domingo, 16 de agosto de 2015

Também me lembro (Memórias campinenses à maneira de Braulio Tavares)

          Eu me lembro da missa das 19h na catedral, aonde eu ia todo domingo com a minha mãe. Nesse tempo eu rezava muito e pedia a Deus que protegesse as pessoas da família. Se assistisse à missa com atenção, e comungasse, eu poderia alcançar essa graça. Eu me lembro de que na volta passávamos pela Maciel Pinheiro, onde circulavam muitos rapazes e moças – alguns namorando ou se preparando para isso. Meu sonho era crescer logo para ser um deles.
Eu me lembro da primeira crise de asma, que ocorreu após uma viagem de trem na qual respirei muita poeira. De noite veio o “puxado”, como chamavam, e tive que ir ao hospital tomar nebulização e Coramina Efedrina. Eu me lembro de que certa vez meu pai teve de chamar um táxi, que rodou pela cidade enquanto eu, com a cabeça fora da janela, buscava aspirar o ar frio da madrugada.    
Eu me lembro de assistir à gravação de um capítulo d’As aventuras do Flama. O programa ia ar no momento em que era gravado, e para fazer o som de tiros, brigas ou corridas de cavalos os atores usavam os pés ou batiam em objetos. Eu me lembro de que o locutor que narrava a história não entendeu o script e confundiu o nome do Dr. Satã. Disse outro nome, esquisito, que me deu uma enorme vontade de rir. O elenco, falando baixinho e com gestos, procurava lhe indicar a pronúncia correta.
         Eu me lembro de ir sozinho até quase ao fim da Rua da Floresta, onde morava a minha primeira professora. Chamava-se Edna e dava aulas particulares. Eu não gostava muito porque tinha dificuldades com matemática, mas valia o passeio.  Eu me lembro de que no caminho passava pela casa de Seu Tiago, pai de Céu e Marli, que eram professoras, amigas de meus pais, e me chamavam de Guego (“Nego” era o apelido em família). Eu me lembro de que nessa rua levei um dos maiores sustos da minha vida; ao voltar da aula fui encurralado por Baleia, uma doida que chamava palavrões e corria atrás dos meninos que gritavam o seu nome. Eu nunca tinha feito isso, mas ela cismou de me seguir. Depois de correr muito consegui chegar em casa; estava branco, o coração acelerado. Passei um bom tempo sem querer ir à rua.   
         Eu me lembro das aulas de acordeom com Valdeci Colaço, que morava pouco depois da sede do Campinense Clube (eu passava por ali de má vontade, pois era trezeano). Carregar o instrumento era mais difícil do que tocá-lo. Com o tempo aprendi uma valsinha, que começava com “Dois corações...”, e os acordes de “Cai, cai, balão”. Eu me lembro de que me inscreveram para tocar a valsa no Clube Papai Noel, um programa de auditório na Rádio Borborema. Resisti o quanto pude, mas terminei subindo ao palco. Mal conseguia encarar a plateia. Acabei me saindo bem e até fui aplaudido.   
         Eu me lembro das caminhadas pela Getúlio Vargas rumo ao Colégio Pio XI. Gostava de passear pelos corredores e via quando um funcionário tocava o sino indicando a hora do recreio. Então eu corria para a cantina, onde uma negra chamada Lídia atendia os alunos e me deixava entrar para comer e beber à vontade. Era um privilégio de sobrinho do diretor. Eu me lembro de uma noite em que fui acordado, no sobradinho da rua Vidal de Negreiros, pelos gritos de “Queremos João Viana!”. Eram alunos que tinham entrado em greve porque o prefeito demitira meu pai de todos os seus empregos. Foi uma época difícil, em que as costuras da minha mãe garantiram a feira.

domingo, 9 de agosto de 2015

Promessa

Terminado o almoço ele se aproxima do pai, que está quase adormecendo no sofá.  
-- Pai!
-- Hum.
-- A gente pode conversar um pouco?  
-- Hum.
-- “Hum” quer dizer que pode ou não? 
-- Pode. Mas fale logo, que eu quero tirar minha soneca.
         --Tem coisas que eu gosto em você... no senhor, e tem outras que eu não gosto.
-- Por exemplo...
-- Gosto quando me leva pro cinema ou compra gibis pra mim. Não gosto quando me bota de castigo ou não me deixa jogar futebol com a turma. E sobretudo não gosto quando o senhor briga com a mamãe, como agora.
 -- Eu não brigo com ela. Ela é que briga comigo.  
 -- Dá no mesmo. Fico triste de ver os dois discutindo pelos mesmos motivos. E quase sempre ela está com a razão. 
-- Você acha? Às vezes sua mãe exagera...
-- Não é exagero. É cuidado. Ela pensa muito na casa, na família, em nós dois.
-- E eu não penso?! Você é muito pequeno para entender isso. Agora me deixe dormir.
-- Só se o senhor prometer que não briga mais com ela.
-- Por que essa conversa agora?
-- Porque amanhã é seu dia, eu vou ter que lhe dar um presente e não quero fazer isso de má vontade. 
-- “Vai ter”?
-- Não se preocupe. O presente já está comprado e vou lhe dar de qualquer maneira. Mas a gente precisava, antes, ter essa conversa. De homem para homem.
-- De menino para homem, você quer dizer.
-- Está vendo? O senhor não me respeita. “Menino”! O que tem demais ser menino?
-- Nada, contanto que não se meta em assuntos de adulto. Com o tempo você vai compreender que brigas de casal não são o fim do mundo. Acontecem em todo casamento. Isso não quer dizer que os dois não se gostem. Pergunte à sua mãe pra ver se não é verdade. Agora vá, que já está passando a hora de tirar o meu cochilo.
Ele se afasta e volta depois de alguns minutos.
-- Pai...
-- Que é agora?!
       -- Perguntei a ela. Brigas de casal acontecem, mesmo, em todo casamento.
-- Eu não lhe disse?
-- Mas não precisam durar tanto tempo. Por que não aproveita, que amanhã é seu dia, e faz as pazes com ela?  
-- Isso deve partir de sua mãe.
-- Não acho. Esse tipo de decisão deve partir do pai, que é o chefe. Ele é quem toma a iniciativa.  
-- Esta bem. Vou pensar.    
            Era uma promessa, mas o menino ficou contente. Tudo indicava que teria um ótimo Dia dos Pais. 

Dizer pelo excesso