terça-feira, 25 de abril de 2023

O melhor amigo


  Por que o livro é o melhor amigo do homem? Motivos não faltam: 

 - Ele nos acompanha para onde a gente vá. 

- Independentemente do dia, do lugar ou do clima, está sempre disposto a se abrir para nós.

- Desde que a gente o observe com atenção, não nos deixa sair da linha.

- É capaz de contar histórias sérias ou divertidas, mas também nos orienta e instrui. 

- Faz-nos “viajar” de forma segura, imune às intempéries, pelos mais diversos lugares do mundo.

- Apresenta-nos a personagens intrigantes e profundos, que nos ajudam a compreender melhor a alma humana. Com tais personagens a gente se identifica e estabelece uma comunhão impossível de estabelecer com as pessoas de carne e osso. 

- Não protesta quando o esquecemos por um tempo, deixando-o às traças, pois sabe que em algum momento a ele vamos retornar.    

- Não se irrita quando a gente o suja, amassa ou rabisca. Pelo contrário, sabe que esses maus-tratos significam que estamos vivamente interessados no que ele nos diz.  

- Não se chateia se a gente, por cansaço ou preguiça, resolve virar a página, ou mesmo substituí-lo por outro. Ciúme não é com ele.

 - Não se constrange quando o apertamos, sopesamos, manuseamos, pois sente esses contatos como uma intimidade destituída de interesses escusos ou de má-fe.

- Não fica magoado quando o passamos a outra pessoa, pois a sua fidelidade é extensiva a todo o gênero humano.

- Está sempre de bom humor, sorrindo para nós de orelha a orelha.  

 


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Mais anos, menos ilusões

Hoje completo 72 anos (mas não quero que saiam espalhando isso por aí). Tecnicamente sou um idoso, eufemismo que inventaram para “velho”. Tudo bem, “velho” pode ser mesmo pior, a não ser que o indivíduo pretenda no Natal se vestir de Papai Noel. Se for esse o caso ele terá uma justificativa para ostentar, como um bom velhinho, a cabeleira branca e aquela bonomia própria dos que querem estar em paz com o mundo. Ninguém vai reparar. 

A vida é uma ordem, como diz Drummond, e cumpre-nos aceitá-la com resignação e o propósito de fazer o bem. Tento isso o tempo todo, mas os outros não ajudam. A bondade é uma conquista difícil porque nem sempre encontra eco, nem reciprocidade, no ânimo das outras pessoas.

O bom de chegar à idade que hoje completo é ter perdido as ilusões. Iludir-se falseia a ideia de felicidade e nos coloca cada vez mais longe dela. Não tenho as certezas metafísicas que a muitos consolam. Tampouco me seduzem as vaidades mundanas. Quanto a esse ponto, devo dizer que há algum tempo resolvi aceitar a sugestão de amigos e entrar para a academia. Não a de Letras, mas uma academia de ginástica. Se não me torna “imortal” (eu não morro pela “imortalidade”), ela certamente vai me propiciar mais alguns anos de vida.  

Acho, a propósito, que a não aceitação da morte é uma das maiores fraquezas humanas. Ela faz com que muitos nos iludam com a promessa de vida eterna (uma contradição em termos) e acaba separando as pessoas. Infelizmente, por interesses que a História é farta em mostrar, não fomos educados para a aceitação do nosso efêmero destino. Procuro aceitar o meu e espero que o desfecho esteja longe. Só não quero que se alongue demais a ponto de, para os que me circundam, eu passar de esteio a estorvo.  

Enfim, cada um se consola como pode, e disso faz parte escolher o suporte da sua crença – que, por ser crença, não é necessariamente a verdade. O importante é que se respeite a crença dos outros.

O melhor num momento como este é poder exaltar a família (o bem maior) sem que outros vejam nisso hipocrisia ou estratégia para arrebanhar votos; agradecer aos amigos a companhia, mesmo virtual, e o estímulo para continuar escrevendo; dirigir-se aos alunos com a humildade de quem reconhece neles os verdadeiros mestres, pois a gente ensina para aprender.

