domingo, 31 de janeiro de 2016

A flor e o vírus

Li que uma flor nasceu na estação Estação Espacial Internacional. É uma flor do gênero das zínias e constitui o primeiro espécime vegetal a nascer fora da Terra. Em 1982 os russos cultivaram na estação Salyut 7 alguns arabidopsis, mas o feito que o astronauta Scott Kelly acaba de conseguir parece mais expressivo, pois as zínias completaram seu ciclo de desenvolvimento até florescer. Os cientistas da Nasa estão eufóricos, e não é para menos.
Flores nascem todo dia, em jardins bem ou malcuidados. Existem até as que rebentam em terrenos baldios, como por geração espontânea; essas não impressionam nem comovem ninguém. Mas uma flor numa estação espacial surpreende e tem um inegável valor simbólico. Mostra que é possível cultivar a vida fora do nosso planeta e estimula o sonho dos que acham possível deixá-lo um dia.   
Pelas condições em que a Terra se encontra, maltratada e poluída, chegará o momento em que viver nela se tornará impossível. Entre os que têm essa opinião está o físico Stephen Hawking, que num programa da BBC afirmou: “Apesar de a possibilidade de um desastre no planeta Terra em um determinado ano poder ser bem baixa, isto vai se acumulando com o tempo, e se transforma em quase uma certeza para os próximos mil ou dez mil anos". A solução será abandonar nosso planeta-mãe e tentar colonizar outros.
O fato de uma flor ter nascido numa estação espacial estimula bons prognósticos. Pelo aroma, a delicadeza, o desenho caprichoso, a flor é um marco de beleza e renovação. Uma eclosão de esperança. Os poetas, particularmente, são atentos ao seu valor simbólico. Para representar o sonho de paz num mundo transtornado pela guerra, Drummond escreveu que “uma flor rompe o asfalto”.
Ela representa a vitória da fragilidade sobre a prepotência. É uma nota de lirismo num ambiente em que os corações padecem de melancolia e aridez. Foi com flores que o movimento hippie se propôs a enfrentar a ânsia aquisitiva de um mundo fascinado por sucesso e dinheiro. Para tentar moderar os excessos do capitalismo, elegeram-nas como instrumento de conclamação à paz e ao amor.
Esperemos que a for nascida na estufa da estação espacial seja também um aceno de convivência harmônica entre os homens. Depois dela, que é um organismo vegetal, chegará a vez do organismo animal.  O aparecimento da vida em condições de microgravidade abrirá o caminho para que ela ocorra em condições ainda mais adversas. Quem sabe, em outros planetas.
         O triste de pensar nessas coisas é que a Terra parece cada vez menos florida. Em muitas de suas regiões, o pântano chamado miséria soterra crianças, pobres e outros tantos desvalidos. Chega a ser um acinte falar em exploração espacial, com todo o dinheiro que isso demanda, quando muitos mal têm o que comer, beber ou vestir. Para esses a Terra já se tornou inabitável, e não há nenhuma perspectiva de fuga. O que significa, para eles, a zínia que floresceu na estação espacial? Nada. Ela é tão distante quanto lhes é próxima a ameaça da zica, a doença que reduz o cérebro de suas crianças. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

Do baú (9)

O humor é sério justamente porque combate a excessiva seriedade. Quando tudo fica sisudo demais, nada como contar uma boa piada. Isso relaxa e põe em xeque a pretensa gravidade da situação. Não é à toa que as melhores anedotas são sobre aquilo que mais nos preocupa ou angustia – sexo, religião, casamento, morte. Tratá-los jocosamente é uma forma de se sobrepor à ameaça que essas experiências representam.
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-- Sabe qual é seu problema? Você não ama os homens.
-- Eles merecem?
-- Justamente por isso precisam ser amados. Não há mérito em se amar quem merece.
-- Ah, não me venha com esses conselhos cristãos! 
-- Não são conselhos; não gosto de aconselhar ninguém. Nem são apenas cristãos. São...  humanos. Se o humanismo coloca o homem no centro de tudo, é porque o considera digno de amor. Por que não?
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A culpa muitas vezes leva o homem a confundir confiança com presunção. É preciso escapar dessa armadilha e acreditar em si. Afinal, como diz Paul Johnson, “a confiança é o começo da destreza”.
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As pessoas fazem questão de que uma história seja “verdadeira”, embora considerem insuportável a realidade. O aparente paradoxo se explica: uma coisa é a realidade vivida; outra, a realidade contada. Na ficção, a realidade não dói. É apenas algo que constatamos, sem viver.
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No Brasil o espírito de séquito sobrepõe-se à avaliação do mérito. Os “nossos” são sempre inocentes (vítimas de manobras políticas) e os “outros” são culpados, independentemente do que façam.
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Não sei se há um método comportamental para diminuir a depressão ou se apenas remédio ajuda. No entanto, como a culpa que acompanha o quadro depressivo se agrava com a percepção das próprias falhas, tentar fazer a coisa certa concorre para diminuir o desânimo.
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Quando as coisas passam, parecem inevitáveis. Esse é um processo de racionalização pelo qual julgamos vencer o acaso -- achar que o que aconteceu tinha de acontecer. Ora, nada tinha de acontecer, a não ser depois de ter acontecido.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Seleção de frases (42)

