sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Machado e traições

A pergunta agora não é se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. É se Luiz Fernando Carvalho traiu ou não traiu Machado de Assis. Se tivesse assistido à série da TV Globo, o Bruxo só não esbravejaria no túmulo porque tinha horror à controvérsia. Mas certamente franziria o cenho de surpresa e contrariedade.
Como fez uma leitura livre do romance, o diretor tinha o direito de aproveitar a história como lhe conviesse. O problema é saber até que ponto sua opção manteve-se em sintonia com o espírito da obra.
“Dom Casmurro” é um romance realista, com tintas de naturalismo. O narrador faz um retrospecto da vida centrando as lembranças na paixão pela adolescente Capitu, com quem veio a se casar.
O relato é basicamente a história de uma traição, pois um dos propósitos do narrador é mostrar que a Capitu adulta estava na Capitu menina. Os olhos de ressaca engolfaram o Bentinho adolescente tanto quanto, anos depois, a ressaca marinha engolfaria mortalmente o amante Escobar. Capitu é natureza, desejo, é o feminino ardiloso que escapa à compreensão do seminarista tímido e cheio de medos.
No romance, esses ingredientes aparecem de maneira sóbria. Bentinho narra suas angústias, mas não se desespera. Julga a esposa e o amigo, que “se juntaram para traí-lo”, com uma amargura temperada de ironia. Uma ironia sem trejeitos nem esgares, própria de quem não perdoou ser traído mas – de certa forma – já se resignou aos fatos.
Luiz Fernando Carvalho deu um tratamento farsesco ao romance. Acrescentou a isso a pantomima circense. Os atores, em sua maioria, posam, rebolam e empostam a voz. Bentinho se transformou num narrador redundante e tenso, que mais atrapalha do que ajuda a compreensão da história. Refere os eventos como se eles não tivessem ocorrido, mas ainda fossem ocorrer, numa ansiedade injustificável em já viveu tudo aquilo. Nada menos machadiano.
O diretor optou por uma estética expressionista que tem muito pouco a ver com o clássico e “transparente” Machado de Assis. O que admiramos no autor de “Dom Casmurro” é a sutileza, a ironia, o meio-tom. Na série televisiva varreu-se tudo isso em prol do excesso formal, da pseudo-imponência, do kitsch entre cinema e teatro que acabou dando à encenação um tom de caricatura.
Mas há um consolo em tudo isso. Um dos pontos positivos da série foi concorrer para desvendar o enigma de Capitu. Quem, “vendo” um Ezequiel que é a cara de Escobar, terá mais dúvida sobre a traição? No romance, a semelhança pode ser atribuída a fantasia do narrador. Na tela, ou deliramos todos, ou a mulher enganou mesmo Bentinho.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Dicas de estilo (sem estilo)

1 - Interjeições excessivas? Evite-as!!!!

2 - Não abuse de metáforas futebolísticas. Esse tipo de tabelinha com a linguagem do futebol nem sempre satisfaz a galera. O leitor pode se sentir driblado e dar cartão vermelho para o escritor, mandando-o antes do tempo para o chuveiro.

3 - Falhas na concordância denuncia falta de conhecimento gramatical. Evite-a.

4 - Não misture as pessoas gramaticais. Tu podes pode fazer isso quando usares a linguagem coloquial, mas nunca em sua redação para vestibular ou concurso. Nela escrevemos com alguma formalidade e você tem que seguir a norma culta.

5 - Das inversões fuja. Comprometem elas das ideias a clareza.

6 - Evite repetições, pois elas dão a impressão de que o texto não progride. Repetir gera no leitor a sensação de que as idéias ficam no mesmo lugar, não evoluem. Quem repete permanece no mesmo círculo de idéias e faz o texto circular em torno de um mesmo tema, sem sair do canto.

7 – Tenha cuidado ao usar as reticências, pois elas... lacunas no pensamento e... sem saber direito o que o autor quer dizer.

8 - As longas intercalações entre sujeito e predicado, por fazer o leitor esquecer o que o que foi dito no início, levando-o a suspender a leitura e ter de reler toda a frase, o que termina prejudicando a compreensão do texto como um todo, devem ser evitadas.

