domingo, 30 de setembro de 2012

Do baú (2)

Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que o beijo é mais íntimo do que o ato sexual. O sexo sem beijo é fisiológico, mas não erótico. Alivia, mas não arrebata. O beijo é o selo da paixão.
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Para o exercício da maioria das profissões, exigem-se exames que atestem capacidade e competência -- mas isso não ocorre na política.
Alguém confiaria num médico, num advogado ou num engenheiro que não dominasse as exigências teóricas e práticas de seu ofício? Claro que não. No entanto, frequentemente nos deparamos com pessoas sem preparo que pretendem representar o povo. Pessoas cuja habilidade, muitas vezes, é estritamente a de barganhar ou comprar votos. Esse vale-tudo mostra por que é tão difícil tirar o país da indignidade social e moral em que ele vive.
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Tudo é risível não porque o homem seja mortal, mas porque é falho. Existe uma grande distância entre o que ele pretende ser e o que ele é. Ficamos sempre aquém de nossas pretensões. E quanto maior a empáfia, maior o ridículo.
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A internet não diminui a solidão. Diminui o anonimato. Os contatos na rede não suprem os contatos reais. A prova disso é aquele ar meio constrangido com que encontramos na rua, no shopping, numa festa, um amigo virtual. Dificilmente engrenamos um papo ou assumimos um tom de intimidade -- a não ser que ele também seja um amigo real.
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A disciplina dispensa plateia, por isso é tão difícil praticá-la. É o exercício solitário de fazer o que se deve para obter um efeito remoto e às vezes duvidoso. Como geralmente se procura resultados imediatos e certos, poucos se submetem a uma rotina disciplinada. Mas sem ela não se produz nada que persista ou valha a pena.
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As ações ditadas pela vaidade são superficiais. As que trazem consequências importantes são praticadas na discrição e na surdina. Quem procura demais os holofotes acaba encandeado.
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O pior do futebol são as tais “torcidas organizadas”. Nelas não há amor ao futebol, mas ódio aos oponentes. Transformam rivais em inimigos e investem contra eles sua sanha homicida. Não entendo que se morra, nem muito menos que se venha a matar, por Flamengo, Corinthians, Fluminense ou qualquer outro time. Nenhum deles, por maior que seja a paixão, vale uma vida.
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Dons não são méritos. O mérito está em utilizar da melhor maneira os dons -- ou mesmo a falta deles. Ninguém é responsável pelas habilidades ou carências com que nasceu, mas responde pela forma como as administra. Uma das palavras-chave é autoaceitação.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Divino vinho

