sexta-feira, 16 de julho de 2021

Exame de sangue

 


No laboratório, para fazer exame de sangue. Com a idade esse procedimento se torna rotineiro, mas ganha ares de coisa muito séria em tempos de pandemia. A gente entra na sala e se depara com pessoas mascaradas e que nos olham com cera desconfiança. O medo se justifica, pois qualquer um pode ser portador do vírus.

Entro e permaneço em pé, embora haja cadeiras vazias. Vazias mas excessivamente contíguas, o que contraria o propalado distanciamento social. Enquanto espero a minha vez, estendo o olhar em volta. A maioria dos clientes é de meia idade. Quando se chega a esse estágio da vida é preciso monitorar como andam os triglicerídeos, a ureia, o colesterol e outras substâncias cujo aumento ou diminuição indicam se a nossa saúde está em risco. Aos homens interessa sobretudo o PSA, que parece sigla de partido político mas é na verdade um índice que sinaliza o temido câncer de próstata.

Não é agradável estar naquela sala, enfrentar burocracia e ainda ser espetado por uma agulha – mas graças a isso hoje vivemos mais. Isso não significa viver bem, é claro, mas a correta indicação do que em nosso organismo falta, ou sobra, concorre para que vivamos um pouco melhor. Se não existe elixir da juventude, que pelo menos se retire o lixo orgânico que pode antecipar a nossa morte.  

A atendente me chama, faz-me sentar diante dela e pede as requisições (o médico passou várias, acho que percebeu algum desequilíbrio no meu estado geral) e a carteira do plano de saúde. É uma mulher bonita, ainda nova, diante de quem respondo com certa vergonha às perguntas sobre os medicamentos que tomo e a dieta que fiz na noite anterior. Confirmo o jejum de doze horas. Ela retribui com um sorriso de aprovação, como a professora que parabeniza o aluno por ter feito o dever de casa.

Tudo certo com a burocracia e com as minhas condições para o exame. Enquanto aguardo o momento da coleta, não consigo evitar algumas desagradáveis cogitações. Estarão as minhas taxas dentro da normalidade? E se uma delas, ou mais de uma, acusar um excesso condenável e ameaçador? De repente me bate o remorso por nem sempre ficar atento ao que recomendam os médicos. Não é raro eu me exceder em bolos ou biscoitos, por exemplo. E raras vezes tenho disposição para caminhar os 30 ou 40 minutos que os cardiologistas prescrevem para ajudar na queima do colesterol. Talvez o resultado do exame revele a imprudência de tais descasos.

Uma senhora de branco, papeleta na mão, interrompe esses pensamentos negativos chamando o meu nome.  Faz-me sentar numa cadeira enorme e me pede que feche a mão esquerda. No limite entre o braço e o antebraço vejo saltar a pequena veia, que a mulher apalpa com um carinho técnico, medindo se pode enfiar ali a agulha. Pouco depois vejo o líquido vermelho encher uma, duas, três seringas. A cor é vívida e, pela aparência, não sugere que haja alguma coisa errada – mas que sei eu dos mistérios do nosso organismo? O que me parece sadio no líquido escarlate pode disfarçar o excesso de ácidos graxos, albumina ou mau colesterol (sim, também nesse domínio vivenciamos o combate entre o bem e o mal).

Na saída, vejo que tem mais gente na sala de espera. Tento atravessá-la rápido, com receio de me contaminar. Noto que em uma das cadeiras está sentado um velho conhecido que, segundo me disseram, passa por um problema grave de saúde. Faço-lhe um aceno, ele me cumprimenta sem entusiasmo e logo vira o rosto. Tem um ar cansado, talvez pela frequência com que tem vindo ali.