             Quando o brasileiro não atrasa, é porque o evento atrasou.
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                   Depois do micro-ondas, apressado não come mais cru.
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Não adianta descobrir a “pílula da felicidade”. Seu efeito dependerá basicamente de quem a toma.
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                         Teimosa é a aranha. Só faz o que lhe dá na teia.
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Há pessoas cuja essência se confunde com a do perfume que usam.
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A felicidade, de tão fugidia, nos conforta apenas com a ideia da sua possibilidade.
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O problema do relacionamento entre os casais é que as mulheres falam demais e os homens escutam de menos. 
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              Quando os presos se rebelam, ocorre reação em cadeia.
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                               O tempo não nos dá calote. Dá culote.
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          Uma pessoa sem segredos é como um texto sem entrelinhas.        

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Soneto de Ano-Novo

             Ano-Novo. E sempre, nessa data,
             em meio à correria que não cessa,                  
             buscamos (com uma ponta de trapaça)             
             renovar os desígnios e promessas.

             O que não fomos, por preguiça ou medo,
             seria, enfim, agora resgatado,  
             e nos parece que ainda é cedo
             para viver o antigo sonho adiado.
           
             Melhor seria nada prometer
             para não virmos nos arrepender
             quando chegar o fim do novo ano

             mas é próprio das nossas ilusões
             arquitetar grandes resoluções
             e vê-las ruir por voluntário engano.

            (da série "Meus pecados poéticos")

domingo, 3 de janeiro de 2016

Como eu quero envelhecer

      Minha irmã médica pede que eu divulgue um concurso de redação proposto pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia sobre o tema “Como eu quero envelhecer”. O concurso se destina a alunos do primeiro e segundo anos do ensino médio, mas me deixou motivado. Fiquei pensando em como eu gostaria de enfrentar essa prova que a natureza nos reserva.
     Se a velhice é obra da natureza, o sensato é enfrentá-la de modo natural. Simplesmente deixar que ela venha, dispensando os artifícios com que tantos procuram negá-la. Nada de plástica,  nada de pintar os cabelos, nada de se vestir como um garoto. Tais recursos não disfarçam a passagem do tempo e acabam dando aos que deles se servem um aspecto caricato. Revelam desconforto e sofrimento com a perda da juventude, quando a maior vitória é mesmo aceitá-la.  
       Dizer que a velhice tem os seus prazeres é um lugar-comum, mas não há como fugir a ele. O cansaço do corpo propicia uma abertura do espírito, que se torna mais sensível à beleza. Quero envelhecer com tempo para ver bons filmes, apreciar boas pinturas, ler alguns livros que não li. E sobretudo (o mais difícil) fazer grandes viagens. Quero envelhecer não com riqueza, mas com o dinheiro suficiente para conhecer alguns dos importantes centros culturais e artísticos do mundo.
      Quero envelhecer fazendo o que sempre tenho feito e desprezando esta palavrinha mortífera – aposentadoria. Envelhecer no trabalho, que dá sentido à vida. Afinal, somos o que fazemos. Quero envelhecer fiel aos meus princípios, mesmo errados e às vezes confusos, porque bons ou maus são eles que me seguram. Mas também quero forças para mudar quando isso for útil aos que me cercam e não representar uma traição a mim mesmo.
      Quero ficar velho com habilidade não para esperar a morte, mas para me desprender da vida. A morte nada tem de transcendente; morto, não estarei em lugar nenhum. A vida, sim, transcende. Ela é o grande mistério, e a perspectiva de perdê-la requer sabedoria. Quero enfrentar isso com coragem e decência
      Quero envelhecer com bom humor para encarar o espelho e o olhar das pessoas, sobretudo aquelas que passam anos sem nos ver e mal disfarçam a surpresa quando se deparam conosco (parecem não se dar conta de que o espanto é recíproco).  Quero envelhecer sem rancores, perdoando a quem me feriu e merecendo o perdão daqueles a quem fiz mal. Com isso eu teria um bom veredicto no julgamento dos homens e poderia, quem sabe, permanecer algum tempo na sua memória.
       Quero envelhecer aprendendo a dizer certas palavras a quem amei, palavras que ficarem recolhidas por encabulamento ou falta de jeito.  Também quero envelhecer sem o mau humor nem o azedume tão comuns a boa parte dos velhos, que parecem desprezar os que em outra quadra do tempo desfrutam a vida (como se essa oportunidade não lhes tivesse sido ofertada). Quero sobretudo envelhecer com lucidez, dono do meu corpo e do meu espírito. Se isso for impossível, não faço questão de ir embora mais cedo. 

Dizer pelo excesso