Dizem que beber é uma arte -- a não ser para os alcoólatras, que bebem sem nenhuma preocupação estética. Tenho pouca experiência no assunto, pois sempre bebi pouco, mas não há dúvida de que o álcool bem administrado traz alguma forma de beleza à vida. Uma beleza não meramente contemplativa, mas também funcional.
Uma de suas utilidades é servir de desinibidor para os tímidos. Outra é ajudar a esquecer os problemas de hoje -- de hoje, ressalve-se, pois em certas pessoas ele evoca reminiscências por vezes traumáticas. Tenho um amigo que quando bebe odeia o pai; o álcool o faz se lembrar das surras injustas que levou. Nesses momentos ele chora, como se ainda sentisse as lapadas do cinturão, e só volta a se entender com o velho quando está de novo sóbrio.
Seja qual for o mérito do álcool, uma coisa é certa: beber é um aprendizado que pode começar com o que for, mas termina sempre no vinho (mais especificamente, no vinho tinto). O vinho é a culminância, a redenção, a prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um estágio às vezes doloroso rumo à transcendência.
A cada momento da vida corresponde uma preferência etílica. A adolescência é a fase da cerveja e dos runs baratos e fortes. Nessa época ninguém se preocupa com a saúde nem com o decoro; isso, aliado à falta de dinheiro, faz com que se aceite emborcar qualquer coisa. O importante é o efeito, a sensação, independentemente do que possa ocorrer depois.
Lembro-me de que certa vez, sem dinheiro nem para esse cardápio trivial, comprei meio litro de uma vodka cujo nome por si revolvia o estômago. Paguei caro por essa ofensa a Baco. No dia seguinte, o simples ato de abrir os olhos provocava uma fuzilaria que lacerava a minha cabeça.
Na idade adulta também padecemos de ressaca, mas não por escassez de dinheiro ou inexperiência. As preferências nesse período são outras, e geralmente compatíveis com o bolso. É o momento em que entram em cena os destilados, que são nobres e sutis mas não se prestam à celebração da vida.
É preciso chegar ao vinho para perceber que o ato de beber tem um sentido. E que esse sentido, tal como nas cerimônias religiosas, manifesta-se por meio de um ritual. Depois que alguém escolhe o vinho e se fixa nele, não há mais como descer nem como subir. A descida (cachaça, vodka, rum) seria um retrocesso rumo à barbárie; a subida, bem, esta só será possível quando a alma, enfim liberta dos grilhões terrenos, adentrar os páramos da Eternidade.
Lá chegando, não será difícil encontrar Deus diante de uma garrafa de vinho quase tão velho quanto Ele. Um vinho talvez feito com parreiras do Éden, para festejar num momento de reconciliação com os homens as maravilhas da Criação. E vai dar para ouvir ao longe, entre ardores e clamores, o diabo tomando absinto.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Revisitando Alice (2)

