domingo, 30 de outubro de 2011

O tema de redação do Enem

Tenho recebido e-mails de candidatos com dúvidas sobre o tema de redação do Enem 2011. A maior parte quer saber se devia, e em que medida, enfocar as redes sociais; ou se poderia comentar a relação público x privado fora do âmbito da internet.
Para compreender o tema é preciso associar a formulação explícita, que aparece no início da Proposta, aos chamados textos motivadores. A formulação explícita é: “Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado”. O tema se compõe de dois segmentos, um rigorosamente atrelado ao outro por dois-pontos. Isso quer dizer que o aluno devia, dentro do assunto internet, enfocar a relação entre o público e o privado.
Essa relação é coerentemente enfatizada nos textos que compõem a antologia. O primeiro tem como tópico a afirmação de que a ONU acaba de declarar o acesso à rede um direito fundamental. A seguir, destaca-se que as pessoas começam a abrir seus sinais privados de wi-fi e que os governos se mobilizam a fim de expandir a rede para espaços públicos.
O segundo texto é extenso e oferece preciosos subsídios para nortear o desenvolvimento do tema. Começa por destacar o tempo que os usuários passam conectados à internet -- mais especificamente, às redes sociais. Depois ressalta que as redes são hoje um fator de socialização e conferem ao indivíduo uma identidade. No entanto, ao mesmo tempo que “tornam alguém popular”, “arruínam reputações”. Daí ser fundamental não expor na internet “o que se fala em público”, pois ela “não acoberta anonimato”, ou seja, permite que se desvende o domínio privado de cada um.
No terceiro texto, que é uma charge, ironiza-se a ingênua tentativa de um dos personagens de “lutar contra a sociedade de controle juntos”; a ironia está em que a pessoa a quem ele se dirige é na verdade quem o está controlando diante de um monitor. Outro dado irônico é que o indivíduo que monitoriza é também vigiado por uma câmera que pende do teto. O clima de Big Brother da tirinha remete de novo à relação público x privado, sugerindo que hoje é quase impossível preservar o espaço individual.
A função dos textos de suporte é ajudar o candidato a manter o foco temático. No Enem deste ano, eles cumpriram a contento esse papel. Cabia ao aluno os ler bem para evitar os desvios ou as temidas fugas, que podem zerar a redação.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Chico Viana antecipa questão do Enem 2011 em Especial da revista "Língua Portuguesa"

        Matéria do Especial Vestibular/Enem 2012, publicado pela revista Língua Portuguesa, antecipa o conteúdo da questão 99 do Enem (Prova Azul). No tópico “O adjetivo severina”, o professor Chico Viana transcreve passagem do poema de João Cabral de Melo Neto para questionar a identidade do narrador. Escreve, então:
      “O plural Severinos (...) refere-se aos que na região onde o retirante vive têm o mesmo nome que ele; isso o leva a procurar outras referências que sirvam para individualizá-lo. O uso do adjetivo severina qualifica a partir dos traços físicos e do estilo de vida (ou de morte) do personagem aqueles que são tão miseráveis como ele.” (p. 38)
       Tais palavras praticamente reproduzem o que afirma Antônio Carlos Secchin em texto que, na prova, acompanha o fragmento do poema: “A autoapresentação do personagem, na fala inicial do texto, nos mostra um Severino que, quanto mais se define, menos se individualiza, pois seus traços são partilhados por outros homens.”
       Na questão 99 a banca transcreve esta pergunta do personagem: “Como então dizer quem fala/ ora a Vossas Senhorias?” Em seguida, quer saber do candidato por que meio se dá a resposta a ela. O correto é assinalar a alternativa c: dá-se pela “representação, na figura do personagem narrador, de outros Severinos que compartilham sua condição”.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Na contramão da vida