9 - Evite exageros. A hipérbole é o pior entre os piores pecados que podem acometer um escritor em todos os tempos.

10 - Há que escoimar o texto de vocábulos preciosos ou pernósticos. O uso de tais palavras é próprio dos alarves e apedeutas. Indica, outrossim, uma mente deslumbrada com as reverberações de um saber despiciendo, que leva a conclusões inanes sobre os transcendentais enigmas do Homo sapiens.

11 - Prefira a linguagem denotativa; ela é um lago transparente de onde emerge com clareza o sentido das palavras.

12 - Evite em seu texto manifestar preconceito contra as mulheres. Do contrário, elas vão reclamar de você o tempo todo sem lhe dar chance de se defender. Mulher – todo o mundo sabe – não tem paciência para compreender as razões do outro e termina transformando o que deveria ser um diálogo esclarecedor num monólogo interminável – em que, obviamente, só ela fala.

13 - Medite nesta verdade preciosa: rima é bom em poesia, não em prosa.

14 - Fuja dos enunciados vagos e genéricos. Eles dão aquela sensação de algo que não se sabe bem o que é, embora todos de alguma forma já tenham sentido em certos momentos da vida. Alguns têm disso uma longínqua idéia, mas só conseguem defini-la em determinados contextos ou por algum tipo de sugestão diferente da que experimentaram no início, antes de tudo fazer sentido. Ou não.

15 - Ao estar fugindo do gerundismo, você não estará fazendo mais do que sua obrigação. Vá ficando atento.

16 - Você acha que o excesso de perguntas retóricas torna mais eficiente o seu texto? Será que elas necessariamente facilitam o diálogo com o leitor? Ou podem deixar o discurso redundante, sugerindo questões que na verdade não existem? Não será melhor usar frases afirmativas, deixando logo claro o que se quer dizer?

17 - Portanto, não inicie o texto pela conclusão. Comece-o mesmo pelo começo, apresentando o tema e depois os argumentos.

18 - Um texto com excesso de “que” parece que tropeça a cada momento e mostra que a pessoa que o produz tem que melhorar o ouvido.

19 - Sem essa de gírias, mano. Se você, tipo assim, se amarra nesse tipo de modismo, mostra que não tá com nada. Com certeza.

20 - Seja evitado em sua redação o excesso de voz passiva analítica, para que você não seja visto pelo leitor como alguém a ser desprezado.

21 - É bom moderar o uso da mesóclise. O bom escritor evitá-la-á em nome da simplicidade, pois a colocação do pronome no meio do verbo trar-lhe-ia aspereza acústica e transformá-lo-ia num monstrengo aos ouvidos de hoje.

22 - Evite. Fragmentar o período. Pois isso é uma grave falha. Gramatical e estrutural.

23- Sei que é difícil fugir das frases feitas, mas faça um esforço. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O passarinho Quintana

Uma das composições mais citadas de Mario Quintana é o “Poeminha do contra”. Dizem que foi escrita após o poeta ter sido pela terceira vez derrotado na eleição para a Academia Brasileira de Letras.
Pouco importa se teve esse caráter circunstancial; sobretudo pelos versos finais, o poema vale como uma lição de desprendimento e ironia. Ao mesmo tempo, serve para uma breve reflexão sobre as relações entre a língua e determinados procedimentos poéticos. Vamos ao texto:

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho! (Prosa e Verso, 1978)

