domingo, 30 de junho de 2013

O oitentão Gonzaga

       Comecei a ler Gonzaga Rodrigues ainda adolescente, quando frequentava o segundo caderno dos jornais em busca de notícias sobre teatro e cinema. Os suplementos de cultura eram então a minha praia. Não me interessavam as páginas de opinião, que eu achava sisudas e por vezes áridas. Faltava-lhes o ingrediente que é a essência da literatura – o estilo.
      Uma boa exceção eram os escritos do “Nêgo”. Lá estavam eles junto dos editoriais e de um ou outro artigo em que as ideias prevaleciam sobre a forma. Eram um oásis mas não um refúgio, pois neles era possível se encantar com a mestria verbal sem se alhear dos problemas da atualidade.     
      O papel do cronista é filtrar poeticamente os fatos. Antepor a subjetividade à discussão das ideias e ao relato frio do cotidiano, mas sem mascará-los num egocentrismo alienante. Pelo contrário: intensificando-os pelo testemunho e a emoção. Gonzaga fazia isso como poucos, e desde então passei a acompanhá-lo. Com o tempo, ele veio a figurar numa galeria para mim seleta, da qual faziam parte Rubem Braga, Carlinhos Oliveira, Nelson Rodrigues e alguns outros. Todos nascidos no jornal, mas capazes de elevar a escrita jornalística a um alto padrão estético e expressivo.  
      Hoje, que Gonzaga chega aos 80 anos, eu não podia deixar de me incluir entre os que o homenageiam com entusiasmo. Aprendi a admirar-lhe não apenas a habilidade  com as palavras, como também a amplitude da sua visão sobre os homens e as coisas. Pois a verdade é que não há um Gonzaga só. Há o lírico, que procura regatar as vivências infantis associadas ao interior onde nasceu; o social, preocupado com as desigualdades que tornam o Brasil um país cruelmente injusto; o provinciano (no melhor sentido da palavra), que sente como poucos o espírito desta cidade e continuamente nos alerta para a forma como o progresso está desfigurando-a; o solidário, capaz de um olhar abrangente e generoso sobre as pessoas do lugar onde vive.
       Certa vez ele me disse que uma coisa particularmente o frustrava: não fazer ficção. Parecia desencantado por não ter o fôlego de um Zé-Lins para criar personagens como Viturino Papa-Rabo, o coronel Zé-Paulino, o moleque Ricardo e tantos outros.  
          Fiquei me perguntando se não era severo demais consigo. Se não estaria se lamentando pelo que não fez, e deixando de considerar o que fez. Pensei nos inúmeros retratos que ao longo do tempo ele vem pintando em suas crônicas – perfis de amigos, políticos, autoridades, tipos curiosos da província, antigos senhores de Tambiá e da Rua das Trincheiras. Não seriam esses os personagens de um romance real, que as antenas do cronista captam para sublinhar o que têm de único, original, humano?
       Se há vários Gonzagas, o que os unifica é a capacidade de numa imagem, num comentário sutil, numa referência aparentemente banal, mostrar o que existe de grandioso nas pessoas simples. Essa é a matéria da grande literatura, que pode estar tanto nos romances quanto em textos curtos escritos ao sabor das circunstâncias.
        O que conta é a intimidade com as palavras, a agudeza do olhar e a sintonia humana, virtudes que não faltam a quem é justamente considerado nosso “cronista maior”.