O Brasil é um país em que pouco se respeitam as leis. Aceitamos isso com um fatalismo meio cômico, transformando nossa aversão às normas em motivo de piada. Tudo é muito engraçado até o momento em que o desrespeito vira tragédia, como vem acontecendo nas estradas em razão do álcool ao volante.
Há uma lei que proíbe beber e dirigir, mas ninguém a cumpre nem a fiscaliza. Lembro-me de quando ela apareceu, com o sugestivo nome de Lei Seca, e por algum tempo ganhou largo espaço na mídia. Reportagens mostravam pessoas sendo paradas e submetidas ao teste do bafômetro. Ou jovens que iam para as baladas e escalavam alguém do grupo para ficar na direção. Esse não bebia durante toda a noite e até virava motivo de uma troça saudável entre os colegas. No fundo tinha orgulho por “se sacrificar” em prol da segurança dos outros. Sobriedade era sinônimo de solidariedade.
Com o tempo essas cenas foram deixando o noticiário e dando lugar a outras bem mais sombrias. Em vez de mostrar as blitzen para flagrar alcoolizados na direção, ou a turma que bebia de forma responsável, as que vemos agora alternam a descrição dos acidentes com as imagens das famílias chorando seus mortos -- muitos deles, jovens.
Vez por outra vemos sair do carro responsável pela colisão um motorista que mal se segura nas pernas e engrola as palavras diante do repórter. Se lhe pedem para soprar o bafômetro (como se fosse preciso!), ele não apenas se recusa como reage com violência.
Todos conhecem o caminho para que tais cenas saiam dos noticiários: fazer cumprir a lei, punindo com rigor quem a descumpre. A medida mais sensata seria obrigar todos os que se excedem no trânsito a fazer o teste do bafômetro. A recusa a se submeter a ele seria uma tácita confissão de culpa.
Alega-se que tal obrigação não se justifica porque ninguém pode ser levado a produzir provas contra si mesmo. Esse é um dos sofismas com que habitualmente se manipula o Direito para impedir a justiça. Não é difícil refutá-lo: a tal prova contra si apenas se concretiza caso o indivíduo tenha mesmo bebido; ninguém é incriminado por ela se está sóbrio. Logo, em vez de um instrumento de incriminação, o teste é um recurso para o estabelecimento da verdade. Não revela o que não existe.
Enquanto a Lei tropeça nesses ardis, continua a tragédia em nossas estradas. E os culpados, impunes, festejam a liberdade brindando à morte.

domingo, 23 de outubro de 2011

Tema do ENEM 2011 foi trabalhado em redações no Curso Chico Viana

“Viver em rede no século 21: os limites entre o público e o privado", tema da redação do Enem 2011, associa-se a pelo menos dois temas propostos aos alunos do Curso Chico Viana.
O primeiro, diretamente vinculado ao exame, apoia-se em texto da “Superinteressante” e aborda a internet sob o prisma das redes sociais. Segundo a matéria da revista, elas disseminam “vários dos principais comportamentos humanos” e tendem por influência dos amigos a moldar o comportamento das pessoas; isso acaba se constituindo numa ameaça à sua individualidade.
O segundo, que traz como suporte o texto “Réquiem para o indivíduo”, de Carlos Heitor Cony, tematiza o conflito entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão. Com base nas ideias do articulista da Folha de São Paulo, o professor questiona os alunos sobre “até que ponto é lícito violar a intimidade individual em prol do interesse público” -- o que muitas vezes ocorre na internet.
A discussão em classe de ideias associadas ao tema do Enem, e amadurecidas em atividades textuais, faz Chico Viana esperar de seus alunos um tranquilo e competente desempenho na redação. Não era outra a expectativa do professor, tendo em vista que a produção de um texto semanal, exigida de seus alunos durante todo o ano, torna grande a possibilidade de que um deles seja contemplado no exame.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Diálogos (6)

