terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A folia de cada um


               Sempre fui um folião enrustido. Como tinha dificuldade de aderir à folia, a família e os amigos me consideravam anticarnavalesco -- o que não é verdade. Brinco por dentro, com uma espécie de euforia espiritual. Pode parecer contraditório falar em espírito a propósito de uma festa que celebra a carne, mas a contradição é apenas aparente. Carne e espírito são no fundo uma coisa só. O desejo é físico, mas pode se sublimar, e nesse caso a alma se funde com o corpo.  Freud que o diga.  

         Carnavalescos como eu têm dificuldade de cair no samba, no passo ou no frevo. Gostam mais de olhar, imunes ao tumulto dos clubes e das ruas.  São diferentes dos que rejeitam o Carnaval com o argumento de que nessa ocasião o homem se animaliza. Animal ele nunca deixou de ser – um animal soterrado por séculos de civilização. A festa é o meio de deixar emergir a “fera” aprisionada. Ou isso, ou a neurose, a psicose e outros males a que o progresso nos conduz. É preciso vez por tirar a máscara de bons moços.   

         O carnavalesco enrustido compreende a necessidade de liberar o que há em nós de instintivo. Não só compreende como sente um pouco de inveja dos que fazem isso sem inibições, entregando-se sem reservas à alegria. O que ele tem não é moralismo, é pudor, cuja manifestação visível é a timidez. Ao perceber isso, os outros o provocam e às vezes o humilham.

Não adianta. Nada o faz balançar o corpo, nem mesmo os acordes iniciais de “Vassourinhas" (essa música sempre me pareceu um dos maiores símbolos do Carnaval pelo seu poder de contagiar as massas; nos clubes ou nas ruas, quando tudo parece monótono, ela sempre dá alguma voltagem à animação). 

         A tendência do enrustido é ver o Carnaval como nostalgia. Nostalgia do presente, pelo momento que escapa, e a óbvia nostalgia do passado, pela lembrança de outros carnavais. Na sua imaginação, eles eram melhores do que os de hoje.

É como se naquele tempo não houvesse tanta agitação ou maldade e fosse possível brincar sem maiores riscos. As mulheres pareciam mais pudicas; e as músicas, cheias de um romantismo que convidava aos devaneios de um grande amor (mesmo que esse amor, como diz a letra da canção, desapareça com a fumaça). Para o nostálgico, que é parente do melancólico, tudo que se distancia da realidade é melhor.

         Crença ilusória. Os Carnavais do passado não são diferentes dos de agora. Cada época imprime à festa a sua marca, mas o significado profundo permanece o mesmo. Quando eu era menino, costumava ouvir relatos de mortes nos salões devido aos porres de lança-perfume; ou de agressões, provocadas por ciúme, que terminavam em assassinatos. Sob o aparente romantismo latejava a febre das grandes paixões, potencializadas pela música e as drogas.

Vou assistir à festa pela televisão, de olho também na crise que o País atravessa. Espero que ela não tenha a força de inibir as pessoas que veem na festa a possibilidade de esquecer por uns dias o vandalismo nos Três Poderes e o morticínio dos ianomâmis. O País está marcado por escândalos como esses e por outras chagas, como a intensa desigualdade social e a violência contra as mulheres. É preciso uma dose grande de esquecimento e alegria para depois, com a lucidez possível, enfrentar o que vem por aí.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Humor e velhice


                Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer desfrutá-la. Uma das formas de evitar que a graça se perca, mesmo sendo avançada a idade, é cultivar o humor.

  O bom humor diante das limitações que a idade impõe é uma forma de resignação ativa. Existe a resignação passiva, que leva à tristeza e a uma espécie de submissão ressentida aos percalços da idade. Não é essa a que o humor propicia, pois quem ri da própria condição mostra que não se submeteu a ela.

O riso não apenas “castiga os costumes”, conforme a expressão latina; não é só um instrumento de crítica social e um recurso para transformar as instituições. Ele também constitui um meio de aferição das carências individuais. Concorre para que o indivíduo tenha a exata medida do seu valor e, sobretudo, reconheça suas fraquezas e impossibilidades.

Rir de si mesmo é um gesto grandioso porque vai de encontro ao egoísmo e à presunção de superioridade sobre os outros. Só os grandes espíritos são capazes disso, pois não temem se ver como verdadeiramente são, quer dizer, sem as máscaras com que normalmente atuam na sociedade. “Atuam” é bem o termo, pois o convívio com as outras pessoas tem muito de representação. E ninguém representa o que é, mas sim o que pensa ou deseja ser.

Rimos do absurdo de certos comportamentos, como o de se deixar filmar vandalizando a sede dos Três Poderes; da hipocrisia dos que no púlpito pregam virtudes, mas na prática são capazes de atos extremos como assassinar alguém; dos que falsamente invocam a pátria e a família para conquistar o poder. O riso atesta um descompasso entre o propósito e a feitura, a expectativa e o fato, a visão do mundo e o que o mundo realmente é.

Fala-se que os humoristas são tristes, o que em nada surpreende. Se escolhem o humor, é porque há nele a percepção da impotência humana para mudar o que a vida tem de insuficiente e frustrante. Os humoristas são os primeiros objetos dessa dura percepção. Toda manifestação de humor é no fundo um gesto de piedade. Só que o humorista não tem o propósito de salvar nada nem ninguém; ri desse ingênuo propósito, que não nos redime da nossa condição.

            Aos velhos, para os quais tendem a se fechar as possibilidades de viver plenamente, o humor é uma espécie de volta por cima. Um meio de superar as limitações de um corpo no qual mínguam os recursos vitais. Nessa quadra da vida, propícia ao cultivo do espírito, o riso aparece como um saber que consola – com a vantagem de reduzir a pressão e aliviar as coronárias. É preciso desconfiar dos velhos que não aprenderam a rir.

O poder da frase