quinta-feira, 29 de julho de 2010

"Eclipse"

Fui assistir a “Eclipse” com minha filha adolescente. Vez por outra eu olhava de lado e via que ela estava suspirando, lacrimejando, ou as duas coisas juntas. Devia perpassar seus pensamentos a certeza de que “o amor é lindo”, pois o filme aparentemente não quer mais do que isto: mostrar a beleza de uma relação amorosa ameaçada por obstáculos e capaz de os vencer. Todo grande amor precisa tê-los, do contrário não desperta a resistência, ou mesmo o heroísmo, que engrandece os amantes. O Romantismo consagrou essa fórmula.
O curioso no filme é que os obstáculos não são as famílias, como em Romeu e Julieta. O pai de Bella, a protagonista, é separado da mulher e aceita que a filha vá se casar com o vampiro Edward. A mãe tem remorsos por viver distante e não implica com as preferências da menina -- por mais estranhas que elas sejam.
Os entraves à realização desse esdrúxulo amor se reduzem na verdade a um -- o sexo. O único fantasma nesse filme de vampiros é o desejo sexual, que ronda sobretudo a moça e encontra uma rejeição enfática em seu noivo. Edward sabe que, possuindo-a, vai tirar-lhe a humanidade e transformá-la num zumbi frio igual a ele, mas não se opõe a isso desde que o ato sexual ocorra depois do casamento.
O filme não deixa claro em que a condição de casada reduzirá em Bella os efeitos dessa metamorfose, mas isso é o de menos; o que conta como “mensagem”, digamos assim, é o que há de espiritual e transcendente na recusa de Edward.
Ele defende o amor sacramentado pelo pacto nupcial e para isso tem que lutar contra os impulsos da moça, que quer o sexo antes de se casar e enquanto é humana, ou seja, enquanto pode sentir prazer como alguém de carne e osso. O vampiro resiste mesmo com o risco de que Bella chegue a esse prazer com Jacob, que ao contrário dele é puro instinto.
Jacob é um lobo que se transfigura em homem, ou vice-versa, e com seu abdômen “tanquinho” e tórax de estivador constitui uma antítese à pele anêmica e ao olhar ictérico de Edward. Deseja Bella e acha, com razão, que a moça também o quer. Há uma cena em que, estando os três conversando, o vampiro pergunta enciumado por que Jacob não veste uma camisa; não é difícil imaginar o que, para dizer isso, ele terá lido nos pensamentos da moça (pois Edward lê pensamentos, e tem condições de alimentar não apenas com suspeitas os seus ciúmes).
Edward, Jack e Bella compõem um triângulo amoroso em que não é difícil saber quem vai ficar com quem. Dois vértices desse “triângulo” constituem na verdade um, pois Edward e Jacob são partes de um mesmo ser. Na fantasia inconsciente, que em última instância comanda nossos desejos, eles representam o velho contraste entre corpo e alma, desejo e espírito. Ou melhor dizendo, para ser fiel ao ideário do filme, entre liberalidade e instituição. A imagem final, com Edward e Bella em casto idílio numa natureza enfim apaziguada, sugere a segurança e a eternidade do lar.
Na saída do cinema, enquanto minha filha enxugava as lágrimas, eu fazia um retrospecto da história e dava razão ao pai de Bella. É difícil a gente não gostar desse Edward!

domingo, 18 de julho de 2010

Marketing funerário

Li que as funerárias estão em crise devido à estabilização da taxa de mortalidade. Antigamente morria-se mais, hoje as pessoas se cuidam e adiam para bem longe a partida deste mundo. É natural que essa longevidade resulte em prejuízo para um setor que vive basicamente da morte.
Li também (tudo tem outro lado) que o setor funerário vai reagir. Não sei bem que tipo de reação vai ser essa, mas certamente ela envolverá estratégias de marketing para convencer as pessoas de que morrer tem suas vantagens. Pode ser, literalmente, uma coisa do outro mundo.
Um bom marqueteiro não terá muita dificuldade para demonstrar isso. Basta chamar a atenção para os desprazeres a que o indivíduo tem de se submeter quando busca uma vida longa. Ele ganha uns anos, é verdade, mas tem que comer repolho e alface. Verá nascer os bisnetos, mas com a cara enjoada de quem se privou de uma série de delícias gastronômicas e não espera nenhuma recompensa disso. A não ser a de estar vivo, o que em si não quer dizer muita coisa. A vida não é só biologia.
O marketing funerário terá de explorar o dilema entre viver muito, e ralo, ou pouco e intenso. E deverá sobretudo salientar as aporrinhações que tornam a existência um suplício. Entre elas estão o trânsito, as filas de bancos, os serviços de telemarketing, a propaganda eleitoral gratuita, e vai por aí. Será importante lembrar que, morto, o indivíduo vai se livrar dos guardadores de carros e dos guardas que vêm lhe pedir propina. E não terá de se deparar com calamidades como incêndios, inundações ou Maradona de terno.
Os marqueteiros terão de ser muito criativos para contestar o “politicamente correto” que hoje vigora nos costumes. Vão ter que se esmerar em slogans do tipo: “Se você está com um pé na cova, vá em frente”. “Viver é perigoso, enquanto que a morte não traz perigo nenhum.” “Melhor do que sonhar com a eternidade é vivê-la.” Junto com isso virá a conclamação para que o indivíduo não se preocupe muito com a saúde, pois isso pode matar (um pequeno artifício retórico que aparentemente previne as pessoas de um risco no qual se deseja que elas incorram).
Uma boa alternativa seria o resgate de imagens ligadas ao Romantismo; os artistas dessa escola, como se sabe, faziam questão de morrer cedo. Podia-se botar lado a lado Álvares de Azevedo e um desses jovens sarados que malham na academia -- e fazer a pergunta: “Quem é mais brilhante?” A seguir viria a legenda: “Ele não precisou de mais do que 20 anos para fazer o que fez.” Isso não nos traria um novo “mal do século”, mas levaria as pessoas a refletir sobre se é mesmo preciso viver tanto para executar sua missão na Terra. Muitos se convenceriam de que não têm missão alguma, estão aqui de graça, e tratariam de procurar um bom desfecho para suas vidas.
Se o leitor considera lúgubre ou pessimista o tom desta crônica, trate de achar uma solução para o mercado funerário. Como qualquer outro setor, ele tem que sobreviver, e só pode conseguir isso caso morramos. Uma solução já, antes que as Parcas da publicidade nos enredem em suas teias.

Dizer pelo excesso