domingo, 19 de junho de 2016

As horas

O cuco me funde a cuca
e o resto do corpo inerme.  
O seu canto é uma sentença
gravada na minha pele.

O cuco soa mortal
a quem o escuta (ou não).
Seu trinado é como um réquiem   
que se escuta sem perdão.  

O cuco é máquina do tempo
urdindo, certa, a mortalha.
É o gatilho, o veneno,
o gume de uma navalha.

O cuco é um galo cego
saudando o dia engolido
pela noite, que o segue
rumo à vastidão do olvido.

(da série “Meus pecados poéticos”)

Carta a Berta (3)

Querida Berta:

Na última carta lhe falei de “Bolsonaro”, nosso pitbull. Talvez você não saiba, mas a escolha do nome foi minha. Celeste queria que ele se chamasse “Dirceu”, imagine! Expliquei a ela que, no contexto atual, esse nome não era recomendável.  
Ela fincou o pé e eu pensei que ia perder, pois é mais fácil tirar Eduardo Cunha da Câmara do que fazer minha mulher mudar de ideia. Ainda assim propus um “par ou impar”, com o argumento de que o destino daria a última palavra. Celeste é muito sensível a essas coisas de fatalidade e acabou aceitando, certa de que a sorte estaria a seu lado. Perdeu.
Isso piorou o seu humor, que já era ruim desde a decretação da greve de sexo (não que ela sentisse falta, pois foi sua a ideia, mas não suportava que eu também não me incomodasse). Seu ressentimento acirrou a nossa luta pelo poder, que é velha. Depois da última discussão, de que até "Bolsonaro" participou (me defendendo, claro, pois todos sabem que o cão é o melhor amigo do homem e tem pouca simpatia pela mulher), resolvi falar grosso e dar um ultimato: dali em diante, quem mandava na casa era ela.
Isso fez Celeste sossegar um pouco, mas não superar a frustração com o meu desinteresse sexual. Para me agredir, veio dizer que a minha indiferença vinha de eu ser incompetente na cama; nunca acertara, por exemplo, o tal Ponto G. De fato, eu sempre tive dificuldade com isso. Chego a pensar que indicaram a letra errada.
Acredito que seu ressentimento é mesmo profundo, pois ultimamente ela cismou de fazer terapia. Quando me falou dessa pretensão, tive um calafrio; com a atual crise, como é que a gente ia poder pagar as sessões? Além do mais, esse tipo de tratamento tem os seus riscos. Dizem que é comum o paciente se apaixonar pelo terapeuta. Imaginei Celeste me deixando por um lacaniano e não simpatizei com a ideia. Afinal gosto dela, mesmo neurótica como é. Desconfio, inclusive, de que a neurose é o nosso ponto de equilíbrio. Se um dia ela ficar curada, me deixa.
Para as coisas serenaram, propus-lhe uma viagem e perguntei para onde queria ir, e por quanto tempo. “Para onde o dinheiro der”, respondeu. Melhor, porque nesse caso a gente não precisava levar malas, o que iria diminuir muito o trabalho dela.  
Vejo que me alongo, e sei que sua paciência (ao contrário da dos brasileiros) tem limites. Fico então por aqui. Aguarde nova missiva, pois as cartas que lhe mando têm me servido de lenitivo (ainda vou ver no dicionário o que essa palavra significa, mas vai assim mesmo).

Do seu fiel 
Nicanor. 

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Aforismos brasileiros (3) - Machado de Assis

 “É melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar.”


Essa é uma das frases mais populares de Machado. Nela o “Bruxo” exercita sua famosa ironia, ao contestar realisticamente um velho chavão. “Cair das nuvens” significa decepcionar-se, perder a ilusão com alguém ou alguma coisa. O autor opõe a essa possibilidade a ideia de que muito pior é cair de um prédio (o modesto terceiro andar certamente se explica por no tempo dele não haver espigões). Os danos no primeiro caso são para a alma, que se recompõe com algumas lágrimas; afinal, a vida é mesmo feita de decepções... Já no segundo os prejuízos são físicos – muitos ferimentos e ossos quebrados, quando não acontece o pior. Esse aforismo, ao mesmo tempo que nos faz sorrir, encoraja-nos a enfrentar com resignação as desilusões.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Para Denise, no seu aniversário


Chega aos sessenta aquela que, um dia,
conheci no frescor da juventude
e se fez minha doce companhia     
“na tristeza, na dor ou na saúde”. 

Não poucas vezes me indaguei, medroso,   
o que no rosto lhe faria o tempo;    
se a beleza, à força dos desgostos,
dele se iria como o pó ao vento.