Alice desistiu de procurar a Rainha, mas não estava nada satisfeita com as mudanças de tamanho. Era muito doloroso não saber como ia acordar no dia seguinte. Caminhava pelo bosque com esses pensamentos tristes, quando viu ao lado da trilha um homem sentado diante de uma mesa sobre a qual havia um papel em branco. Era o Escritor. Resolveu lhe falar:
- Senhor Escritor...
- Vá embora! Não vê que estou me concentrando?
A menina se desculpou e ficou em silêncio, observando a expressão do homem. Ele parecia olhar para dentro de si. Depois de uns dois minutos, dirigiu-se a Alice com um ar aborrecido:
- Já falei que fosse embora! Preciso de concentração.
- Mas eu estou calada...
- Está olhando para mim, o que é pior. Não consigo pensar com alguém olhando para mim. Mesmo que seja uma menina como você.
Alice não gostou do que ouvira, mas resolveu não se contrariar. Sempre que se contrariava, ficava um pouco menor. O pior não era diminuir de tamanho, era ver que os outros notavam isso.
- Por que o senhor escreve?
- Ainda não descobri. Na verdade, escrevo para descobrir por que escrevo - respondeu o homem. Ficou tão satisfeito com a resposta, que resolveu usá-la em seu próximo escrito.
- E você, já escreveu alguma coisa?
- Uma vez tentei escrever uma história, mas era muito triste e acabei chorando. As lágrimas manchavam o papel.
- É verdade - concordou o Escritor - Não se pode chorar e escrever ao mesmo tempo. Além de manchar o papel, prejudica o estilo.
- Estilo? Engraçado... minha mãe sempre diz que eu preciso ter estilo. E agora o senhor vem com essa. O que é mesmo estilo?
- Estilo é o modo de fazer uma coisa. Cada um tem o seu.
- Se cada um tem o seu, por que mamãe diz que eu... “preciso” ter um?
- Sua mãe se refere a outro tipo de estilo. Quer que você se comporte bem.
- Então estilo é bom comportamento?
- Pelo contrário... Estilo é rebeldia -- disse ele pensativamente. Alice ficou sem entender e resolveu mudar de assunto:
- Posso lhe falar um pouquinho dos meus problemas?
- Não tenho tempo para ouvir; estou escrevendo. Além disso, que problemas pode ter uma menininha como você?
- Na verdade, tenho um só - mas enorme. Eu até trocaria esse problemão por muitos problemas menores.
- E qual é seu grande problema? - quis saber o Escritor, imaginando se poderia tirar dali uma história.
- Mudar de tamanho. Nunca ser muito tempo uma coisa só.
- Fique tranquila, você não é a única. Esse é o problema de todo o mundo.
- Isso não me faz sofrer menos. Nem todo o mundo aumenta ou diminui do mesmo jeito. Depende do... estilo de cada um.
- O que você diz tem sentido, mas não muda as coisas. Você não é diferente dos outros, e nada do que me disser vai ser novidade.
Desapontada, a menina resolveu ir embora. Não dava para conversar com alguém que só queria olhar para si mesmo e não tinha tempo de escutar os outros.