Entro no carro com o sentimento de haver cumprido uma obrigação. Ou feito o dever de caso. Agora é esperar, apreensivo, o resultado. Seja qual for ele, será menos ruim do que ser surpreendido por um mal irreversível que um exame de rotina poderia evitar. Para isso vale a pena dar o sangue.

domingo, 4 de julho de 2021

Oxítonos

             

           Os proparoxítonos são nobres. Os paroxítonos, triviais (correspondem à maior parte do léxico).  O que dizer dos oxítonos? Com a tônica na última sílaba, eles têm um quê de retumbante e definitivo. Só se dão por inteiro. Nada os pode mutilar, sob pena de lhes destruir a alma, o icto, a sílaba tônica.

Talvez por isso eu tenha por eles um “xodó”. Um inexplicável “lundum”. Uma admiração sem “rapapés”. Sou Chico, mas gostava de ouvir um amigo que me chamava de “Chicó”. O esticamento e a abertura da sílaba final faziam a palavra soar como um dó de peito. Era difícil resistir ao apelo de quem me chamava assim.        

Oxítonos são os infinitivos dos verbos, e o povo tende a suprimir o “r” posposto à vogal que indica a conjugação. Prefere dizer “cantá”, “bebê”, “parti”, desfazendo a vibração presente na consoante. Como se quisesse sentir a nua tonicidade das sílabas finais.

Os oxítonos são fáceis de dizer. Por isso as crianças a eles se afeiçoam, nomeando em balbucios as figuras a que se apegam primeiro: “papá”, “mamã”, “vovô”, “vovó”. Daí evoluem para os vocábulos que resumem a sua incipiente experiência do mundo: “pipi”, “bumbum”, “dodói”. Parece haver um casamento entre os oxítonos e os chamados hipocorísticos, que traduzem afetividade.   

Mas nem tudo neles é doçura. Comumente se traduz em oxítonos o preconceito com que a sociedade julga os diferentes. Galego é “sarará”. Amputado é “cotó”. Gente muito feia é “papangu”. Cavalo inútil ou manhoso é “pangaré”. Mulher que passa tempo demais sem casar fica no “caritó”.   

Os oxítonos se prestam bem à expressão do exagero. Uma coisa é estar saturado, outra é ficar “pelo gogó”. Fazer escândalo impressiona menos do que “dar um piti”. A ideia de que algo mudou radicalmente parece ter mais força quando se diz que houve um “revestrés”. Quem muito se entristece fica “jururu”.

São oxítonas várias palavras que se abreviam segundo a lei do menor esforço, como “pornô”, “retrô”, “chatô”. Com isso elas perdem parte do significante, mas não perdem o impacto. Drummond numa crônica faz uma personagem chamar poluição de “polu” – uma maneira de ela demonstrar intimidade com o tema. Intimidade e compromisso. Quem diz “polu” não sai por aí degradando o meio ambiente.

 No domínio das crenças populares, os oxítonos também impressionam. Rogar uma praga é menos ameaçador de que fazer um “catimbó” (quem quiser que experimente). Entre os cultos animistas, nenhum parece tão ameaçador quanto o “vodu”. Divindade africana que se preza é “orixá”.

Os oxítonos são bons para traduzir repetitividade. Um som que parece interminável é um “baticum”. De gente cheia de lamúrias ninguém suporta o “nhenhenhém”. Estilo por demais enfeitado é “rococó”. E quando a confusão não termina? Vira um “rififi”.

Esse termo apareceu numa manchete que nunca esqueci (estampada na extinta revista Manchete). Tinham brigado Ângela Ro Ro e Zizi Possi. O romancista Carlos Heitor Cony, que era chefe de redação ou coisa parecida, não hesitou ao dar título à matéria: “Rififi da Zizi com a Ro Ro”! Uma sequência de oxítonos que sublinhava o escarcéu provocado pelas duas.

“Escarcéu”, por sinal, diz mais do que alarido ou gritaria. E com ele termino a crônica, antes que algum adepto dos proparoxítonos ache essa minha preferência esdrúxula e venha me provocar. Não estou para “quiproquós”.

O poder da frase