Percebo agora, tantos anos idos,  
que esse temor carece de sentido    
e que era vã a minha fantasia,

pois a beleza não se desfigura     
quando a anima, retoca e apura    
outra maior, que dentro se irradia.  

domingo, 12 de junho de 2016

Carta a Berta (2)

Querida Berta:

Só não digo que a coisa aqui está preta para evitar interpretações racistas, mas a verdade é que se tornou muito difícil suportar o País. A crise é política, ética, econômica e também doméstica, pois de um modo ou de outro ela entra em nossa casa. O clima não está bom entre mim e Celeste, minha mulher, que cada vez faz menos jus ao nome e tem-se mostrado infernal.
Sempre tivemos posições diferentes, mas isso nunca justificou as desavenças que está havendo entre nós. Ela era PT; eu, PMDB. Ela, por causa de Lula; eu, devido a Ulisses Guimarães, que sempre me pareceu uma reserva moral. O problema é que, no Brasil, a moral tem ficado mesmo na reserva, e acabamos descobrindo que entre o PT e o PMDB não há diferença – a não ser no discurso. As práticas políticas e administrativas são as mesmas. Aceitei isso numa boa, mas Celeste não quis dar o braço a torcer (o que, aliás, é próprio dos que pensam como ela).
Desapontada com Lula (pelo qual, desconfio, teve uma paixão platônica no tempo em que ele era pobre e barbudo), Celeste resolveu vender a bicicleta que tinha comprado para imitar Dilma (deixara a academia porque, segundo ela, esse era um lugar para as dondocas da elite).
Como quase sempre ocorre entre os casais, sua raiva acabou se voltando contra o marido, ou seja, eu. Depois de uma discussão séria que tivemos, ameaçou fazer greve de sexo. Respondi-lhe que, por mim, ela podia fechar as portas. Isso acabou enfurecendo-a a ponto de ela não querer fazer mais nada em casa. Seria um boicote de cama, mesa e banho.
E mais: atribuiu a minha reação ao fato de ela sempre ter sido “do lar”. De agora em diante seria diferente; eu é que lavaria a louça, passaria o pano na casa, passearia com o cachorro e assistiria às novelas da televisão. Pedi-lhe, em nome de Lula e das antigas glórias do PT, que me poupasse pelo menos dessa última tarefa. Ela foi durona (estilo Dilma!) e manteve o castigo.
Eu teria outras coisas a lhe dizer, mas fica para outra vez. Está na hora de levar “Bolsonaro”, nosso pitbull, para fazer as necessidades. Se ele sujar a sala, nem sei o que Celeste fará comigo. 

          Do seu mui aflito 
          Nicanor.

domingo, 5 de junho de 2016

Carta a Berta

Querida Berta:

Estou pensando seriamente em deixar o País. Qualquer alternativa (com exceção da Venezuela, claro) é melhor do que isto aqui. As coisas andam muito confusas. Só para lhe dar uma ideia: o presidente em exercício (a gente fala assim, embora não saiba que atividade física ele pratica) não consegue “fechar” o novo ministério porque, entre os indicados, um ou outro tem problemas com a Justiça. Ou ele não sabe quem está escolhendo, ou lhe faltam mesmo opções.
         Dizem que acertou na equipe econômica e está errando no resto. Inclusive no português, pois precisa se tornar simpático ao povo mas abusa das mesóclises. Ele parece não saber que o povo rejeita esse tipo de construção (assim como não gosta do “cujo”). A mesóclise, além do mais, é de péssimo augúrio; faz lembrar “o homem da vassoura”, aquele que renunciou devido a forças ocultas, lembra?
Se continuar errando, o presidente (em exercício, ufa!) não vai emplacar. Com isso, terá que devolver o cargo à... presidenta (não sei se é pior pronunciar essa palavra ou ouvir um “sê-lo-á”). Para alguns, isso seria um contragolpe, mas o Brasil é assim mesmo; golpeia hoje e sofre o revide amanhã.
         Você é que é feliz morando aí. Não tem que acompanhar as idas e vindas do novo governo e o temor dos políticos, que estão em polvorosa por causa da Operação Lava-Jato. A maioria deles já não dorme ou, se dorme, acorda sobressaltada com medo das delações (cada vez mais frequentes) e do juiz Sérgio Moro (que, ainda por cima, só se veste de preto). Muitos não sabem se no dia seguinte estarão num carro oficial, rumo ao trabalho, ou num avião com destino a Curitiba.
          Vou ficando por aqui, pois preciso ir para a cama antes da próxima edição do jornal. Se tiver que acompanhar mais uma daquelas transcrições de fitas gravadas, certamente vou me irritar e perder o sono. Não pelo que elas revelam, mas pelas surradas justificativas dos acusados.
       Escreva. Levando em conta o que acontece neste país, qualquer notícia que você mande servir-me-á (meu Deus, estou me contaminando!) de refrigério e deleite.

       Abraço do seu
       Nicanor.

Dizer pelo excesso