sábado, 22 de setembro de 2012

Pontuar

Em crônica recente publicada neste jornal, Luis Fernando Veríssimo afirmou que nunca tinha usado o ponto-e-vírgula. A observação do escritor gaúcho, que é antes uma blague contra os gramáticos e puristas, sugere-nos algumas reflexões sobre a arte de pontuar. Ela tem a ver com um dos atributos fundamentais da poesia ou da prosa, que é o ritmo. Literatura é linguagem ritmada e para se imprimir ao texto o seu ritmo é fundamental o uso desses sinais, que se a alguns aborrece e inibe, a outros empolga e mesmo encanta.
O ritmo é uma espécie de virtude metafísica da literatura. Um erro de grafia tem conserto, basta que se consulte um formulário ortográfico. Uma falha na concordância, na regência ou na colocação pode ser sanada com uma consulta gramatical. A falta de ritmo, traduzida entre outros indícios pelo mau emprego dos sinais de pontuação, sugere que o sujeito não dá mesmo para o ofício. É um míope verbal e certamente usará de modo inadequado as palavras. Pois não há semântica adequada sem um adequado suporte rítmico. A palavra errada é sobretudo a palavra fora de tempo.
Pontua-se como se respira, respira-se como se pontua. E quase sempre ocorrem os exageros. Há os que decompõem o enunciado, abusando do chamado fragmento de frase. E picotam o período. Às vezes sem necessidade. Apenas pelo gosto de fracionar. De separar. De isolar os componentes da oração. Sujeitos. Predicados. Complementos.
Há, pelo contrário, os que constroem períodos densos, longos, torrenciais, desses que tendem a abusar da paciência do leitor, coitado, que parece estar atravessando um rio interminável e caudaloso, e fica na expectativa de que aquilo termine pois, com o tempo, ele até já esqueceu o que foi dito no início da frase e tudo o que deseja, a partir de certo momento, é que o escritor se compadeça da sua paciência e mesmo do seu fôlego, que dentro em pouco lhe faltará como já lhe falta a boa vontade para prosseguir na leitura, e ponha enfim nessa teia aparentemente infindável um ponto final. Ufa!
Há os que se exaltam à toa e abusam do pontos de exclamação. Sempre! Até sem motivo! Como se vivessem numa perpétua euforia! Ou num perpétuo susto! Há os que abusam das reticências. Esses não dizem logo tudo, fazem suspense... Preferem deixar sempre alguma coisa no vento, no ar... Imaginam que nesse deliberado laconismo é que mora a sutileza... O gosto de sugerir, explorar as entrelinhas, sabe como é... Pois o texto fala mais, quando... Eu sei que vocês me entendem.
Há os que (e esses geralmente são perfeccionistas) gostam de intercalar vários parênteses em seus períodos. Como se fosse necessário (às vezes é, mas eles exageram essa preocupação) fazer contínuas ressalvas às próprias idéias (mesmo as que já se tornaram claras para o leitor). Eles têm receio de que seu discurso (que eles supõem, geralmente, traduzir uma mensagem valiosa e útil) não seja suficientemente vigoroso (e sobretudo, claro, inteligível).
Há os que não resistem ao excessivo emprego dos: dois pontos. Esses parecem estar sempre preparando: uma surpresa, um desenlace inesparado para o leitor. Que acaba deixando de se surpreender: pois os dois pontos terminam, previsíveis, constituindo: uma espécie de alerta falso. E já deixam o leitor: de orelha em pé.
Há, enfim, os obreiros da vírgula, que, numa espécie de afã asmático, virgulam, com disciplina espartana, sempre que a norma determina. A esses, pouco importa que o sentido se torne claro, no próprio fluir da corrente verbal. Se a regra manda, mesmo, contra o ritmo natural da fala, eles, prestos e soldados, vão largando, a intervalos breves, curtíssimos, as suas vírgulas, que, para o leitor, equivalem a pedregulhos, ou valas, ou, enfim, a obstáculos, que dificultam o, já difícil, ato de ler.
E tu, leitor, qual o teu ritmo? Como é que, lendo ou escrevendo, tu respiras?

