quarta-feira, 20 de março de 2024

A esquecida

 

Cerca de quatro anos pós a morte do marido, D. Zulmira começou a esquecer as coisas. Não sabia onde guardara roupas, sapatos ou utensílios da casa. Letícia, a filha caçula, chegou a alertar a irmã:

          – E se ela deixar de tomar os remédios para pressão?

          – Precisamos ficar atentas. Pode ter um acidente vascular cerebral... – respondeu Soraia, que já pensava na possibilidade de contratarem uma cuidadora.  

          Aos lapsos de memória, acrescentavam-se a tristeza e a apatia. D. Zulmira passava horas numa poltrona da sala, o olhar perdido. Recusava até que ligassem a televisão. Não lhe empolgavam mais as novelas nem os programas gastronômicos, dos quais chegara a copiar receitas para agradar o marido. Valfredo era um gourmet, e a mulher vez por outra lhe preparava comidas diferentes.   

            Para ver se distraía a mãe, Soraia propôs que se mostrasse a ela fotos da família. Sobretudo aquelas em que aparecia com Valfredo, para lembrar-lhe o tempo que passara ao lado do marido. Eram muito bem casados, e certamente as imagens da vida em comum concorreriam para reavivar-lhe a memória e deixá-la mais animada.      

           Assim foi feito. Letícia tirou da gaveta do velho guarda-roupa a caixa em que dormiam, já um pouco amareladas, fotografias da família. Havia muitas dos dois juntos, algumas tiradas quando as filhas ainda nem tinham nascido. O casal aparecia em festas juninas, risonhos, ou enlaçados em bailes de Carnaval. A garota fez uma seleção das que melhor traduziam o convívio amoroso dos dois.

         Numa tarde em que D. Zulmira seguia a rotina de nada fazer e ficar olhando para o tempo, Letícia sentou-se junto dela e começou a mostrar as fotos. Tinha feito uma seleção cronológica, apresentando primeiro as do tempo em que namoravam. Depois vinham as do período em que eram noivos, e por fim as de casados.   

        D. Zulmira olhou de início sem curiosidade, as imagens pareciam não impressioná-la. Mas a partir de certo momento seus olhos começaram a brilhar, e o rosto adquiriu uma expressão intrigada. Olhou para a filha como se não entendesse o que via. Letícia também não compreendeu essa reação, e muito menos quando a mãe lhe fez a pergunta:

        – Quem é essa que está com seu pai?

        – Quê?! Quem poderia ser, mãe? É a senhora!

        – Não sou eu! Tire esses retratos daqui!

        A garota não sabia o que fazer. Chamou Soraia e lhe explicou o que estava acontecendo. A outra ficou surpresa. Não era ela?! Pediu à irmã que recolhesse as fotos e as levasse para a gaveta do guarda-roupa. Antes que Letícia fizesse isso, a mãe pediu para vê-las de novo. Como se quisesse se certificar.  

         – Não sou eu! Seu pai está com outra. Agora fiquei sabendo que ele tinha uma amante...    

        As duas se olhavam, perplexas. D. Zulmira até então esquecia objetos ou nomes de pessoas. Agora parecia não se lembrar do próprio rosto. No dia seguinte, enquanto tomavam café, viram a mãe se dirigir à sala com uma tesoura. Assustaram-se e ficaram imaginando qual seria o seu propósito.    

        Depois de se sentar na poltrona onde costumava passar o dia, D. Zulmira falou:

         – Vão buscar aqueles retratos.

         – Para que a senhora quer? – assustou-se Letícia.  

         – Você vai ver. Quero os retratos aqui.  

         A moça obedeceu e pouco depois voltou com a caixa. Antes de entregá-la, pediu: 

          – Não vá, por favor, fazer nenhuma besteira.   

           D. Zulmira abriu-a e começou retirar as fotos. Olhava-as uma por uma e confirmava:    

           – Não sou eu. Não tenho esse cabelo, nunca usei essas roupas nem esses brincos.  

           Pegou então a tesoura e começou a cortá-las para delas extrair “a outra” que ocupava o seu lugar. As filhas tentaram detê-la, mas logo viram que seria impossível. A mãe tinha uma expressão raivosa e parecia capaz de agredir quem procurasse impedi-la.  

