sexta-feira, 19 de abril de 2024

O poder da frase

           

          Quem não gosta de frases? Tudo o que lemos ou escrevemos ao longo da vida vai se resumir a algumas delas. O resto não vale a pena ser lembrado e não será lembrado nem que valha a pena, pois nossa memória é limitada. A frase existe para nos dispensar de recordar o livro todo, já que permite apreender a essência da obra. E não apenas a essência, como num resumo frio em que o que interessa é a ideia; a frase é também ou sobretudo forma. 

         No nosso mundo rápido e pragmático, é mais fácil ler frases do que ler livros. Estes são longos e tomam muito do nosso tempo mesmo que saltemos algumas páginas. Já as frases são breves e nos liberam logo para atividades essenciais como ir ao supermercado, visitar o shopping ou investir na Bolsa.    

         Pode-se objetar que não há como evitar os livros, pois é neles que as frases estão. Para contornar esse problema, lembro que existem no mercado várias coletâneas só de frases. Pode-se comprá-las como quem compra comida sintética, dessas que vêm em pílulas e concentram na medida exata os nutrientes fundamentais para o corpo. 

          A frase é um concentrado do espírito, com a vantagem de não ter prazo de validade nem efeitos colaterais (a não ser que se trate daqueles arabescos barrocos justificadamente chamados de “cerebrinos”, pois podem dar dor de cabeça. Mas para isso há cura, basta ler um bom autor clássico).   

          Uma frase como: “Os homens se distinguem pelo que aparentam e se assemelham pelo que escondem”, de Paul Valéry, concentra um saber para cuja apreensão seria necessária a leitura de vários romances e tratados de psicologia. O mesmo se diga de: “Por delicadeza, perdi a minha vida” – um verso de Rimbaud que substitui com vantagem muitos livros de autoajuda sobre a necessidade de se dizer “não” ainda que isso pareça indelicado.         

       Alguém já escreveu que tudo existe para terminar em livros. Retifiquemos: tudo existe para terminar em frases. Tanto é assim que antigamente as pessoas procuravam caprichar em seus epitáfios, que eram uma síntese da visão que tiveram da vida. O epitáfio podia ser crente ou cético, otimista ou pessimista, progressista ou reacionário , mas devia aparecer em bom português.

         As pessoas sabiam que, quando os amigos ou parentes fossem visitá-las no túmulo, tudo o que veriam seria aquela inscrição em letras douradas luzindo no negror da morte. O epitáfio tinha que gerar, se não o elogio às qualidades do morto, pelo menos o reconhecimento de que ele se esforçara para escrever bem. Devia ser urdido com cálculo e esmero, para funcionar como o apoteótico “The End” de uma vida o mais das vezes banal.

sábado, 13 de abril de 2024

Dia do Beijo


            O beijo é o selo da paixão. Não se concebe sem ele o encontro de duas pessoas que se desejam. Hollywood, em suas produções românticas, consagrou-o como uma marca de final feliz. Para os casais apaixonados, ele é o prólogo de outras entregas. Daí o seu fascínio.

Nelson Rodrigues escreveu que é com o primeiro beijo que se perde a virgindade. Faz sentido. Quem beija tem a posse não apenas física, como também espiritual, do outro. Ele é uma permuta de haustos que se irradiam a outras esferas do corpo e tocam o espírito. Tanto é assim que as profissionais do sexo não beijam nem se permitem beijar. Quando gostam de alguém, então, esse possível gesto do cliente lhes soa como uma ofensa.  

Há beijos e beijos, claro. Os pudicos, que envolvem apenas o roçar dos lábios; os de língua, próprios dos apaixonados (esses dão água na boca); e os osculares, que parecem mais um tributo do que uma troca sensual.

 Segundo os especialistas, existem técnicas para se beijar bem. Os lábios não podem estar nem cerrados nem muito abertos. No primeiro caso, a crispação pode sugerir que a pessoa não está receptiva ao ato e levar o parceiro a desistir. Às vezes essa impressão é ilusória, como se vê no beijo que Capitu deu em Bentinho; o abrochar dos lábios dela atiça o desejo do ex-seminarista. Já o segundo caso dá a entender que o beijador não passa de um guloso sem estilo. É preciso certo refinamento para não tirar do beijo a estética, um dos seus atributos mais apreciados.    

Tudo que é bom tem seus detratores, e o beijo não escapa a essa regra cruel. Li que, durante ele, os parceiros destinam um ao outro parte da “microbiota” de suas línguas. Fui pesquisar essa palavra esquisita e descobri que ela designa a flora e a fauna de uma região. É isso, amigos, nossa língua é literalmente suja e parte dessa sujeira se transporta à saliva do parceiro quando um casal se beija. Para se ter uma ideia, num beijo apaixonado de 10 segundos ocorre a troca de 80 milhões de bactérias. Que dizer então daqueles que, pelo gosto dos apaixonados, deveriam durar uma eternidade?

         É claro que isso não irá demovê-los da prática de um ato que lhes confirma a paixão e abre a rota de outros profundos e fecundos prazeres. É bom que isso ocorra. Ver um casal de adolescentes se beijando num parque, numa praça ou mesmo “no escurinho do cinema” (como era bom!) nos ajuda a ter fé no amanhã. Nos faz pensar na continuidade da raça, hoje tão comprometida pelos genocidas e fanáticos que parecem querer destruí-la. 

O poder da frase