domingo, 26 de maio de 2013

Novo símbolo


          Angelina Jolie anunciou na semana passada que se submetera a uma dupla mastectomia para prevenir um câncer geneticamente programado. O anúncio, como era de esperar, ganhou manchetes em jornais e capas em revistas. Não tanto pelo radicalismo do procedimento, que por si impressiona, quanto pela pessoa que a ele se submeteu. A atriz de corpo longilíneo e lábios carnudos é um dos maiores símbolos sexuais da atualidade.  
         Sua disposição em fazer a cirurgia não deixa de ser um sinal de que as coisas mudaram no universo das estrelas cinematográficas. Há algumas décadas, certamente não seriam capazes de decisão tão corajosa. Prefeririam conservar a imagem a comprometê-la em troca de mais anos de vida. Doença ou velhice eram os principais estigmas que se apressavam em esconder. Um dos exemplos clássicos disso é Greta Garbo, que ao pressentir a decrepitude se isolou do mundo para que ninguém lhe visse as rugas. Queria se manter na memória dos fãs tal como era nos filmes.   
        Angelina não deu muita bola para isso. É verdade que tinha mais do que as divas de outros tempos uma consciência clara e aguda do que poderia lhe acontecer caso não fizesse a cirurgia, mas ainda assim poderia ter apostado na sorte. O câncer é sempre uma probabilidade, e não há exame genético que afirme com cem por cento de certeza se ele aparecerá ou não (segundo os médicos, depois da cirurgia a chance de ela vir a ter a doença ficou bastante reduzida, mas não se desfez).  
      A atriz preferiu não arriscar. Apesar de comprometida com a glória, que se alimenta da imagem, quis se mostrar como alguém comum. Alguém que quer viver no aqui e no agora para cumprir os compromissos em que se envolveu como pessoa, cidadã, ativista de causas humanitárias.
        Optando pela saúde, ela mostra que o papel que considera mais importante é mesmo o de esposa e mãe. Foi principalmente pelos filhos que tomou a difícil decisão;  não queria que acontecesse com eles o que houve com ela própria, que perdeu cedo a mãe devido a um câncer. “(Os filhos) sabem que farei qualquer coisa para ficar com eles o maior tempo possível”, escreveu a atriz no texto em que fez o anúncio da cirurgia.  
       Agora se especula sobre o seu futuro profissional. Uns querem saber que efeito terá sobre o público a atitude que tomou. Outros perguntam que tipo de papel ela representará, já que a cirurgia teria abalado a imagem de símbolo sexual. Por mais que as próteses recomponham o que o bisturi retirou, ficará na memória do público os detalhes de uma operação didaticamente esmiuçada por jornais e revistas em todo o mundo. Seria difícil ignorar isso ao vê-la protagonizar voluptuosas cenas de amor.
      Hoje não têm cabimento considerações dessa natureza. Num mundo em que se procura ver sem preconceito a velhice e a doença, não faltarão papéis para heroínas como ela. Heroínas cuja grandeza aparece na vida antes de chegar às telas do cinema. A dimensão que a mídia vem dando ao caso mostra que a aura da atriz está longe de se apagar. Pelo contrário, até brilha mais forte. O que parece já estar ocorrendo é a transformação de um símbolo em outro.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Divino vinho