  A mulher, enraivecida, depois de esperar horas pelo marido:
- Odorico, por que você me deixou aqui plantada?
- Ora, querida, para lhe ver desabrochar!
****
- Escritor, como faço para ter mais inspiração?
- Dilate bem as narinas.
****
- Deixe de ser tão detalhista. Relaxe.
- Começando, especificamente, por que parte do corpo?
****
- Querida, eu ontem menti para você.
- Não se preocupe. Eu faço isso com você há 20 anos.
****
O líquido para a garrafa que o contém:
- Sou vidrado em você.
****
- Meu tio casou-se aos 80.
- Esse tem tudo para ser fiel até a morte.
****
- Mestre, que posso fazer para tornar proveitoso o nosso diálogo?
- Primeiro eu falo e você escuta. Depois você escuta e eu falo.

domingo, 16 de outubro de 2011

Ciúme e crime

Tantas notícias embotam a nossa sensibilidade. O crime de ontem é logo esquecido pela chacina de hoje, que por sua vez perde o interesse para a tragédia de amanhã. Ficamos insensíveis e transformamos o ato de assistir ao noticiário em vício. O que é o vício, senão um prazer impuro? Impuro não apenas no sentido moral, mas no de que já não nos gratifica porque não atinge certas camadas do nosso ser. Existe para satisfazer uma compulsão.
Certamente por essa banalização das tragédias, falou-se pouco do crime cometido por aquele professor de Direito em São Paulo. Depois de atirar na mulher e vagar horas sem saber o que fazer com o cadáver, ele resolveu se entregar. Parou o carro em frente a uma delegacia, entrou e disse ao delegado de plantão que tinha feito “uma besteira”. Entende-se o sentido em que ele usou “besteira”, mas é impossível ignorar os outros que essa palavra tem: tolice, ninharia, insignificância. Tirar a vida da moça tinha sido para ele isso.
O que o levou a matar a aluna foi o despeito por ela não o querer mais. E a história não pode ser mais velha. Alguém -- geralmente o homem -- não aceita que o deixem e chega ao limite de suprimir quem faz isso. Se não pode ter a mulher por bem, a tem por mal, destruindo-a e mostrando enfim quem manda. A supressão do outro parece ser a única forma de compensar o orgulho ferido.
Esses crimes de passionais não têm nada. O natural é que a paixão conduza à vida, não à morte. Era difícil que gente como Doca Street, Pimenta Neves e outros que a crônica policial imortalizou amassem as pessoas que brutalmente mataram. São na verdade crimes provocados pelo ciúme, e a despeito da arrogância dos que o cometem justificam-se por um intenso automenosprezo.
A lógica do ciumento é: não posso confiar em quem gosta de mim. Logo, devo em algum momento ser traído e preciso me prevenir disso. O ciumento não entende que a confiança no outro nasce da confiança em si. Como não a tem, sente-se na iminência de ser abandonado. De certo modo deseja isso, pois considera o abandono um meio de se punir. No fundo quer transformar o outro em traidor para mostrar que tem razão e com isso alimentar o seu rancor, que logo se transforma em ódio. As balas são a tradução material desse ódio.

domingo, 9 de outubro de 2011

O campeão que Campina perdeu

O primeiro concurso de que participei ocorreu no auditório da velha Rádio Borborema, em Campina Grande. Foi lá pela década de cinquenta. Havia por esse tempo um programa infantil chamado “Clube Papai Noel”, comandado por Eraldo César. Fui várias vezes a esse programa, no qual cheguei a me apresentar tocando acordeom. Um suplício, sobretudo pelo tamanho do instrumento, que eu a custo carreguei até o centro do palco. E ali toquei meio curvo, afogado pela dispneia do cansaço e da emoção.

