quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sobre o tempo

 

O tempo é um dos maiores enigmas humanos. Muitos já tentaram decifrá-lo, mas, ou não tiveram suficientemente tempo para isso, ou desistiram pela complexidade do tema. A hipótese mais viável é a segunda, pois quem se dispõe a meditar sobre a passagem do tempo não está ocupado com outras coisas e pode se dedicar com muita calma a isso (alguém já disse que, sem ócio, não haveria filosofia nem chá dançante).

O que mais nos angustia no tempo é o seu fluir interminável. Se você faz alguma coisa errada, não consegue voltar atrás. O ideal seria que retrocedêssemos no relógio e conseguíssemos apagar o conteúdo existencial a ela associado. Mas a desvantagem disso é que não aprenderíamos com a experiência, pois ela é feita de erros e perda de tempo. No fim, quando você já aprendeu tudo (até a ler manuais de instrução), não há mais como colocar o aprendizado em prática.

Henri Bergson distingue tempo de duração. O primeiro diz respeito à cronologia; o segundo, à percepção subjetiva que temos do fluir cronológico. Isso é o que faz um evento “demorar mais" do que outro, embora ambos tenham a mesma extensão. Essa diferença perceptiva relaciona-se, freudianamente, com a sensação de prazer ou desprazer. O que é bom “passa rápido”; o que é ruim... “custa a passar”.

Suponha que você tenha cinco minutos para assistir a uma aula de trigonometria e os mesmos cinco para estar com a namorada na praia – os dois sozinhos, sob a luar, estendidos na areia e sem nem um siri para atrapalhar. O que vai passar mais rápido? Estar com a namorada, claro. Se você acha que é a aula, sofre de algum distúrbio psicológico ou tem interesse pela professora.

Tem gente que insiste em ignorar a passagem do tempo e faz isso cinicamente, rindo, sem nem ter o cuidado de esconder a “dentadura”. Outros pintam o cabelo mesmo que até agora não tenha aparecido um produto que dê ao tingimento uma cor natural; o resultado é aquele preto ou marrom fechado que delata o ingênuo propósito de quem quer parecer mais novo. Não adianta tentar fingir que o tempo não passa, porque o corpo atesta o contrário. Rugas, estrias, gorduras nos braços e no abdômen acabam revelando a idade que se tem.

Isso não impede, claro, que a pessoa seja espiritualmente jovem e até se dê a excessos participando de grupos da terceira idade (uma amiga minha fraturou a bacia tentando aprender a dançar valsa numa das reuniões). O importante é que tais excessos sejam antecedidos de exames médicos e, dentro do possível, acompanhados por um cardiologista. Mas é bom primeiro saber quanto ele vai cobrar, pois a medida poderá surtir o efeito oposto e, ao receber a conta, o paciente levar um susto e morrer do coração.

Uma das nossas angústias é “matar o tempo” (ao redigir esta crônica, por exemplo, não faço outra coisa), e para isso muitos se submetem a atividades humilhantes, como jogar porrinha ou assistir mais de dez vezes ao mesmo filme na sessão da tarde. “Matar o tempo” é esquecê-lo, e só se dispõe a isso quem não tem mesmo o que fazer – daí os livros de autoajuda aconselharem a pessoa a sempre se ocupar com alguma coisa. Você pode seguir esse conselho rasgando  a maioria deles, o que lhe tomará um tempo enorme.

Dizem que não suportamos pensar no tempo porque nos sentimos insignificantes diante do infinito. Conversa! No fundo ninguém dá a mínima bola para o infinito, pois sabe que jamais chegará lá. O que nos angustia é mesmo o efêmero, o escoar ininterrupto de tudo. Se digo “ai”, esse “ai” já passou, e se eu quisesse recuperá-lo não conseguiria dizendo “ai” de novo. Este outro tem o mesmo som e as mesmas letras, mas já não é o primeiro (o que também mostra como a linguagem pode ser enganosa). Segundo Heráclito, “ninguém atravessa duas vezes as águas do mesmo rio” – e acrescento: sobretudo se na primeira foi perseguido por um jacaré.

domingo, 24 de dezembro de 2023

Sinal dos tempos


             Ele pensou em dar à família um Natal diferente. Estava cansado de ver todo ano a mesma coisa: a parentada em volta da árvore, comendo e bebendo, depois a entrega dos presentes e por fim a ceia. Sentia que, a despeito de a festa existir para renovar os espíritos, era preciso mudar um pouco o ritual.   

