segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O flagrante

     - Vamos ali, que está escuro.        
     - Entre aquelas árvores?
     - Sim. Ninguém vai ver.
     - Ótimo. Tem até um banquinho de cimento... 
     - Fique alerta. Alguém pode se aproximar. 
     - Ok.
     - Agora deite e abra.
     - Estou tentando. Parece que o fecho ecler emperrou
     - Tente com mais força.
     - Não consigo.  
     - Veja se puxando a alça...
     - Já puxei, e nada.  
     - Então mude a posição. Vou tentar pelo fundo.
     - Pelo fundo? E se rasgar?
     - Tolice. Eu sei fazer com jeito.
     - Então faça.    
     - Também está difícil... Vamos tentar de lado.
     - Vou virar. Pronto.
     - Nada ainda... Vê se sacoleja um pouco. Ajuda.
     - Assim?
     - Mais rápido!
     - Estou fazendo!
     - É... Pelo visto não vai ser possível. Isso me deixa ansioso. 
     - A mim também. Não quer tentar mais uma vez?
     - Você acha que vale a pena?

    Nesse ponto os dois são surpreendidos pelo clarão de uma lanterna e veem chegar três homens de revólver em punho.
     - Polícia! Pensavam que iam conseguir abrir, não é? A gente trocou a mala. Só queríamos a prova de que vocês sabiam da propina e iam tentar retirar o dinheiro. Vamos agora para a delegacia!

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A vidente

Ele mais uma vez dormira mal. Com tanta gente sendo presa, tinha medo de não sair ileso. Envolveu-se em algumas tramoias, é certo, mas como poderia resistir? Agiu por influência de amigos e porque isso era “da cultura”, todo mundo estava fazendo. Do grupo participavam cerca de dez, todos com codinomes; o dele era “Menestrel”. Nunca entendeu por que resolveram chamá-lo assim, já que não gostava de música e tinha péssima voz. Talvez justamente por isso; a turma gostava de ironizar.
Começou a folhear o jornal para ver se havia alguma menção ao seu nome. Leu uma nota sobre um colega que tinha sido pego, e sentiu um arrepio; amanhã poderia ser ele. Saltou da página política para os Classificados. Foi quando viu o anúncio. Era pequeno e mal dava para se perceber os dizeres: “Mãe Cordélia – Vidente -- Saiba tudo sobre o seu futuro.”.
Não era de acreditar nessas coisas. Por uma opção ideológica feita na juventude,  achava que esse tipo de crendice era fruto de alienação burguesa. Mas agora estava precisando muito de conforto. “Mãe Cordélia.” O nome tinha um quê de apaziguador. Anotou o endereço e tratou de ir para lá.
Enquanto dirigia, pensou na possibilidade de ela confirmar os seus temores. Essa hipótese era terrível, mas pelo menos poria fim à dúvida. Ele trataria de se prevenir, providenciando álibis e contratando bons advogados. O pessoal estava fazendo isso, e às vezes com sucesso.
A casa era pequena, pintada de verde (a cor da esperança!) e com um lustre envelhecido pendendo do teto do alpendre. Tocou a campainha. Pouco depois apareceu uma mulher de vestido longo e cabelos presos num lenço. Tinha o ar sério, mas cordial. Sem lhe perguntar nada, mandou-o entrar. Ele achou muito significativo aquele silêncio. A circunspecção cai bem em quem costuma esquadrinhar os mistérios do tempo. 
A mulher o introduziu num quarto pequeno e penumbroso, que cheirava a alfazema.  Mandou-o sentar num dos lados de uma mesa em cujo centro havia um globo transparente coberto por um pano colorido. Ele tentou explicar por que estava ali. Falou em caça às bruxas, abuso do Judiciário... A mulher sorriu:   
-- Você não é o primeiro que vem aqui por causa disso. Já recebi vários.
Ela tinha experiência! Se fora muito procurada é porque gozava de boa fama, e fama não se conquista à toa. Mãe Cordélia retirou parte do pano verde e ficou olhando a superfície translúcida. Fechou os olhos por cerca de um minuto. Depois de os abrir, suspirou e disse:  
-- Sossegue. Não há nada contra você. Eles não lhe alcançaram.
Achou enigmática essa última frase, mas preferiu se deter na anterior. “Nada contra você.” Ela não ia mentir; devia ter responsabilidade num assunto tão delicado. Sentindo que Mãe Cordélia não acrescentaria mais nada, ele perguntou quanto lhe devia.
-- Pague o que achar que mereço. Os outros foram generosos...
Abriu a carteira e deu boa parte do que tinha.  Acostumara-se a andar abonado, já que nos últimos meses não podia correr o risco de passar cheques ou usar cartões. A mulher agradeceu com um sorriso (mais largo do que o anterior) e o conduziu à saída.
Nessa note ele dormiu sem a ajuda do ansiolítico. Teve um bom sono, e ainda sonhava quando foi bruscamente despertado pela esposa:
-- Acorde, pelo amor de Deus! Tem policiais aí fora.
Sem tirar o pijama, ele foi abrir a porta. Um dos homens lhe entregou a intimação:     
-- O senhor vai ter que nos acompanhar. Esperamos aqui que troque de roupa.
Ele se vestiu rápido, beijou a mulher (que parecia resignada) e seguiu com os agentes. Na delegacia lhe explicaram que o prendiam porque pesava contra ele a suspeita de desviar dinheiro público. Graças a uma delação, tornara-se um dos alvos da Operação Bola de Cristal.


