“Bacurau” é uma alegoria sobre o nosso subdesenvolvimento.
Uma espécie de “Terra em transe” Hi Tech, pois nele os bandidos usam drones e
os habitantes da cidade que dá título ao filme têm telefones celulares (mas num
momento crucial de suas vidas não conseguem se comunicar com ninguém e se tornam são
socialmente invisíveis – tão remotos como se fossem observados do espaço sideral).
A trama é secundária em relação às contrastantes imagens dos despossuídos de dinheiro
e poder. Eles vivem como animais, cultivando a nudez despudorada e a
sexualidade promíscua. Afinal de contas, não existe pecado do lado de baixo do
Equador. A religiosidade encarnada na mulher cujo velório se celebra no início
do filme apenas confirma a alienação da maioria dos habitantes, que (evocando o
pássaro que dá nome à cidade) parecem viver no escuro.
Essa mulher era para o povo uma espécie
de bastião das virtudes, no entanto, a julgar pelas palavras da médica que
a descompõe em plena vigília fúnebre, não passa de um logro. Interpretada por
Sônia Braga, a médica é um dos personagens mais interessantes do filme. Alcoólatra,
está de porre quando diz conhecer na intimidade a morta que o povo ingenuamente
cultua. Mas não há por que duvidar de suas palavras; bêbados costumam dizer a
verdade. A professora ilustra a ambiguidade moral que impera na cidade ao transformar
um cômodo da escola em motel (ou talvez num bordel; isso lá faz pouca diferença).
A cidade tem um museu que a orgulha, mas
nada lucra com ele. O prefeito demagogo, do qual se poderia esperar estímulo à
cultura e ao turismo, é mancomunado com os estrangeiros que começam a invadir o
lugar. Nessa invasão há um óbvio simbolismo, mesmo que o chefe do grupo seja um
alemão e não um... norte-americano. O
que o filme tematiza, no fundo, é a velha dicotomia imperialismo versus
subdesenvolvimento; exploradores versus explorados. Mas tal simplificação não
empobrece a obra, graças à criatividade das imagens e a um roteiro em que se associa
o naturalismo sintonizado com a mundividência dos habitantes a algumas notas de
humor.
O final sanguinário é uma espécie de
acerto de contas. Não se sabe como o negro e a mulher de úberes portentosos (referência
felliniana em que a sexualidade dá lugar à força nutriz) têm acesso às armas
com que mutilam os estrangeiros. Pouco importa, pois o que conta é o desafogo
da revanche, que coroa o ressentimento (ou melhor, o ódio) contra o inimigo
invasor. Mas a maior catarse é
propiciada pelo destino dado ao prefeito, cuja hipocrisia e desonestidade
evocam os nossos maus políticos. Seu banimento entre protestos inúteis provoca
risos e aplausos da plateia. É uma imagem com a qual ninguém no cinema deixa de
se rejubilar.