domingo, 23 de junho de 2013

Juninos

       O balão se eleva no céu denso de fumaça. Por um momento se confunde com os outros fogos, mas logo segue vitorioso ao empuxo do vento. Seu brilho, contrastando com as sombras em volta, é uma imagem de triunfo e esperança.  
       Para onde ele vai? Ninguém se interessa em saber. A impressão que dá é a de que nunca vai cair; continuará subindo até deixar a Terra e, quem sabe?, adentrar o espaço celeste como uma oferenda de luz.    
     Finalmente chega ao seu limite e começa a descer. Já não é aquele coágulo luminoso; bambeia com a brisa e parece prestes a se consumir.  Com o que lhe resta de fôlego, paira sobre campos, charcos, estradas. Sobrevoa uma refinaria em que há pelo menos três depósitos de combustível. Passa rasante, mas não cai por lá. Vai cair alguns metros depois, numa plantação que começa a pegar fogo.
       Quem o soltou não terá notícias desse incêndio banal, que deu prejuízos a um pobre agricultor mas não matou ninguém. Seria muito diferente se o balão tivesse atingido um dos depósitos. O fato de isso não ter acontecido pode ser uma prova de que São João existe, e vela por nós.
                                                            *****
        A turma inventou de criar uma quadrilha no bairro. Uma quadrilha junina, é claro, composta de bons moços e não de malfeitores. Convidaram-me, mas delicadamente recusei. Além de ser tímido, eu era claustrofóbico. Ficava imaginando como ia me sentir quando tivesse de entrar no “túnel”.
      O grupo começou a se reunir duas vezes por semana. Levou tempo até que conseguisse adestrar o corpo nos passos e movimentos da dança. Era preciso também aprender a rir, pois não se concebe um quadrilheiro circunspecto. Isso podia ser tolerável entre os nobres franceses que praticavam a velha “dança de pares”, mas não entre a plebe que a adotou.
       Para tudo sair perfeito, a turma queria a maior fidelidade possível às origens. Chegou a contratar um professor de francês, pois era interessante que o “puxador” (devia ser esse o nome) tivesse sotaque.  “Anarriê”, em vez de “En arrière”?  Jamais! (leia-se “Jamé!”)
      Chegou enfim o grande dia. Os rapazes vestiam calças rústicas e camisas coloridas; as meninas, longas saias que terminavam em bicos ou rendas. Ao lado do pavilhão, crianças brincavam soltando fogos.  
       De repente uma “cobrinha” (um desses artefatos que se propagam rastejando)  invade o palco e se mete embaixo da saia de uma das garotas. Ela pula, corre de um lado para o outro, mas não consegue se livrar do pequeno réptil de fogo que lhe lambe as pernas. Então, numa última e desesperada tentativa, joga fora a saia com forros e tudo.
        A “cobrinha” ficou entalada nas vestes. Quanto à garota, multiplicava as mãos para tentar se cobrir. A rapaziada assistia eufórica à cena, alguns interiormente gritando: “Viva São João!”

O santo e a odalisca

        Impossível era saber o que se passava na cabeça de Salomé. Dizem que naquela noite ela dançou melhor do que nunca, retardando os gestos voluptuosos e coleando como a serpente do paraíso, a fim de comover o rei. Este, numa das vezes em que ela se curvou para beijá-lo – um aperitivo para o que viria depois –, reteve-a pelas espáduas e teria sussurrado: “Teu corpo é um monumento à luxúria. Um monumento que se move...”. Tais palavras penetraram as entranhas da dançarina como um vinho inebriante e tentador. Consciente da própria beleza, ciente do seu poder, Salomé bailou tresloucada pelos jardins do palácio. Queria impressionar o rei e pedir-lhe uma coisa. “O quê, Salomé?”
         - Depois... Mais tarde.
         E sorria enigmática, saracoteando os quadris em espasmos de fogo. Às vezes invertia os movimentos, empinando o ventre em ritmadas simulações do ato sexual. O rei, pela quarta ou quinta taça, enlouquecia sob o real  manto e até deixara cair a coroa, que jazia emborcada sobre uma alcatifa. Era um rei provisoriamente destronado, um rei descomposto pelo desejo e que não via a hora de evacuar a salamandar todos embora, inclusive a rainha, sua mulher – e fazer daquele recinto, alcova.
        Salomé no entanto estava triste. Dizem as testemunhas daquela noite especial que, apesar do furor com que dançava, percebia-se em seus olhos uma tristeza profunda. Outros, observando-a com mais atenção, notaram que à melancolia do olhar mesclava-se um brilho aterrorizante e maligno. Todo aquele frisson corporal era uma tortura, uma espécie de exorcismo. Salomé em verdade não dançava para encantar o rei, pois este ela tinha conquistado. Com o manto revolto e a coroa caída, o monarca era uma imagem de rendição. Dançava era para esquecer que, assim tão bela e desejável, fora no entanto recusada por João Batista. Quem era João, aquele rústico e insano que comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia palavras sem nexo, falando de um reino onde pouco valiam os atributos do corpoquem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos, os nobres, os reis? Quem era ele para desprezá-la?
         Quanto mais pensava nisto, mais e melhor Salomé dançava. Nunca se vira tanto vigor em seus gestos, tanta compassada violência em seus requebros de serpente irada. Poucos percebiam que a música era o seu açoite, o chicote em que se debatia o seu amor-próprio. Apenas algumas mulheres entenderam aquela coreografia do narcisismo ferido. Apenas as mais belas, intimamente satisfeitas de ver a outra sofrer.   
        Em dado momento Salomé parou, como que saturada do próprio delírio. Foi até o reique emborcava mais uma taça de vinho – e sussurrou-lhe com a língua untuosa alguma coisa no ouvido. Sua Majestade jogou fora o copo e se levantou de um jato, repentinamente sóbrio: “A cabeça?! Mas como, a cabeça?!”
         - Aqui e , numa bandeja. Como uma prova de que Vossa Majestade me ama e me quer. 
       O rei chamou a guarda e ordenou que imediatamente se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem lhe dar tempo de dizer palavrapois falando ele era perigoso e sedutor, se bem que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça e a levassem até ali.   
        Fez-se rápido a vontade real. Alguns minutos depois, como se fosse parte de um menu imprevisto e grotesco, a cabeça de João era servida à atônita curiosidade dos presentes. “O que foi que ele fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” – respondiam, apontando para Salomé.
        Dizem que a dançarina ainda não ficara satisfeita. Quis coroar sua vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então pediu que colocassem a cabeça de João Batista numa mesa e começou, com gestos lentos e excitantes, a dançar diante dela. Durante meses, anos, ele a repelira, fugira aos seus encantos. Ela queria ver agora... E contorcia-se diante do seu escalpo, daquele troféu ao seu orgulho ferido, com uma triunfante volúpia. Mas aos poucos foi parando, parando, no rosto uma expressão de contrariedade que se ia transformando em medo, e logo em horror.
         Aos gritos, chamou os guardas. E mandou levar a bandeja, a cabeça de cabelos revoltos e sujos de sangue. Não suportara a castidade que insistia em brilhar, como dois lagos azuis de inocência, nos olhos vidrados do morto.