Mas como fazer para inovar num acontecimento que se alimentava da tradição? A mulher havia anos armava a mesma árvore. Estava (a árvore, não a mulher) tão velhinha, que toda a iluminação já fora trocada. Ele sentia um confortável prazer em ver a esposa retirar do armário os objetos conhecidos e recolocá-los quase no mesmo lugar. Um ano era muito tempo, o que sempre o fazia se surpreender com detalhes que não observara em anos anteriores. A roupa do anjo Gabriel, por exemplo. Ou a barba de um dos reis magos.

Então lhe ocorreu a ideia: contratar um Papai Noel para vir, em pessoa, entregar os presentes. A família era pequena; dava para acomodar num saco os mimos que compraria para a esposa, os três filhos, os sogros e as duas cunhadas.  

Ficou imaginando o efeito: meia-noite, ele reunido com a família na sala, e todos estranhando nesse ano não haver presentes. A sogra desapontada, pois esperava um novo modelo de toalha de mesa. O sogro chateado, já que precisava de cuecas e deixara de comprá-las justamente porque o Natal estava chegando. De repente, alguém bateria na porta. A filha mais nova iria ver quem era e voltaria gritando, afogueada: “Mãe, é Papai Noel!”. “O quê?!”

Bolado o plano, tratou de o pôr em prática. Não foi difícil contratar alguém. Nessa época muitos indivíduos com o chamado “físico do papel” dão seus nomes a agências de emprego, que são procuradas sobretudo pelos shoppings. Ele foi a uma delas. Depois de ver fotos e fazer uma entrevista com o escolhido, contratou o serviço.  

Comprou os presentes e, na véspera do grande dia, deixou-os com o homem. Era um senhor grisalho, bonachão, conforme convinha à personagem. Chamava-se Epaminondas e tinha um Fiat velho, mas conservado, em que levaria os pacotes.

Enfim, noite de Natal. Para diminuir a perplexidade dos parentes, que não compreendiam a ausência dos presentes em volta da árvore, ele disse que mais tarde haveria uma surpresa. Gerou-se uma tensa mas benéfica expectativa, que só foi quebrada quando um carro parou quase em frente à casa.  

Após uns dois minutos, ouviram-se gritos de “Pega! Pega ladrão!”. Ele correu até a calçada e viu Epaminondas desesperado. Apontava para dois rapazes que dobravam a esquina levando o saco no qual estavam os presentes. O velho balançava a cabeça, em desalento, e repetia como que se desculpando: “Chegaram de surpresa! Não pude fazer nada...”.

        Tratou de tranquilizar o pobre homem e o conduziu ao interior da casa. “Este é Epaminondas”, apresentou, explicando em seguida o que acontecera. Houve de início algum desapontamento, mas todos acabaram compreendendo. Nesse ano não teriam presentes, no entanto ali estava Papai Noel! Se o despojaram da carga preciosa, qual o remédio? Ninguém hoje tem segurança ao andar nas ruas, ainda mais à noite...

            Abraçaram o Bom Velhinho e, entre sorrisos, o convidaram para a ceia. Não contavam com o imprevisto dessa noite, mas sentiram que ele concorreu para fortalecer, em cada um, o espírito do Natal.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Conto de Natal

                 Na véspera de Natal, Dª. Teresa desapareceu no shopping. Ela saíra de casa cedo para escapar dos congestionamentos comuns nessa época do ano. Levava uma lista com os inúmeros presentes que pretendia comprar. Estavam na relação os filhos, genros, noras, o porteiro do prédio, as empregadas, as manicures, o professor de ginástica, o terapeuta comportamental, os colegas da repartição e pessoas que a família ignorava mas, de alguma forma, compunham o seu círculo de relações. Ela sempre se sentira no dever de presentear a todos.

            O último contato com a família se dera por volta das 13h30, via celular. Quem atendeu foi Tancredo, o marido. A mulher estava numa das inúmeras filas que teria de enfrentar naquele dia. Quase não falou com ele, tal o burburinho na loja, mas teve tempo para o prevenir de que chegaria tarde, muito tarde (impressão ou não de Tancredo, quando ela disse “muito tarde” havia um cansaço misterioso na sua voz).

            Como Dª Teresa não voltava com o avançar da noite, a família foi ao shopping averiguar. Os vigias não sabiam de nada. Tancredo e os filhos resolveram ligar para os amigos. Uma das amigas vira Dª Teresa, por volta das 16h, mordiscando uma pizza com refrigerante na praça da alimentação. Em volta, ocupando umas três cadeiras, havia inúmeras embalagens de presentes. A amiga pensou em como ela conseguiria transportar tudo aquilo, mas logo deixou de lado a preocupação; Dª Teresa era hábil nesse tipo de tarefa. Ia muito ao shopping, estava acostumada a transportar pacotes. Até circulara o rumor de que ela fazia terapia para se curar da compulsão por fazer compras.

