. A pandemia nos legou um saber; depois dela não seremos mais os mesmos. O maior mérito do trabalho de Rodolfo é concorrer para que nos compenetremos disso.

O poder da frase