          D. Zulmira colocava as partes cortadas numa mesinha contígua à sua poltrona. Com o tempo, era grande o número de recortes que a mostravam em situações diversas, vestindo diferentes roupas e com variadas expressões fisionômicas – ora risonha, ora atenta, ora plácida, olhando para alguém que não se conseguia ver. Nas caixas restaram as fotos mutiladas, em que também não se sabia quem Valfredo fitava ou tinha nos braços.  

         Terminada a obra, ela fechou o recipiente e deu um suspiro, como se tivesse passado por algo muito incômodo e enfim sossegasse.

         Letícia apontou para os recortes em cima da mesa e perguntou:   

         – O que a gente faz com eles?  

         – Pode esconder ou dar fim. Para mim tanto faz.

sábado, 2 de março de 2024

Dizer pelo excesso

 

Em recente crônica publicada na “Folha de São Paulo”, Sérgio Rodrigues comenta uma frase atribuída a Drummond segundo a qual “escrever é cortar”. O cronista observa que, de tão repetida, a frase se tornou um lugar-comum. Ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato de que é preciso relativizar esse conceito; nem sempre o corte serve às intenções do autor.    

Não há dúvida de que a verborragia é um mal de que o escritor, ou redator, deve se livrar. Há nela uma espécie de automatismo que debilita a expressão. A marca do bom estilo é dizer mais com menos, e não menos com mais. Palavras “sobrando” mascaram a essência do que se quer exprimir e fatigam o leitor.   

É conhecida a passagem de Graciliano para ilustrar isso. Ele compara o exercício da escrita ao de lavar roupas. Somente depois de bem torcidas é que elas podem ir para o varal, do contrário a água acumulada impede que sequem e revelem a sua textura. Desidratar o texto, livrando-o do excesso, é também uma forma de fazer as palavras se darem a “ver”. Ou melhor, é um meio de “dizer” (um verbo caro ao autor de “Vidas Secas”) em vez de apenas encher papel.

Em princípio é assim mesmo, e tal ensinamento os professores de redação costumam passar a seus alunos. Nos exercícios de refeitura, o que se recomenda é mudar e cortar palavras. Mudar para que se chegue à adequação semântica. Cortar para deixar emergir o essencial da informação.

Deve-se no entanto ponderar que nem todo escritor é um partidário da concisão. Há deles que têm o exagero como um traço de estilo. Nesse caso a verbosidade é um ingrediente que “funciona”, promove um efeito de sentido que lhes define a persona literária. Para esses escritores o corte deixa de ser limpeza, remoção de excrescências, e se transforma em amputação.  

Augusto dos Anjos é um bom exemplo disso na poesia (na prosa, ele peca pelo rebuscamento e a falta de naturalidade). Seu estilo poético “carregado” reflete o peso que lhe ensombra o espírito melancólico. Há nele um “excesso de representação”, um dizer a mais aparentado ao Barroco. Uma das marcas desse excesso é a abundância de adjetivos, que vai de encontro ao que preceituam os defensores do estilo conciso.

            São comuns em “Eu e outras poesias” locuções como “largos fios grossos”, “aberratórias abstrações abstrusas”, “hialina lâmpada oca”, “bastos tojos acres”, “abstrusa ciência fria”, “absconsa tábua rasa”, “arimânico gênio destrutivo”, “escaveirado corrupião idiota”, “ríspidas mágoas estranguladoras” e outras em que dois adjetivos modificam um substantivo. Muitas vezes o atributo posposto apenas reitera o sentido do que vem anteposto ao substantivo. Ou seja: não representa um acréscimo de informação, mas tão somente uma reiteração expressiva. Também serve, é claro, ao preenchimento métrico do verso. 

         A abundância de adjetivos é apenas um traço do estilo do paraibano que caracteriza o excesso acima referido. Há muitos outros, que estudamos com detalhes em nossa tese “O evangelho da podridão”. Eles confirmam o quanto é relativa a máxima de que “escrever é cortar”.

          Certamente ela cabe melhor no domínio estritamente redacional, em que se tende ao “grau zero da escritura”. Ou seja, em que se busca a transparência das ideias e o rigor das informações, numa escrita tanto quanto possível destituída de recursos literários. No domínio da criação artística, é preciso ser prudente ao “escoimar” o texto do que nele aparentemente sobra. Muitas vezes está nas sobras, nas palavras a mais, o essencial do que o autor quer dizer.

O poder da frase