quinta-feira, 27 de julho de 2023

Listas


         Consultei uma lista com livros para ler antes de dormir e comprei um deles. Deu certo. Mal começo a leitura, adormeço. Diante disso, quero que fique longe de mim uma daquelas listas hoje tão comuns dos “10 livros que você precisa ler antes de morrer”. Podem ter a mesma eficiência!

segunda-feira, 24 de julho de 2023

A cinta


           Trinta anos de casamento, Nicanor pensou em fazer uma surpresa à mulher:

– Que tal a gente voltar ao motel em que dormimos juntos pela primeira vez?

– Motel?! Que ideia!

– Por que não? Vai ser gostoso relembrar a sensação daquele encontro.

Tanto insistiu, que Matilde terminou concordando. Meio a contragosto, é certo, mas não custava satisfazer esse capricho do marido, que ainda veio com outro:

– Você podia vestir aquela cinta vermelha... Lembra?

A mulher aparentemente fez que não ouviu. 

Numa noite de sábado (tal como da primeira vez), inventaram uma mentira para os dois filhos adolescentes e se mandaram para o motel. O letreiro não era mais o mesmo (Nicanor teve a sensação de que piscava menos), e uma parte fora reconstruída. Mas dava para reavivar antigas sensações. 

Pediram um quarto com o mesmo número daquele em que dormiram da primeira vez. O marido achava que isso daria sorte. Depois de passar pela portaria, ele estacionou na garagem que havia ao lado. Era muito escura, certamente para preservar a identidade dos frequentadores.

Mal entraram no quarto, Matilde fez um ar de quem não gostou:

– Hum... O cheiro. Isso está com cara de que há tempos não passa por uma boa faxina. 

Dirigiu-se ao banheiro e voltou de lá com uma expressão escandalizada:

– Venha ver, Nico! 

Puxou o marido até o local.

– Está vendo? Parece até que tem limo.

– Não é tanto assim, Clotilde. Você exagera.

– E o vaso sanitário? Está precisando de uma boa bucha. 

Após uma breve pausa, deliberou: 

– Vamos ligar para a portaria e pedir uma vassoura com detergente.    

– Esqueça o banheiro – ponderou o marido. – Vamos voltar para o quarto.

Tentando fazê-la entrar no clima, ele perguntou sobre o que lhe pedira: 

– Trouxe a cinta?

– Não. O Dr. Amoedo disse que eu devia evitar qualquer tipo de roupa que prejudicasse a circulação. Por causa das varizes. Acabei jogando no armário da despensa.

– Tudo bem, dispensamos a cinta. O importante é que você... se sinta bem.

Esperou que a mulher sorrisse do jogo de palavras, mas ela pareceu nem perceber. Depois de olhar atentamente a cama, Matilde exclamou com um novo ar de protesto:     

– Me deitar aqui!? Deus me livre. Veja o colchão. 

– Não é tão ruim. E você, que é calorenta, pode ficar perto do ar-condicionado.

– Se é que eles costumam limpar o filtro...

Estavam nesse impasse, quando o celular da mulher tocou. Era o filho mais velho:

– Onde vocês estão?

– A gente está num restaurante que seu pai queria muito conhecer.

– Estou ligando por um motivo grave. Desconfio de que Isolda saiu para se encontrar com alguém. Pode ter ido a um motel.

– Como?!  

– Pois é. Ela tentou disfarçar, mas vi que levava aquela cinta, lembra? Aquela que você guarda como uma relíquia erótica dos tempos em que namorava o velho.

Clotilde mal esperou o filho terminar. Desligou e contou a conversa ao marido. Depois, preocupada, comentou: 

– E se ela foi mesmo a um motel?

– Tolice. Não se pode fazer nada. Só não gostei de ela ter levado a cinta.

– Eu devia ter escondido melhor...  

– Deixe. Ela é jovem.

Vendo que estavam perdendo tempo ali, Nicanor teve uma ideia:   

           – Vamos embora? Ainda temos tempo de ir àquele restaurante. 

domingo, 23 de julho de 2023

"Barbie", uma alegoria feminista

 

“Barbie”, o filme, não é brinquedo. Nada tem a ver com a exaltação glamurosa da boneca que despertou precocemente as meninas para a sua diversidade de papéis – não apenas o de um simulacro de mãe que cuida de seu bebê, mas o de alguém com outras versões sociais e capaz de executar diversas tarefas no campo profissional.