            A família comunicou o desaparecimento à polícia, mas foi inútil; ninguém sabia de pistas que levassem à mulher. A polícia sugeriu que ela podia não ter desaparecido no shopping, mas fora dele. O mais provável, que levava um monte de presentes, era que tivesse sido raptada na saída. Mas ela não chegara a sair. Seu carro continuava no pátio do estacionamento – e o mais intrigante: cheio de embrulhos. Dª Teresa cumprira o seu dever, comprara o que tinha de comprar, depois viera até o automóvel e guardara os presentes. Por que, então, não voltou para casa?

            Desalentados, os familiares não sabiam mais o que fazer. Foi quando alguém teve a ideia de examinar os manequins. A proposta parecia absurda, mas foi aceita por falta de alternativas. Policiais, familiares e amigos iam de vitrine em vitrine olhando os bonecos, nus ou vestidos, que posavam por trás das paredes de vidro.

         De repente Leninha, uma das filhas, deu um berro que reverberou por todo o shopping. “Não é possível! Mamãe!”. Correram todos. E viram! Viram que Dª Teresa tomara o lugar de um manequim masculino vestido de Papai Noel. Dura, imóvel, ninguém sabia se estava viva ou morta. Tinha o olhar parado, perplexo, e na fisionomia uma expressão artificial de riso. A família deu por encerrado o mistério e tratou de levá-la para casa. Dª. Teresa foi carregada, como um presente, sem despregar do rosto o sorriso enigmático.

sábado, 16 de dezembro de 2023

A volta do boêmio

 

O velho boêmio voltou. Sentiu que as coisas mudaram quando foi informado de que deveria procurar o Setor de Readmissões. Dirigiu-se ao responsável:

         – Aqui me tens de regresso, e suplicando eu te peço a minha nova inscrição.

         – Preencha esta ficha em três vias. É preciso também pagar uma taxa.

        – Uma taxa?

         – O pessoal aqui era muito instável, vinha e voltava quando queria. A gente tinha que se garantir, por isso criou um fundo de reserva.

        – Mas pra que essa formalidade? Voltei pra rever os amigos que, um dia, eu deixei a chorar de alegria... 

       – Acho você não vai mais encontrar quase nenhum. A maioria hoje dorme cedo e come comida natural. Muitos frequentam nossa academia.

       – Está brincando!? Sabendo que andei distante, vai agora ironizar? Certamente quer me punir por ter deixado a noite. Eu, que fazia serenatas...

       – Serenata? Nos dias de hoje? Você ia cantar para o prédio todo, e terminaria tendo que se explicar à polícia. Se quer paquerar alguém, deixe seu nome aqui no nosso cadastro. Coloque também endereço, profissão, além de preferências gastronômicas, artísticas e culturais. A gente compara com as fichas de outras pessoas e, se for o caso, faz a aproximação via rede social. Basta acrescentar à mensalidade uma pequena taxa.

       – Não preciso disso. Já tenho alguém que floriu meu caminho. Por sinal, estou aqui por causa dela, que aceitou me dividir com vocês. Vendo a tristeza em que eu me encontrava, ela chegou pra mim e disse: “Meu amor, você pode partir; não esqueça o seu violão...”

      – Uma amélia.

      – Amélia não, Otília.

      – Digo que sua mulher é uma amélia, uma tola. Deixar você se divertir com os amigos enquanto fica sozinha em casa. 

      – Mas ela sabe que eu sempre voltarei. Até reconheceu, antes de me deixar partir: “Pois me resta o consolo e a alegria de saber que, depois da boemia, é de mim que você gosta mais”.

       – Depois da boemia?! Mulher nenhuma hoje aceita ficar em segundo plano. Por isso desenvolvemos um setor para receber também as esposas, ou assemelhadas. Trabalhamos nisso de olho na otimização dos serviços. Com o acréscimo de 30% na mensalidade, você pode inscrever Otília. Ela vai conhecer seus amigos e as mulheres deles. Depois que fizemos isso, os casais passaram a brigar menos.

       – Sabe de uma coisa? Vou embora. Pode rasgar a ficha que acabei de lhe entregar. Eu queria tudo como era antes.

     – Mas isso não é problema! Nas sextas à noite, temos uma sessão nostalgia. Os homens vêm sós e podem percorrer antigos becos de ruas estreitas, onde há casas com janelas para fazerem serenatas. Tudo em ambiente virtual, claro, por isso o preço... amarga um pouco. Mas lhe garanto que é compensado pela doçura de voltar aos velhos tempos.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

O abismo de Clarice


 A linguagem é a trama que engendra o ser. 

Veio Clarice e puxou um fio, estendendo-o até o limite do silêncio e da agonia. 