         Geralmente se pede a quem tem “experiência” um conselho para viver melhor. Eis o meu: é preciso não perder a capacidade de rir. Não que a vida seja uma piada – se for, será de mau gosto. É que o humor demonstra uma compreensão profunda da nossa condição e nos ajuda aceitá-la. Quem sabe rir não se queixa, não maldiz a si nem aos outros, não se insurge contra alguma potestade que porventura nos tenha criado. Estamos aqui por conta própria, e cabe-nos enfrentar isso da melhor maneira possível.


domingo, 9 de abril de 2023

Imagens sem nexo


 A função da poesia é revelar os objetos sob um novo olhar – isso a gente aprende logo nas primeiras aulas de Teoria da Literatura. O signo poético, por sua opacidade, não estabelece um vínculo direto entre o significante e o significado. Constitui uma palavra-coisa, não uma palavra-sinal – para usar a terminologia de Sartre em “O que é a literatura?”.

A essa opacidade, ou ambiguidade, do signo poético deve-se o seu poder de ir além das representações convencionais. Dela nasce a polissemia, que faz com que o signo se enriqueça em função dos novos nexos que estabelece com a realidade.

Aí mora o perigo, pois muitos confundem essa liberdade polissêmica com a possibilidade de dar às palavras quaisquer sentidos. No afã de enriquecê-las semanticamente não atentam, por exemplo, para a pertinência e o bom senso de certas escolhas no domínio das figuras. Isso por vezes os leva a uma obscuridade que em nada se confunde com a “opacidade” no sentido em que a definem os formalistas russos – o de estranhamento, novidade, fuga ao lugar-comum.

Ferreira Gullar destaca essa característica na poesia de Augusto dos Anjos em um dos melhores estudos já escritos sobre a estética do paraibano. Evocando o formalista russo Viktor Chklóvski, mostra como a estranheza é um dos fatores que nos fascinam na sua poesia.

A estranheza conduz a uma “dificuldade” perceptiva que, em vez obstacular a compreensão, nos convoca à descoberta de novos enlaces de sentido. Pode-se até discordar da visão de mundo do paraibano, mas é impossível não se sensibilizar com o acerto das suas escolhas verbais.        

Se a maior virtude do texto é a clareza, como diz Montaigne, dela se afasta quem se entrega a associações cerebrinas e esdrúxulas entre os signos, como se com isso atingisse aquele “algo mais” que confere eternidade ao estilo.

Há uma enorme diferença entre a transfiguração e a desfiguração do real. No primeiro caso, o real nos aparece sob um novo olhar graças à forma inusitada com que nos é apresentado. É quando as imagens mantêm com ele um tipo de vínculo que, de alguma forma, o torna reconhecível ao mesmo tempo que o amplia e enriquece.

No segundo caso (o da desfiguração), a ousadia das imagens compromete aquele mínimo referencial analógico que confere verossimilhança à representação. As imagens parecem nascer de si mesmas, arbitrárias e autônomas, num jogo maneirista em que o leitor se perde por não ver nelas nexo. É uma espécie de surrealismo manco, desconectado das fontes significativas do inconsciente.

        Há um limite para “ousar” quanto ao metaforismo das representações; às vezes, com a falsa impressão de conferir expressividade ao texto, o autor incide num preciosismo que mais irrita do que impressiona quem o lê. Nesse caso, o que se pretendia poético beira o caricatural. As imagens não chegam propriamente ao estatuto de imagens; limitam-se a um conjunto de objetos destituídos daquela alquimia que conecta a Alma à Natureza – traço por excelência do texto poético.

sábado, 8 de abril de 2023

Antenas trocadas


             Não sei por que o pessoal que escreve teme a concorrência com a Inteligência Artificial. O que ela faz não é novo. Existem há muito tempo no mercado livros escritos por robôs – robôs humanos, que produzem segundo fórmulas testadas para atrair os leitores. 

De qualquer modo, para não fugir à regra, resolvi aderir à moda e providenciar um robô para uso próprio. Uma espécie de avatar cibernético que me ajudasse, quando fosse o caso (e têm sido muitos), a destravar a criatividade. Então pedi a uma dessas empresas de IA que bolasse um algoritmo adaptado às minhas necessidades (inclusive fisiológicas) e mandasse um programa capaz de me facilitar a vida. 