(Em "A rosa fenecida", p. 71)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Seleção de frases (16)

O melhor da fama não é colher os louros. É colher as louras.
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Quem não assistiu aos filmes de 007 perdeu o Bond da história.
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A desconfiança é a parteira da verdade.
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Não há dom sem dor.
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Não basta ter pegada. É preciso deixar rastro.
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A oferta do guia eleitoral não ajuda na escolha. Há candidatos tão ruins, que não servem nem para voto de protesto.
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A resignação é o pacto do desejo com a necessidade.
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É preferível uma meia verdade a uma mentira inteira.
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Ansiolítico de pobre é garapa.
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O fundamento das ideologias é o rancor.

domingo, 16 de setembro de 2012

Elogio da rotina

      Volto de viagem e entro aos poucos na rotina. Melhor seria dizer: deixo que a rotina entre em mim, pois rotina não é coisa que se procure. Ela se impõe e nos envolve, com seus tentáculos lerdos e brancos. Ou com a força de um bicho doméstico e inevitável, que nos acua todo o tempo. Ainda não encontrei ninguém que dissesse: “Busco ou, pelo menos, aceito a rotina; os atos simples e repetidos do dia-a-dia me satisfazem”. Pelo contrário. Todos querem o diferente e o inusitado, embora diariamente tropecem na armadilha do mesmo e do igual.
Aproveito e faço filosofia barata: viver é repetir-se e jamais decorar o papel. Querem melhor signo de repetição do que a rotina? Mas o que é a rotina, enfim? Digamos que ela seja o acaso em preto e branco. A fatalidade do esperado, do conhecido. Sendo o total oposto da aventura, ela nos esmaga pelo óbvio e pelo já sabido. Estamos biblicamente condenados a nos repetir, conforme está no Eclesiastes: “Nada de novo sob o sol”. Pelo jeito, a nossa aurora foi um clarão previsto, com data marcada para o começo e o fim. Viver é seguir um esquema biológico. Na natureza tudo é rotina, tudo é igual. A não ser quando ocorre uma mutação, que é antes um fenômeno de teratologia. Mesmo o organismo mutante, porém, logo se reenquadra nas leis cósmicas.
Mas a rotina não é esse estorvo que dizem, e vou mais além: é graças a ela que se realizam as grandes conquistas humanas. Pode-se concebê-la como uma versão pragmática do tédio. Ao mesmo tempo que transforma o tédio em ação, a rotina o desarma e o doma. O melhor do que produzimos resulta do esforço e da prática repetida. O melhor do que sentimos decorre da exposição, por um longo tempo, a um mesmo e recorrente estímulo. Sem a rotina, nada perceberíamos do mundo; seríamos uns amadores de nós mesmos, uns ignorantões acerca da natureza e do cosmo.
Como somos românticos incuráveis, tendemos a só atribuir os grandes feitos humanos a impulsos de transgressão e aventura. E não levamos em conta o quanto houve neles de persistente e rotineiro. A começar pela nossa desobediência original, tipificada no gesto de Adão. Só se enfatiza que ele, tentado, comeu o fruto. Ninguém refere o paciente e rotineiro trabalho de Eva, que levou anos para convencer o parceiro de que comer a maçã era mesmo bom. Adão desconfiava, e com razão: nunca tinha experimentado. Não fosse a perseverança da mulher, teríamos ficado para sempre no paraíso – o que significa dizer: no mesmo nível dos bois, dos camundongos e das cabras.
As grandes descobertas humanas são obra da rotina. Ou será que o lampejo dos gênios ocorre sem um processo de maturação que leva dias, meses, anos? Newton intuiu a lei da gravidade vendo cair uma maçã – disso todos sabem. Mas o que ele fazia debaixo de uma árvore às duas horas da tarde? Devia estar entediado com o dia a dia. E se naquele instante teve a súbita revelação, quantas tardes não passou, rotineiramente, pensando e calculando sobre a queda dos corpos?
O mesmo se pode dizer de Galileu, que tanto amava a rotina quanto com ela se aborrecia. Ele só era tão guloso dos céus porque, em certos momentos, o cotidiano lhe parecia extremamente chato. Então aperfeiçoou o telescópio para ver o mais longe possível, afastando-se espiritualmente do açougueiro, dos credores e dos vizinhos.
Mas deixemos de lado os gênios e pensemos em nós, que nada descobrimos de original e que, no mais do tempo, vivemos um cotidiano sem lampejos nem mutações. O comum é maldizermos o dia a dia e invejar os que têm dinheiro para renovar os hábitos e as posses, condimentando a vida com o diferente e com o exótico. Eles seriam os felizes – no entanto, vez por outra se matam. Talvez não suportem o excesso de um cotidiano cuja fartura enxota o sonho, o humilde desejo de outra coisa.
Ah, bom mesmo é destruir a rotina para depois voltar a ela. E reencontrar em seus domínios discretos, longe da vertigem e do barulho, a inteireza simples que gratifica o espírito. Parodiando Vinícius, eu diria que a rotina é a arte do reencontro. E sua maior justificativa está em que não se pode amar o novo, o inédito. Não se pode amar o que não se conhece.
Rotina é exercício de amor.

(Em “A rosa fenecida”, p. 20)

                                               