Dizem que beber é uma arte -- a não ser para os alcoólatras, que bebem sem nenhuma preocupação estética. Tenho pouca experiência no assunto, pois sempre bebi muito pouco, mas não há dúvida de que o álcool bem-administrado traz alguma forma de beleza à vida. Uma beleza não meramente contemplativa, mas também funcional.
Uma de suas utilidades, bastante apregoada, é servir de desinibidor para os tímidos. Outra é ajudar a esquecer os problemas de hoje -- de hoje, ressalve-se, pois em certas pessoas ele evoca reminiscências por vezes traumáticas. Tenho um amigo que quando bebe odeia o pai, pois se lembra das surras injustas que levou. Nesses momentos ele chora, como se ainda sentisse as lapadas do cinturão, e só volta a se entender com o “velho” quando está de novo sóbrio.
Seja qual for o mérito do álcool, uma coisa é certa: beber é um aprendizado que pode começar com o que for, mas termina sempre no vinho (mais especificamente, no vinho tinto). O vinho é a culminância, a redenção, a prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um doloroso estágio rumo à transcendência.
A cada momento da vida corresponde uma preferência etílica. A adolescência é a fase da cerveja e dos runs baratos e fortes. Nessa época ninguém se preocupa com a saúde nem com o decoro; isso, aliado à falta de dinheiro, faz com que se aceite emborcar qualquer coisa. O importante é o efeito, a sensação, independentemente do que possa ocorrer depois.
Lembro-me de que certa vez eu e um amigo, sem dinheiro nem para esse cardápio trivial, compramos um litro de vodka cujo nome por si já revolvia nosso estômago. Pagamos caro por essa ofensa a Baco. No dia seguinte, o simples ato de abrir os olhos provocava uma fuzilaria que lacerava a nossa cabeça.
Na idade adulta também padecemos de ressaca, mas não por escassez de dinheiro ou inexperiência. As preferências nessa idade são outras e geralmente compatíveis com o bolso. Esse é o momento em que entram em cena os destilados, que são nobres e sutis mas não se prestam à celebração da vida.
É preciso chegar ao vinho para perceber que o ato de beber tem um sentido. E que esse sentido, tal como nas cerimônias religiosas, manifesta-se por meio de um ritual.
Depois que alguém escolhe o vinho e se fixa nele, não há mais como descer nem como subir. A descida (cerveja, cachaça, vodka, rum) seria um retrocesso rumo à barbárie; a subida, bem, esta só será possível quando a alma, enfim liberta dos grilhões terrenos, adentrar os páramos da Eternidade.
Lá chegando, não será difícil encontrar Deus diante de uma garrafa de vinho quase tão velho quanto Ele. Um vinho talvez feito com parreiras do Éden, para festejar num momento de reconciliação com os homens as maravilhas da criação. E vai dar para ouvir ao longe, entre ardores e clamores, o diabo tomando absinto.
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Em "A idade do bobo", p. 33.
Leia o livro em http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo

domingo, 5 de maio de 2013

Do baú (4)



          Dizem que os países onde há muitos gatos são mais desenvolvidos. A explicação me parece óbvia: o excesso de gatos os ajuda a se livrar dos ratos... Infelizmente, em nosso país (onde há tantos ratos!), demos preferência aos cachorros.
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          O apaixonado não tem que confiar no outro. Tem que confiar em si. O outro é sempre um enigma... E mesmo nos casos de “fidelidade eterna”, há pequenas, múltiplas e às vezes imperceptíveis traições.
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         É curioso que as pessoas se voltem para a religião na velhice, quando não precisam mais do freio que ela representa. O normal seria temer Deus quando há motivos para ele nos castigar -- e esses motivos tendem a desaparecer quando ficamos velhos.
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          A diferença entre o prazer e a satisfação é que o primeiro é mais intenso, pois diz respeito ao corpo. A satisfação relaciona-se mais com o espírito. Muitas vezes, para obter uma satisfação, temos que adiar um prazer. Por exemplo: perder uma festa para terminar um trabalho escolar. Ou trocar uma viagem de recreio por um estágio profissional. Ao contrário dos frutos do prazer, que se esgotam em si mesmos, os da satisfação tendem a perdurar e nos trazer prestígio.
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      Nossa época exalta a noção de individualismo, o que faz com que cada um se sinta excepcional. Há muito exagero nisso. O mundo é feito de pessoas igualmente únicas.
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          As viagens tornam irreconhecíveis as pessoas. Longe de casa, todos ficamos diferentes. Não se trata de mudança, mas de outra coisa: quando estamos longe, deixamos emergir o que habitualmente disfarçamos sob o verniz da conveniência ou da moralidade.
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           Não se pode ter das pessoas estritamente o que nos serve, nos gratifica e nos é conveniente. Mesmo quem nos ama (e quem amamos) tem um lado a que somos avessos (e que também é avesso a nós). O outro é sempre um obstáculo, tanto maior quanto maior é o nosso egoísmo.

Dizer pelo excesso