       Recebi-o na semana passada e desde então venho me adaptando ao seu uso. Dei-lhe nome de ChatoPQP – por analogia com o produto criado pela OpenAI. Por sinal esse produto – o ChatGPT – vem assustando uma série de intelectuais, engenheiros e empresários que temem a dimensão que ele possa adquirir no sentido de superar a inteligência humana.

O temor de que isso ocorra até os levou a redigir um documento, assinado entre outros por Elon Musk, propondo a suspensão das pesquisas em IA. Se o genioso e implacável empresário chegou a fazer isso, o assunto é mesmo sério.

Para ser honesto, devo dizer que não me impressionei muito com a criação da OpenAI. O motivo é que, para testá-la, perguntei-lhe quantos brasileiros haviam recebido o Prêmio Nobel; do ChaGPT obtive a resposta de que foram nove. Consultando depois o velho e confiável Google, soube que nenhum brasileiro ganhou o Nobel até agora. Houve quem estivesse entre os indicados, porém oficialmente ninguém abiscoitou a cobiçada láurea internacional.

Mas voltemos ao meu robô particular. A primeira experiência com ele não foi boa; sem que eu pedisse, me acordou às quatro da manhã cantando “Frère Jacques”. 

E não apenas isso. Semelhantemente ao seu colega da OpenAI, ele nem sempre responde com exatidão às minhas perguntas. Perguntei-lhe, por exemplo, qual o sentido da vida. Ele ficou, digamos, na metalinguagem. Respondeu-me que “sentido” é significado, conceito, e que “vida” é o estado em que se encontram os seres vivos enquanto não morrem. Isso não me esclareceu muita coisa.

Outra vez eu lhe disse que pensava em escrever um conto sobre uma malograda experiência amorosa da juventude, mas me faltava inspiração. Ele me aconselhou a procurar um lugar arejado e dilatar bem as narinas. Segui o conselho, supondo que a inspiração poderia vir de algum espírito do ar, e acabei contraindo uma virose. Mas terminei me conformando; talvez isso fosse uma indicação de que o conto não ia mesmo prestar. 

Estou ainda testando o ChatPQP, mas a julgar pelo que tenho vivido com ele vou acabar desistindo de tê-lo como guia. Não há como aceitar um robô que nos deixa desantenados da realidade.

Oração pelos peixes

 

Sempre me intrigou que na Semana Santa não se pudesse comer carne mas se pudesse comer peixe. A carne dos peixes se exclui dessa restrição, embora nossos irmãos do mar sejam tão animais quanto a vaca ou o carneiro. É uma carne mais saudável do que as outras quanto à qualidade da gordura, mas certamente não foi por isso que a Igreja liberou seu consumo em ocasiões como agora. Naquele tempo ninguém tinha ideia do que era colesterol.

Como faz bem tanto ao corpo quanto ao espírito, o peixe é comido sem remorso ao longo de todo o ano. Dos animais não nocivos ao homem, ele é certamente aquele para o qual menos se dirige a nossa piedade. Vejo e ouço protestos contra a morte violenta de bois, carneiros, raposas, ursos, mas raramente escuto uma voz contra a matança dos peixes.

E olhem que a morte deles é uma das mais dolorosas. Ao contrário dos bois ou dos carneiros, que morrem de uma cutelada fulminante e indolor, os peixes se finam aos poucos, em tremores de agonia devido à falta de oxigênio. Matamo-los por necessidade e por lazerpara satisfazer nossas necessidades proteicas e para aliviar as tensões em longas e solitárias pescarias.

Sabe-se que a ligação do cristianismo com esse animal tem razões históricas e também linguísticas. No tempo em que eram perseguidos, os cristãos usavam para se identificar a frase grega “Iesus Christus Theou Yicus Soter”, que em português significa “Jesus Cristo, de Deus o Filho Salvador”. Algumas letras dessa palavra formam a palavra “ichthyus”, que em grego significa “peixe”. Daí o vínculo com a figura do Redentor.

O peixe servia mesmo como elemento de identificação entre os que se incluíam na cristandade. Quando dois cristãos se encontravam, um deles desenhava um arco no chão; se o outro fizesse o mesmo formava-se a imagem do animal marinho, e ambos se reconheciam como “irmãos na fé”. O resultado é que ele se tornou o mais importante alimento consumido na Sexta-Feira Santa, dia em que se recorda a morte de Jesus.