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O colchão

É de manhã cedo. Mal abro os olhos para o mundo, ouço a minha mulher, ao lado, sussurrar: “Podíamos trocar este colchão...”. Fala no imperfeito, como se meditasse. Como se dissesse isto mais para si do que para mim. Faço que não ouço e ela repete, com essa típica obsessão das esposas, que, para além das esquisitices e dos caprichos pessoais dos maridos, sabem o que é melhor para a casa: “O colchão está velho, vamos comprar outro.” Fecho os olhos, tapo os ouvidos, viro para o outro lado – mas não adianta. Sei que esse tom de conjectura é ilusório. Ela está, na verdade, generosamente me informando uma decisão que já foi tomada. O marido, afinal de contas, não pode ser o último a saber.
Ai de mim, sei que o destino do velho colchão onde me encontro, curtindo mais a preguiça do que um restinho de sono matinal, está decidido. Amanhã ou, no máximo, na outra semana estarei deitado sobre um objeto duro, inóspito, cheirando a novo. Juro que não resisto pelo dinheiro, mas por uma natural propensão a me apegar ao certo e ao conhecido. Entre o velho colchão e mim desenvolveu-se uma intimidade fraterna, uma parceria de sono e de sonhos que me custa, assim de repente, ver rompida. É claro que não digo isso a ela, que não está disposta a mudar de ideia por razões de ordem sentimental.
Decidida a nova compra, vamos os dois ao comércio. “Não vale pechinchar” – ela me adverte antes de entrarmos no carro. “Colchão é coisa definitiva, tem que ser do melhor.” “Nem tão definitivo assim”, digo a mim mesmo. Se colchão fosse para toda a vida, ficaríamos com o outro, já afeiçoado aos nossos corpos. Entramos em uma, duas, três lojas (resisto à advertência que ela me fez e heroicamente, cinicamente, cumpro o meu papel de marido e chefe da casa – pechincho). Na terceira loja encontramos um bolachão azul e com estrias brancas que mais ou menos concilia os interesses do casal. É sólido, bonito e não tão caro. Contemplo-o com natural desconfiança; encostado na parede, ele me fita com o ar neutro. Arrisco um contato, um carinho, premindo com o polegar o seu dorso plano. Ele praticamente não se abala, hirto em sua indiferença ortopédica.
Resolvemos então levá-lo, ou melhor, esperar que a loja mande-o deixar em nosso apartamento. Dois dias depois, chega o instante de fazer a troca. Ao suspender o velho colchão, dou-me conta de que ele está, mesmo, bastante gasto. O tecido azul descorou, ficou meio cinza e, em alguns pontos, ameaça rasgar-se. O mais triste são umas manchas de cor indecisa, que lhe ferem irremediavelmente a dignidade. Difícil acreditar que são marcas nossas, a contraparte fisiológica de nossos repousos e prazeres, que ali se imprimiu como num sudário vulgar.
Ironia de um destino que é também o nosso, humanos seres: agora experiente, temperado pelas manchas e lacerações que a vida lhe imprimiu, o velho colchão vai dar lugar a outro – novinho e melhor encorpado. A fim de esconder as marcas de velhice, que parecem refletir-se em nós, minha mulher providencia um plástico grosso e fosco, onde o ensacamos com algum alívio. Ele durou, realmente, mais do que devia. Tornou-se um registro excessivo, e por demais franco, da nossa intimidade. E não queremos que atravesse nu a área do condomínio.
Os dois homens o suspendem por uma das bordas e ele transpõe, vertical, a porta do apartamento. É pesado e aderna um pouco, ou sobe e desce como se avançasse num mar invisível. Os homens fazem força para mantê-lo ereto nessa última caminhada, mas a isto ele opõe uma resistência manhosa e trôpega. Resistência de velho patético, que não reconhece que o seu tempo já passou. Mas, enfim, termina saindo.
Depois que desaparece escada abaixo, fechamos a porta e, com um ímpeto leviano, voltamos para o quarto e nos pomos a contemplar o colchão novo. Confesso que já não o acho tão antipático. Alguma coisa nele, para além da textura vívida e do impessoal cheiro de fábrica, me traz um longínquo, obscuro conforto. O tecido imaculado, sem borras, é como o reflexo de uma impressão que, lá no fundo, nos faz bem acalentar: a de que mais vida nos será acrescentada. Com ele, por assim dizer, nos renovamos. O novo colchão nos parece uma senha, uma estrada, uma garantia de muito sono e muitos sonhos pela frente...
E a minha alma boceja, feliz.
(Em "A rosa fenecida")

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Seleção de frases (15)

Tem gente que só vota em branco. Pra mim, isso é racismo.
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“Carola” é aquela pessoa que parou no templo.
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Antigamente a fama exigia distinção, uma espécie de “notório saber”. Hoje se pode ser famoso com uma notória ignorância.
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A verdadeira sabedoria é desconfiar da sabedoria dos outros.
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O ócio é a mãe de todos os vices.
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Nenhum homem é simples. A alma do sujeito mais bronco é um abismo de complexidade.
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Quem é mesmo ladrão faz a ocasião.
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O sucesso está para a felicidade assim como o sexo está para o amor.
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A verdade é a ilusão da qual se está convicto.
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Há quem escreva para “se aliviar” e acabe enchendo os outros.

Dizer pelo excesso