terça-feira, 7 de novembro de 2017

Divagando se vai longe (9)

O Vaticano canonizou de uma vez 30 santos brasileiros. O curioso é que não exigiu, como prova de santidade, o relato de nenhum evento milagroso. Mas para nós isso pouco importa, pois santo de casa não precisa fazer milagre.
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Escala do sucesso  
Se você quer chegar LÁ, não pode dar marcha à RÉ. Quem faz isso merece DÓ e precisa cair em SI. Pare então de MI-MI-MI e levante desse soFÁ.
Há sempre um lugar ao SOL!
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         As palavras têm significados. Escrever bem é juntá-las da melhor maneira para que tenham um sentido. Como não há palavras neutras, o mau emprego ou o excesso delas pode arruinar esse propósito. Daí a necessidade de suprimir as que não funcionam, cortá-las sem clemência, a fim de não retirar o valor das que contam.   
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Cinco razões pelas quais eu gostaria de ser um advogado. Ele
- não precisa buscar popularidade, já que é líder em audiência.
- tem mais do que os outros espírito cristão, pois luta para que se perdoe o réu independentemente de ele ter ou não culpa.
- dificilmente se aperta, devido à sua habilidade para obter recursos.
- está sempre disposto a assumir uma boa causa. 
- tem a filosófica compreensão de que a vida é um conjunto de processos que não devem chegar necessariamente ao fim (a não ser com a morte).
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          O humor surgiu no momento que o homem se percebeu pensante e foi capaz de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo. Nossa primeira reação a esse “parto ontogenético” não foi o choro (como ocorre nos partos biológicos); foi o riso. “Rio, logo sou”.   

Enem

É divertido ver aquele pessoal que se atrasa para a prova do Enem. Teve um que chegou cerca de dois segundos antes de o portão fechar. Agora vai ter mais um ano para treinar e ver se melhora o tempo.
A corrida para chegar na hora termina dando certa literalidade à expressão “maratona do Enem”; tem até torcida. O Inep devia pensar nisso e instituir um prêmio para os primeiros colocados.
Como a imprevidência quanto ao horário é sugestiva de outros descuidos, os atrasados certamente não vão passar. O prêmio poderia servir de consolo.
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Gostei do tema da redação do Enem. Gostei até por motivos pessoais. Conheço de perto a batalha dos surdos para vencer a discriminação, ter acesso à escola e conquistar um lugar no mercado de trabalho.
Apenas achei que a temática da educação inclusiva, por ser abrangente, poderia envolver outros grupos com necessidades especiais. O aluno teria mais elementos para se posicionar e apresentar seus argumentos. O que os textos motivadores trouxeram é pouco para cobrir um assunto complexo como a “formação educacional” (expressão redundante) dos surdos.
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O modelo de redação do Enem precisa ser repensado. A dissertação argumentativa é, de fato, o melhor gênero para avaliar de forma isenta o aluno (a narração, por exemplo, demanda habilidades mais de escritor do que de redator). O problema é que o formulismo com o qual esse gênero tem sido ensinado vem cerceando a inteligência e a criatividade dos alunos.  
Parágrafos feitos de generalidades, citações aplicáveis a qualquer tema, propostas de intervenção que envolvem os mesmos agentes e ações são alguns dos recursos que podem ser "estocados" (já vi citações que nada tinham a ver com o tema em redações que obtiveram 1000). A memória passa a ser mais importante do que o raciocínio e a imaginação.  
Minha proposta é que se volte à variedade de gêneros, incluindo outras possibilidades como o resumo, o comentário crítico, a carta argumentativa. 

Dizer pelo excesso