Nisso está a sua nota feminista, que já aparece no início numa magnífica paráfrase de “2001, uma odisseia no espaço”. No filme de Kubrick, um macaco descobre as possibilidades da sua inteligência esmagando com um osso a carcaça de um animal; é a “aurora do homem”, como chamou o diretor. No de Greta Gerwig, é uma menina que, também ao som de Richard Strauss, usa a boneca para destruir as versões bem-comportadas nas quais o machismo (embutido nas próprias mulheres) se acostumou a representá-la. 

Com isso está dada a largada para a desmitificação do universo da Barbielânda, um lugar literalmente cor-de-rosa em que todos são afáveis, risonhos, e não se pensa na morte. Ou não se pensava, pois de repente, no meio de uma dança, a referência à Indesejada das Gentes aparece na fala da boneca e soa como um brutal choque de realidade também para as outras Barbies que com ela convivem.

O filme faz uma crítica bem-humorada ao machismo. Os machos são ridicularizados na sua inépcia até para fazer coisas tradicionalmente próprias dele, como distinguir uma onda em que podem surfar. Chamam-se todos “Kens” – um bom recurso do roteiro para sugerir a padronização do comportamento e a falta de individualidade. 

A obsessão do “Ken” da Barbie por cavalos sugere quanto no imaginário dos jovens americanos repercute a figura dos mocinhos do faroeste. Não é à toa que terminam brigando uns com os outros, o que favorece a volta da hegemonia feminina na Barbielândia (não será isso uma antevisão do que poderá ocorrer numa sociedade machista e bélica como a nossa?).

Outro alvo de crítica no filme são as corporações industriais, tipificadas na Mattel, empresa que fabrica a boneca. De olho apenas no lucro, os magnatas se desesperam quando veem a Barbie invadir o mundo real para tentar encontrar o responsável pelas “imperfeições” que de repente apareceram em seu corpo e na sua alma. Como ficariam as vendas com essa Barbie humanizada? 

Curiosamente, a fonte da distopia (para usar uma palavra da moda) está na própria empresa. É uma desenhista que aparece como “uma humana” e não consegue impedir que a sua crise existencial e materna se reflita nos desenhos que produz. Vivendo uma relação tumultuada com a filha, ela parece querer romper com o modelo idealizado segundo o qual a Barbie foi projetada. 

“Barbie” é um filme inteligente e divertido. Fascina pela ousadia da sua proposta e por nos fazer refletir sobre o mecanismo que rege a criação de certos ícones do mercado. Sobretudo, mostra como são falsas e frágeis as fantasias que buscam nos afastar da realidade.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Barbárie no futebol

 


Gabriela tinha 23 anos. As imagens da TV mostram-na brincalhona, rindo entre os colegas, naquela descuidada alegria própria das pessoas da sua idade. 

Essa alegria foi tragicamente interrompida no último sábado, quando a garota se preparava para entrar num estádio de futebol. Iria torcer pelo Palmeiras, seu time do coração, mas os estilhaços de uma garrafa jogada por um torcedor do Flamengo acabaram lhe tirando a vida. 

Gabriela foi mais uma vítima do fanatismo a que comumente se entregam os membros das torcidas (organizadas ou não), muitos dos quais usam o esporte como um pretexto para pôr em prática seus maus instintos. Esses vão aos estádios não para assistir aos jogos, mas para irritar, agredir ou mesmo matar os torcedores adversários.

Ninguém gosta de que seu time perca, mas para esses fanáticos a derrota é uma provocação que o adversário perpetra e que deve ser reparada, se possível, com sangue.

Esse modo de ver quebra o pacto existente no esporte, que se constituiu como uma alternativa à guerra. Seu papel é suprir o primitivo impulso dos humanos para submeter os opositores nas disputas por terras, poder, dinheiro e tudo mais que lhes permita afirmar seu egoísmo. Espera-se que nele, a despeito do desejo de ganhar, prevaleça o que de nobre e elevado nos trouxe a civilização. 

Atitudes como a do assassino de Gabriela frustram essa possibilidade. Mostram que, na falta de quem limite tais descalabros, o esporte é um terreno em que se podem cometer atrocidades capazes de ceifar a vida de inocentes. 

A TV mostrava os pais da moça desolados; traziam estampadas no rosto a dor e a desesperança. Com a perda se foi não apenas a filha, mas toda uma perspectiva de futuro a ela associada. E com esse vazio seria difícil para eles preencher a velhice…

Quando enfim eventos como o que tirou a vida de Gabriela deixarão de manchar com sangue e coroar com luto o nosso futebol? 

O poder da frase