domingo, 13 de maio de 2012

Soneto desnaturado e Rimas

Soneto desnaturado

Ser mãe é cuidar bem do próprio corpo
(de preferência, numa academia);
é desmamar o pirralho bem cedo
para livrar o seio das estrias.


É dormir como um justo, ressonando,
depois de uma passagem na “balada”,
e acordar sem remorsos, no outro dia,
mesmo deixando o filho com a empregada.


É não abdicar dos seus projetos,
fugir de ser babá dos próprios netos
(caso venham chamá-la para isso).


É desprezar o chato que a condena,
dizendo que a pior de suas penas
seria “padecer no Paraíso”.

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O amor encontra nas mães / a sua expressão mais pura/ é amor sem cálculo, risco / sem limite, sem usura / certo como a natureza / profundo como a loucura. / Amor que ultrapassa o tempo / pois não depende de prova/ que na força dos eventos / hoje e sempre se renova./ Amor incondicional / antigo e sempre moderno / que parece ser gerado / no ventre mesmo do Eterno.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Anatomia de um desafeto

      Tem gente que mata os outros na unha, fala pelos cotovelos, quer ter razão no peito, empurra com a barriga os problemas, passa uma “mão de tinta” para disfarçar os defeitos, faz pé de meia explorando o semelhante, vive contemplando o próprio umbigo, tem um humor que faz mal ao nosso fígado e nunca age com o coração.
     É preciso ficar de olho.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Traição

Eusébio tinha obsessão pela língua portuguesa. Desde moço lia Eça, Rui, Camilo, que para ele eram os expoentes do idioma. A leitura dos clássicos incutira-lhe a ideia de que o uso do vernáculo devia ser apurado e solene. Nada de plebeísmos, nada da vulgaridade com que os incultos o maltratam no dia a dia.
Para Eusébio uma silabada, uma concordância malfeita, um pronome mal colocado eram crimes de lesa-pátria. Certa vez recusou-se a assinar um documento porque o contínuo lhe pedira que colocasse ali a sua “rúbrica”. “Rúbrica?! É rubrica, seu parvo! Rubrica!” – esbravejou diante do rapaz atônito, jogando a caneta sobre o birô.
Eusébio era casado com Asclepíades. Ele a escolhera mais pelo nome do que por qualquer outro predicado. “Asclepíades” lhe parecia, ao mesmo tempo, tortuoso e sonoro. O hiato entre o “i” e o “a” soava-lhe delicado e tenso. Muitas vezes, sozinho à noite no escritório, recitava o nome para lhe sentir a timpânica sonoridade. Enquanto isso Asclepíades, a de carne e osso, perguntava-se na cama por que o marido não largava aqueles livros e vinha dormir. Sentia-se abandonada e carente.
De fato, em matéria de conjunção só interessavam mesmo a Eusébio as gramaticais. Para se distrair do abandono, Asclepíades começou a visitar uma tia e o filho desta, Leocádio. Logo a moça se entrosou com o rapaz, que era bonito e, como se não bastasse, um analfabeto em português. A paixão foi nascendo devagarinho. Num bilhete que lhe mandou, Leocádio escreveu “saudade” com cedilha. Asclepíades beijou o papel, deslumbrada. Estava farta de correções em nome da pureza do idioma. Queria um devasso na gramática e – por que não? – também em outros domínios.
Passaram a se encontrar ora na casa dele, quando a tia não estava; ora na casa dela, nas tardes em que Eusébio ia para a biblioteca. Asclepíades não tinha remorso de levar o primo para o leito conjugal. Usara-o muito pouco com o marido.
Numa tarde Eusébio voltou mais cedo para buscar um livro que se esquecera de devolver à biblioteca e surpreendeu os dois no quarto. A mulher não pareceu se abalar muito, mas Leocádio ficou em pânico. Desarvorado, implorou: “Me perdoe, mestre!”.
- Como?!
- Me perdoe!!
O mestre parecia não acreditar no que tinha ouvido. Explodiu:
- Jamais! Iniciar frase com pronome oblíquo é imperdoável. É uma traição ao idioma!
Em seguida pegou o livro, que estava em cima da mesa de cabeceira, e rubro de indignação deixou o quarto.

(Em "A idade do bobo", p. 19)
Leia o livro em:


Dizer pelo excesso