sexta-feira, 1 de julho de 2022

110 anos do "Eu", de Augusto dos Anjos


- Entrevista a Luana Lacerda, do Jornal da Paraíba -

  

 1. Augusto dos Anjos se encaixa como simbolista, parnasiano ou pré-modernista?

 R. Augusto começou simbolista, como um epígono de Cruz e Sousa. Chegou a produzir poemas no estilo e no espírito do Simbolismo, em que prevalece a estética da sugestão, mas depois viria a negar essas composições. O contato com autores como Cesário Verde e Baudelaire, potencializado pela experiência na Faculdade de Direito do Recife, levou-o a buscar um molde menos fluido e mais áspero para traduzir os conflitos humanos. Sua dicção passou do tom rarefeito e místico presente nos simbolistas a um realismo (por vezes expressionista) que já era então uma marca da modernidade. Daí ele ser classificado nos manuais de literatura como pré-modernista.

2. Você coordenou um grupo sobre Literatura e Psicanálise enquanto era professor da UFPB. Você poderia falar um pouco sobre a relação da poesia de Augusto dos Anjos com a psicanálise?

R.: Utilizei subsídios da teoria psicanalítica n´O evangelho da podridão, a minha tese sobre Augusto dos Anjos, defendida em dezembro de 1992 na UFRJ. Como eu abordava a melancolia no poeta paraibano, procurei textos de Freud, Lacan, Julia Kristeva e outros teóricos que trataram do tema. Chama a atenção no Eu a culpa manifestada pelo eu lírico – uma culpa atávica, ligada a uma primeira transgressão do homem e correspondente no cristianismo ao “pecado original”. A culpa, segundo o criador da psicanálise, é um dos componentes essenciais da melancolia, e estudá-la com base em subsídios psicanalíticos me ajudou a interpretar as imagens e avaliar os demais procedimentos retóricos presentes na obra do paraibano.          

3. Considerado o paraibano do século, qual a importância de Augusto dos Anjos para a Paraíba?

R.: A importância é enorme, claro. A própria atribuição de “Paraibano do Século” após uma consulta popular, na qual constava o nome de renomados políticos e de outros escritores de peso, demonstra o reconhecimento que a Paraíba lhe tributa. Isso não teria ocorrido se o poeta não concorresse para divulgar a imagem do estado, chamando a atenção do Brasil para aspectos da nossa história e da nossa geografia. E, sobretudo, despertando o interesse pelo espaço onde brotou uma voz poética tão original.    

4. Você conhece a trajetória pessoal do poeta? Onde estudou, grandes situações que marcaram sua vida… de uma forma geral, o que se sabe sobre ele? Há algo que o marcou ao ponto de tornar-se poeta?

R.: Há dois grandes livros sobre a vida dele: o de Humberto Nóbrega e o de Raimundo Magalhães Júnior. Nessas obras é possível encontrar aspectos importantes da sua biografia, marcada pela decadência do engenho da família e pelas primeiras experiências no magistério da capital. Costuma-se vincular o pessimismo do poeta a vivências dolorosas no engenho Pau d’Arco, como a morte da irmã Francisca e da agregada Amélia, que teria despertado em Augusto uma paixão e por isso foi punida pela mãe dele, Sinhá Mocinha. Há quem busque apontar a influência de eventos como esses na obra, o que me parece errado e, sobretudo, pouco produtivo do ponto de vista literário. Há no Eu um drama que vai além da dimensão pessoal (embora, obviamente, de algum modo a reflita).       

5. A Paraíba conhece a poesia de Augusto dos Anjos? Ele é estudado nas escolas do estado?

R.: A Paraíba o ama e admira, mas não acho que tenha um verdadeiro conhecimento da obra. O grosso dos leitores é mais sensível a aspectos de superfície, como o vocabulário esdrúxulo –  advindo em boa parte da ciência e da filosofia que o poeta absorveu na Faculdade de Direito do Recife – e a musicalidade áspera, dissonante, que impressiona a uma primeira leitura ou audição (Augusto é sobretudo um poeta para ser ouvido). Não sei se há nas escolas do estado projetos que tratem especificamente da sua poesia.    

6. Augusto dos Anjos é um poeta mórbido?

R.: Falar em “poeta mórbido” é vincular a morbidez ao universo poético. Nesse sentido ele é mórbido, sim. Existe, a propósito, muita confusão entre a doença como componente da sua poesia e como designação de um quadro pessoal. Na economia do Eu, “a doença” designa a situação do homem como transgressor; é, como escrevo na minha tese, uma metáfora orgânica para figurar a corrupção do ser humano pelo pecado, a transgressão primeira, a Falta. O poema “Os Doentes” mostra isso com clareza. Não tem sentido, por exemplo, ver o poeta como tuberculoso, conforme já ouvi muito falar; chegam até a dar a tuberculose como causa da sua morte, quando ele na verdade morreu de pneumonia. A “população doente do peito” que “tossia sem remédio na (sua) alma”, conforme está em “As cismas do destino”, era “a expectoração pútrida e crassa/ dos brônquios pulmonares de uma raça/ que violou as leis da Natureza”. Já se apontou com muita pertinência que o eu lírico de Augusto dos Anjos é na verdade um Nós. Em seu lamento ecoam o nosso desespero e a nossa perplexidade em face de uma época na qual a ciência põe em xeque as certezas religiosas e obriga o homem a erigir por conta própria uma nova grade de valores morais.

 

 


 

O poder da frase