A família me prognosticava um grande futuro musical, pois além da nordestina sanfona me fez também aprender violino. Entre o regional e o clássico, optei por nada, mas até hoje sinto a nostalgia daquelas notas mal tocadas. Por um instante cheguei a vislumbrar nelas um futuro de glória.
Eraldo César promovia em seu programa concursos de robustez. Crianças bem-nutridas eram levadas por pais vaidosos, que as exibiam como provas de saúde e bons cuidados. Não sei se havia um júri específico ou se todo o auditório votava. Sei que minha mãe costurou uma sunga especial e, num domingo, meu pai me fez participar da prova. Havia dezenas de garotos e garotas no palco, cada qual mais risonho e “saudável”. Era um tempo simples e bom, de poucos produtos industrializados, em que o mingau de araruta e a velha Maizena pareciam suficientes para nos deixar sãos e fortes.
Ao dizerem meu nome, fui conduzido ao centro do palco e exibido como um troféu eugênico. Depois me mediram a barriga, os braços, as coxas. Existe uma pequena foto que comprova isso. É um retrato em preto e branco, no qual sorrio como um bácoro inocente nos braços do meu pai. A fotografia semiapagada atesta que eu merecia ganhar. Com pouco mais de um ano, tinha a lustrosa redondez de um anjinho barroco.
Não houve suspense na divulgação do resultado. Fui escolhido por aclamação. Ignoro que prêmio me deram, ou mesmo se houve algum prêmio além do rótulo de “garoto robusto”; o fato é que a vitória se constituiu num prólogo irônico à asma que viria depois. O “puxado” destruiu-me o vigor. Não fosse ele -- quem sabe? --, Campina teria dado ao mundo um Mister Universo.

domingo, 2 de outubro de 2011

A volta do rabo

As possibilidades da engenharia genética são ilimitadas. Li que num futuro próximo será possível fazer clonagens retrospectivas e, ativando a memória do DNA, recobrar determinadas características que as espécies perderam. Veio-me então à cabeça a possibilidade de readquirirmos nosso rabo.
O rabo nos traria inúmeras vantagens neste mundo regido pelo consumo. Quantas vezes, no supermercado, não deixamos de comprar mais coisas porque só temos duas mãos? O rabo funcionaria como uma terceira. Além disso nos tornaria mais sociáveis; um efusivo aceno de rabo seria a melhor forma de demonstrar apreço por alguém.
Na vida amorosa o rabo também se mostraria muito útil. A começar de que daria um sentido literal à palavra “enrabichado”, que hoje usamos como vaga e deseducada metáfora. Em vez de olhar para as pernas e o bumbum das mulheres, os homens olhariam para seus rabos, que logo se tornariam irresistíveis símbolos sexuais. No jogo da conquista a aquiescência às insinuações de um pretendente não se expressaria por um olhar ou um sorriso -- mas por um sugestivo balançar de rabo.
Conscientes do poder do rabo, as pessoas tratariam de mantê-lo não apenas saudável como também bonito. Isso levaria a indústria a lançar no mercado produtos especialmente voltados para ele. Haveria salões (os Rabo Coiffures) especializados em penteá-lo, rinçá-lo, tingi-lo, pois um rabo bem apresentado indicaria status e melhoraria a autoestima do seu dono. A publicidade ajudaria na disseminação dessa ideia, criando slogans como: “Um homem se conhece pelo rabo”, ou: “Você é sobretudo o rabo que tem”.
Tanta importância dada a ele geraria conflito entre as pessoas, e a psicanálise acabaria descobrindo um complexo fundado na “inveja do rabo” (que, ao contrário da “inveja do pênis”, atingiria homens e mulheres). Os terapeutas penariam muito para convencer os rabicurtos de que os rabilongos não viviam no melhor dos mundos.
O rabo teria opositores, claro. Seus adversários condenariam a clonagem por considerá-la um retrocesso. Os defensores contra-atacariam dizendo que a volta do rabo confirmava a lei do “eterno retorno”. E os religiosos, sabiamente, veriam nele a indicação de que o homem devia abdicar da vaidade e da soberba, pois era um animal como outro qualquer. A prova disso é que, tal como os cachorros e os macacos, tinha rabo.

Dizer pelo excesso