(Em "A rosa fenecida", p. 45)
Leia o livro completo em http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida

domingo, 16 de junho de 2013

Sobre a retórica do humor

          O humor se distingue da comicidade por estar na linguagem. Como tal, possui uma retórica, que orienta sobre alguns dos procedimentos capazes de levar ao riso. Entre eles se destacam a paródia (“Os opostos se atracam”) e a enumeração caótica (“Fiz duas operações: uma no fígado, outra no Banco do Brasil”).
          Na comicidade, rimos da situação ou da figura física; um palhaço, com seu narigão e suas calças largas, é basicamente um cômico. No humor, rimos do efeito surpreendente produzido pelas palavras. O inesperado, que pode ou não tender ao absurdo, faz rir.
         Uma das mais refinadas formas de humor é a ironia. Por meio dela, afirma-se uma coisa dizendo o oposto. É talvez a única figura que depende de um confronto com a realidade para produzir efeito. Se digo de um homem que ele é “um Brad Pitt”, isto por si não tem graça. Pode até ser um elogio, se o sujeito for de fato bonito (nesse caso, terei usado uma imagem metafórica).
         A ironia está em a designação se aplicar a alguém baixinho e feioso. É a distância entre o comparado e o comparante (Brad Pitt) que faz ir. A ironia é uma metáfora sem nexo, ou melhor, uma metáfora em que o chamado “nexo dos atributos” é na verdade uma antítese. Ou um paradoxo.
        Trata-se de um recurso muito temido pelo seu poder de depreciação. Sua força vem de nunca verdadeiramente a gente saber se o autor está dizendo a verdade. Tem gente que é objeto de uma ironia e passa horas em casa ruminando, buscando entender se o que ouviu era sincero ou não. Esse é o gozo do ironista, que no fundo se delicia com as dúvidas do ironizado.
         Outro curioso recurso de humor é o que se pode chamar de “reconversão ao literal”.  Esse processo parece ir de encontro ao princípio que norteia os desvios estilísticos, qual seja, o de que o efeito expressivo resulta de uma ruptura com os sentidos cristalizados, convencionais. Na regressão ao literal, o efeito vem justamente do percurso oposto.
        Pare entendê-la, consideremos que há dois momentos: o primeiro, em que se constrói a imagem. O segundo, em que ela perde o valor de imagem (já transformada em clichê) e volta a significar “de acordo com a letra”.  A surpresa que isso provoca faz rir.
         Os exemplos são muitos. Um dos mais conhecidos é o da velha piada: “Pedro caiu na fossa”. “Morreu?” “Não. Escapou fedendo”. Nessa passagem, “escapar fedendo”, que virou lugar-comum, sofre uma súbita atualização. O fato de haver mesmo o mau cheiro desautomatiza a percepção linguística de maneira análoga à que ocorreu no primeiro momento, quando se construiu a imagem.
        Efeito semelhante ocorre em “ficar de nariz empinado” ou “empurrar com a barriga”, expressões cujo significado automatizamos. É possível chamar a atenção para elas dizendo frases do tipo: “Depois que fez plástica, vive de nariz empinado” ou “Arranjou uma gravidez indesejada. Agora vai ter que empurrar com a barriga”. A ambiguidade faz com que o clichê deixe de ser apenas “força de expressão”.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Seleção de frases (26)