Clarice clareia o caos ou o aprofunda, devassando a fenda que há entre o homem e o verbo ? 

É sombra em nosso espírito, ou luz?

Muitos sentidos se camuflam e se desvelam na inquietação com que, juntando palavras, ela mergulha na interminável busca de si mesma.

Fez do abismo seu chão nessa estranha aventura de pensar com o coração.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Amor e perdão

 


Morreu Ryan O’Neal, que fez par romântico  com Ali MacGraw em “Love Story”. O filme estreou em 1970 e foi sucesso mundial entre adolescentes com a história de amor que envolvia os dois protagonistas.

Quando ele foi exibido por aqui, eu estava em começo de carreira e lecionava no 2001. Publicava nesse cursinho um jornal intitulado “O Radar”, onde escrevia crônicas, comentários críticos e umas frases que imitavam o estilo de Millôr. 

O filme tinha um slogan que bem resumia o seu espírito, “Amar é não ter jamais que pedir perdão”, e num dos números do jornal fiz um texto criticando a estupidez dessa sentença. Eu defendia que amar é justamente ser capaz de perdoar e que o embuste do conceito veiculado na frase pressupunha um idealismo que nada tinha de humano. 

Por que fiz isso?! Umas garotas, que tinham chorado muito vendo o filme, vieram para cima de mim com quatro pedras na mão (acho que até mais). Acusavam-me de insensível, incapaz de reconhecer o “verdadeiro amor”. Felizmente escapei ileso do protesto (e talvez de ser demitido).

Passou o tempo; hoje as que me acusavam já devem ter se apaixonado e, quem sabe, vivido o amor verdadeiro. Caso isso tenha ocorrido, certamente se depararam com inúmeras situações em que é preciso perdoar (ou ser perdoado) para manter vivo tal sentimento. E podem concordar, enfim, com quão mentirosa e superficial era a frase.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Compulsões

            


          Vejo uma reportagem na TV sobre compulsão.  A repórter entrevista alguns compulsivos, que falam sem pudor de suas manias. Uma mulher só se sente feliz quando faz compras. Mostra no guarda-roupa uma porção de vestidos, blusas, sapatos que jamais irá usar. 

Um homem expõe sua monumental coleção de CDs, que se empilha por vários cômodos da casa. Ele não dará conta disso nem que passe o resto da vida ouvindo música. E será que gosta mesmo de música? Quem gosta elege seus compositores preferidos e os ouve repetidas vezes, sem esse afã de substituí-los por outros. Gostar é resumir, selecionar. Mas o compulsivo não avalia méritos, qualidades; o que o motiva é a satisfação mecânica de seus impulsos. 

A psicologia cognitivo-comportamental associa os gestos compulsivos a obsessões de que o indivíduo procura se libertar. O pensamento obsessivo aponta para um perigo a que a pessoa fica exposta caso não pratique os rituais de repetição. Neste sentido, comprar sem motivo ou fazer ginástica sem limites seriam pequenas mortificações para afastar uma ameaça ilusória. Ou para apaziguar uma consciência culpada. 

Essa cadeia de mortificações constitui no limite um distúrbio sério, em que os gestos compulsivos ganham uma espécie de autonomia que faz a pessoa esquecer o que está querendo purgar. É como no tique nervoso, ou no cacoete, que são caricaturas de prece. O indivíduo ritualiza, com trejeitos corporais, uma reza sem sentido. Ou uma reza que, pelo menos no início, só tem sentido para ele. 

Quem não tem suas compulsões? Aquele que não as tiver atire a primeira pedra (os escritores têm as frases feitas, que são compulsões linguísticas). Alguns as disfarçam em atividades nobres, como a arte ou a política. Outros as sublimam nos rituais religiosos. Outros por fim as vulgarizam em jogos, vícios, exercícios físicos. 

Minha tese (nada original) é que o excesso de atividade física é uma tentativa de afastar o medo da morte. A consciência de que está exercitando coração e músculos, e com isso combatendo o exército mau de triglicérides e ácidos graxos, dá à pessoa uma ilusão de plenitude. Ou de inexpugnabilidade. Alguns dizem que o que leva a tal excesso é o efeito da endorfina, mas isso não invalida a tese. As preces são uma endorfina da alma, e também se justificam por nossa recusa em morrer.

As compulsões mostram que é tênue o limite entre sanidade e doença mental. Mesmo o indivíduo normal tem, como diria Machado, seu grau de sandice. Curar os compulsivos seria curar o mundo, e quem tentasse fazer isso teria o destino de Simão Bacamarte – aquele personagem machadiano que, ao buscar distinguir os doidos dos sãos, termina sozinho em um hospício.

O poder da frase