         Por ser a única comida animal permitida nesta época, o peixe ocupa um lugar de destaque no bestiário cristão. Seu sacrifício é um pouco como o de Cristo, que morreu para nos servir de alimento espiritual. Curiosamente, nem sempre foi assim. 

No “Sermão de Santo Antônio ou aos Peixes”, Vieira afirma querer aliviar os peixes “de um desconsolo muito antigo”: o de não estarem, segundo a Lei Eclesiástica, entre os animais que Deus escolheu para serem a ele sacrificados. O motivo dessa exclusão, segundo o jesuíta, é que os peixes podiam ir ao sacrifício mortos, “...e coisa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares”.

É claro que há nessa passagem, como em todo o sermão, um sentido alegórico (a alegoria, “representação de uma coisa por outra”, normalmente comporta um valor moral). Vieira finge se referir aos peixes mas na verdade se refere aos homens, pois a “coisa morta” significa o ser humano como pecador.

Quanto à recusa em levá-los ao altar por irem ao sacrifício mortos, há nisso uma ironia histórica: em respeito às leis da Igreja, hoje eles se sacrificam. Ou não será sacrifício servir de repasto único, nestes dias, para matar a fome de toda a cristandade?

O que não deixa de ser curioso é que a imagem do peixe sem vida, em vez de suscitar piedade, sirva para simbolizar o indivíduo sem . É uma “injustiça” com o animal que, de início, aparecia como um signo da autêntica vivência cristã.  

Deixo aos doutos a tarefa de elucidar essa aparente contradição. Por enquanto, limito-me a pedir mais respeito com os peixes. Certamente ficamos indiferentes ao seu sofrimento porque, ao contrário dos outros bichos, eles ao serem mortos não gemem, não berram nem clamam com o olhar. Mas isso não significa que sofram menos.

Enfim, que o momento é de piedade cristã, façamos por eles uma prece silenciosa. Nem que seja para agradecer a boa digestão.


sábado, 1 de abril de 2023

Mentira e linguagem

 


Sempre achei que o homem é sincero quando mente. Mentir faz parte da nossa natureza. Sem a mentira não poderíamos poderia viver com os outros, e muito menos com nós mesmos.   

Há pelo menos um livro que dá razão, ou pelo menos prestígio filosófico, às minhas suspeitas. Trata-se de “Os Fundamentos Biológicos e Psicológicos da Mentira”, escrito pelo professor de Filosofia David Livingstone Smith. Segundo o autor, “mentir é tão natural quanto respirar”. Precisamos ser mentirosos até mesmo para assegurar nossa saúde psíquica, poisquem fala a verdade corre o risco de ser doente mental”.

Não se pretende aqui fazer uma defesa da falsidade e da hipocrisia. Não temos o direito de trair ou enganar os outros. A mentira a que me refiro é algo constitutivo do ser humano. Decorre de ele viver entre ritos, convenções, e ter a percepção de si e do mundo intermediada pela linguagem.

Como a linguagem nos afasta da essência das coisas, pois se engendra a partir de uma relação arbitrária entre significado e significante, ela nos lança numa teia de sentidos na qual é impossível discernir o ilusório do real. Por meio da linguagem, o homem inventa a si mesmo.

A partir do momento em que nasce a consciência linguística, nasce a mentira. Ela é, por assim, a grande criação do discurso. Os sofistas foram os primeiros a descobrir isso. Eles viram que por meio da retórica podiam influir na visão dos fatos, modificar a seu bel-prazer o valor das coisas.

Isso não significa que não existam verdades essenciais. O amor, por exemplo, é uma delas. Não vivemos sem amor, mas não conseguimos preservar esse belo sentimento dos artifícios da retórica (ou seja, da mentira).

A retórica se infiltrou em tudo que em sentido amplo, graças à energia criadora do amor, tende a promover a aproximação do homem com os seus semelhantes – de um bilhete de namorados ao discurso dos políticos, passando pelos manuais de autoajuda.

O que há nesses textos, senão promessas que jamais se cumprem?


O poder da frase