Escritor de verdade vive mais no prélio do que no prelo.
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Qual a nau que mais provoca enjoo? A náu...sea.
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Dizem que a profissão de “catadora de piolhos” vem dando um bom dinheiro. Um dos motivos para isso é que se cobra por cabeça.
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Aos asmáticos, o ar não dá a sua graça.
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O destino é uma parte fado e uma parte enfado. Quem cansa também se deixa levar.
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Ter um animal em casa aumenta a autoestima. Do bicho.
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Para manter meu casamento, evito ir à cozinha. Minha única habilidade culinária é torrar a paciência da minha mulher.
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Desprezava a cultura do Oriente, como se estivesse acima do Zen e do Tao.
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Há pessoas cuja presença a gente estima, e cuja ausência agradece.
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O sujeito faz análise vinte anos para tentar se conhecer. Só que depois desse tempo todo, ele já não é mais quem era. 


      

domingo, 2 de junho de 2013

O nome do exagero


         A Comissão da Verdade, que apura crimes cometidos durante a ditadura militar, vem colocando frente a frente algozes e vítimas. São debates ásperos, como não poderiam deixar de ser, marcados por uma emoção que tristemente nos leva de volta àqueles tempos. Mesmo quem não foi militante, e nem de longe sofreu o que a maioria das vítimas relata, sente um frio de horror ao conhecer detalhes das prisões e torturas.
       As revelações vêm provocando uma justa indignação popular e têm estimulado a criação de comissões semelhantes em vários pontos do país. O que inicialmente ocorria em âmbito federal tende agora a se multiplicar em estados e municípios. A nação ganha com isso, pois fazer a crítica dos “anos de chumbo” desperta a consciência do povo e fortalece a democracia. Mas para que esse ajuste de contas seja feito de uma maneira eficaz, é preciso evitar exageros.
         Um deles é o de sair por aí mudando os nomes de ruas, praças e outros recantos públicos que homenageiam personalidades ligadas ao regime militar. É compreensível a rejeição às pessoas, mesmo que nem todas mereçam a execração pública (Ernesto Geisel, por exemplo, teve um papel importante na transição para a democracia).           Já com os nomes, a história é diferente. No decorrer do tempo, eles adquirem uma espécie de vida própria. Deixam de evocar as figuras que pretendiam homenagear e ganham uma nova semântica. O novo sentido de que se revestem depende sobretudo dos objetos lugares, eventos que passam a designar. São estes, a partir de certo ponto, que passam a dimensionar os homenageados.  
          Vejamos dois exemplos retirados desta nossa Cidade das Acácias. Quem pensa no marechal baixinho, amigo de Rachel de Queiroz, quando ouve de alguém que mora em “Castelo Branco”? Ou na mãe do general que um dia ameaçou “recrudescer”, quando diz que vai ao “Valentina” (um termo tão desvencilhado de quem pretendia homenagear, que passou ao masculino)? Praticamente ninguém. Talvez a lembrança dessas pessoas seja despertada agora, com os debates que irão acontecer e vão obrigar a que se avaliem as suas vidas no que têm de bom e de mau.
        Não concordo com a mudança dos nomes. Eles devem se manter porque constituem o registro de um momento histórico. Dizem muito sobre as circunstâncias em que foram escolhidos e, por si, não absolvem nem glorificam ninguém. Retirá-los não é a melhor forma de fazer justiça; isso cabe à lei e ao julgamento do povo, que escolhe seus heróis a despeito de placas, comendas e outros adereços formais.
         Considerando-se que valha mesmo a pena a mudança, que outros nomes botar no lugar?  A decisão sobre isso provocaria um debate infindável e certamente não satisfaria a todos. Bem mais produtivo do que trocar a designação desses logradouros é ver como anda a vida das pessoas que neles moram. Elas têm água, transitam em ruas calçadas, dispõem de saneamento básico? Questões como essas interessam muito mais ao povo.


       

Dizer pelo excesso