O tema é a velha oposição entre o eu e os outros. O eu lírico refere nos dois primeiros versos o conflito entre o indivíduo, em busca de realização e plenitude, e os que constituem um obstáculo a isso.
A noção de “outros” está representada em tom de menosprezo pelo demonstrativo “esses”, que não se refere a um antecedente preciso. Pelo contrário, remete a um conjunto amplo, fora do texto, conforme indica o pronome indefinido “todos” que lhe está anteposto.
A imprecisão acentua-se com o uso do advérbio pronominal “aí”, que não delimita o espaço mas o apresenta próximo, contíguo. Isso antecipa a idéia de incômodo e opressão reforçada a seguir pelo verbo “atravancar”. Esse verbo, de valor metafórico, concretiza o que até então soava abstrato. É o primeiro vocábulo lexical – ou seja, referente ao mundo externo – depois de um conjunto de termos gramaticais (todos, esse, aí).
Do ponto de vista sintático, o poema se estrutura como um aparente anacoluto. Tem-se a impressão de uma quebra entre o sujeito (todos esses) e o predicado “passarão”. Trata-se na verdade de um pleonasmo, pois “todos esses” é retomado pelo pronome pessoal “eles”.
Nos versos finais, o efeito poético resulta da oposição entre os parônimos “passarão / passarinho”. Nessa oposição há uma ruptura de paralelismo morfológico; depois de “passarão” espera-se que apareça outro verbo, mas vem um substantivo.
A justaposição entre “ão” e “inho” sugere um contraste entre sufixos – um marcando o aumentativo, outro o diminutivo. Mas a forma “passarão”, como se disse, é também (ou sobretudo) verbo; e nesse vocábulo o que parece sufixo é na verdade a associação entre desinências de modo, pessoa e número (rã-o).
No uso ambíguo de “passarão”, está uma das maiores riquezas do poema. Como verbo, “passarão” indica o efêmero destino dos que se opõem ao eu lírico; eles serão apagados pelo tempo.
Como nome, e com o sentido literal de “pássaro grande”, se opõe aos atributos de canto, leveza, liberdade, aplicáveis a “passarinho”. Esses atributos remetem à idéia de poesia; é pela identificação com eles que o eu se reconhece capaz de vencer o tempo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Vale a pena ver "Romance"

Tristão e Isolda passaram à História como o protótipo dos que se sacrificam por amor. Com eles nascia a paixão, esse misto de êxtase e sofrimento que o Romantismo incorporou à sua visão de mundo e ainda hoje influencia do teatro à música popular.
O fim trágico desse casal, repetido por Shakespeare em Romeu e Julieta, consagra a idéia de que o verdadeiro amor só se prolonga na morte. Só a morte interrompe o corrosivo trabalho do tempo, que aos poucos tira dos amantes a aura com que se vêem um ao outro e os transforma em seres comuns, prosaicos, iguais a todo o mundo.
“Romance”, ora em cartaz, parte da lenda de Tristão e Isolda para discutir essa tendência idealizadora da paixão – mas não apenas isso. Transforma a discussão entre idealismo e realismo numa reflexão consistente sobre o próprio sentido da arte. Ou melhor: sobre a arte, identificada com o teatro, e sucedâneos comerciais como a novela de televisão.
Wagner Moura faz o diretor obcecado com a pureza da arte de representar, cuja essência se encontra no teatro. Letícia Sabatella interpreta a atriz disposta a conciliar teatro com televisão. O casal simboliza o velho conflito entre o feijão e o sonho, e os dois acabam se afastando num primeiro momento.
Reencontram-se três anos depois, numa montagem de “Tristão e Isolda” feita no interior da Paraíba, para vivenciar os desdobramentos desse conflito. Agora o personagem do diretor, que fez o roteiro para a nova representação, tem de enfrentar o demônio do ciúme; sua antiga amada apaixona-se pelo ator de novela disfarçado em caipira que faz o papel de Tristão.
Esse ator é um sujeito bonitão e matreiro, que está mais interessado em comprar carros de luxo do que na nobreza da arte. O final é romanticamente convencional, com o desmascaramento do vilão e a reaproximação dos personagens do diretor e da atriz.
O filme tem um roteiro bem trabalhado, e uma montagem que articula agilmente os elementos da trama com representações iconográficas de “Tristão e Isolda”. Um dos pontos fortes é o elenco, afinadíssimo, com destaque para o casal de protagonistas. Letícia Sabatella, linda e vibrante, impressiona pelo domínio dos recursos teatrais. E Wagner Moura expressa na medida o misto de quixotismo, abnegação e ironia que caracteriza seu personagem.
“Romance” é um filme sobre amor e sobre cinema. Sobre o amor à arte e sobre as eventuais traições que os artistas são obrigados a fazer a ela. Para os roteiristas Guel Arraes e Jorge Fernando, que trabalham na televisão, terá sido uma espécie de catarse. Para nós, espectadores, é a possibilidade de apreciar o aproveitamento atualizado e criativo de um velho tema.

Dizer pelo excesso