quarta-feira, 29 de maio de 2019

Gripado

A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastimável. Não dá para fazer selfie com o nariz vermelho e os olhos injetados. E o pior é o defluxo que dele emana (prefiro o termo “defluxo” ao escatológico “catarro”).
A medicina criou um nome pomposo para designar a gripe – influenza, que vem do italiano. É um termo simpático e que até nos dá vontade de passar pela experiência. Parece haver certa nobreza numa  afecção cujo nome evoca a pátria de Dante e Michelangelo. Mas a empolgação acaba quando vêm os espirros e a febre (ou melhor, a febrícula, com esse sufixo derrisório). Seu moral começa a balançar, e o corpo pede cama.
O bom é que, deitado, você momentaneamente se subtrai à atual confusão político-institucional do Brasil. Esquece por um tempo a reforma da Previdência, o Coaf (a única coisa que lhe evoca essa sigla é o cof-cof da tosse), a disputa entre os três Poderes (bem que os próceres da República mereciam uma gripe bem forte para lhes moderar a vaidade e a ambição. Não dá para gritar “Quem manda sou eu!” com os olhos lacrimejando). O espírito vagueia, mas a influenza não se esquece de continuar o seu trabalho. Inerte e sorumbático, você não passa de um espectro mucoso a passar o lenço (o quarto já) pelo nariz.
Então a mulher vem e lhe oferece um chá. Pergunta se você quer vitamina C (pelo seu gosto, você tomava todo o alfabeto). Um antitérmico também ajuda. É o máximo que se pode fazer contra uma patologia para a qual não há remédio – a não ser humildemente esperar.
A gripe é sobretudo um teste de paciência. Não há como evitá-la, mesmo com as vacinas. Periodicamente um exército de novos vírus ameaça o nosso organismo para demonstrar o quanto somos suscetíveis às agressões do ambiente e à roda das estações. A gripe modera a nossa soberba e, se nos põe na cama, é para que depois nos levantemos humildes e mais compenetrados da nossa humana condição. Se é inevitável adoecer, que seja ela a nos fazer dar o devido valor à saúde.

"Jenifer"

De repente acontece o que não podia nem devia acontecer. Ressentidos e perplexos, falamos do imponderável ou do acaso.
O acaso não tem deliberação; é de alguma forma produto do nosso descaso. A inflexível mão do destino sempre depende de uma mãozinha nossa. Se um avião voa de forma irregular, não se pode esperar que bons ventos o conduzam ao término da viagem.
Eu conhecia pouco Gabriel Diniz, mas admirava-lhe o rock eletrizante e de fácil apelo. “Jenifer”, seu maior sucesso, reflete a energia que ele costumava imprimir a suas interpretações e parece que só poderia ser cantada por ele. Transformá-la num réquiem, como estão fazendo agora, é uma boa maneira de preservar a sua vigorosa imagem.
O nome, Gabriel, induz à tentação literariamente medíocre de dizer que “mais um anjo adentrou os espaços celestiais”. Menos do que o clichê, no entanto, o que desautoriza dizer isso é imaginar que o cantor não gostaria nada da comparação. Anjo, ele, com aquele espírito travesso e o gingado demoníaco que inflamava as meninas?
Digamos apenas que morreu um rapaz alegre e de grande talento artístico. E que os responsáveis por essa morte têm que pagar aqui.

sábado, 11 de maio de 2019

Divagando se vai longe (17)


Nada pode acontecer de pior a uma pessoa do que obter aquilo que mais deseja. Atingir essa meta é perder a motivação para alcançá-la e se contentar com objetivos secundários, que vão motivá-la pouco. Além disso, como em todo desejo há muito de ilusão, a meta alcançada sempre se revela menos grandiosa do que quando não a conquistamos. O prejuízo é então duplo – pelo pouco que representa o que desejávamos e pela insignificância do que nos resta alcançar.
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A amizade é por excelência um sentimento desinteressado. Nela não interfere o sexo nem a cumplicidade. Queremos um amigo pelo prazer de ter alguém perto. Alguém com quem conversar ou ficar em silêncio. Alguém que nos compenetre tão profundamente da ideia do Semelhante, que nos permita partilhar sem reservas a nossa humanidade.
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A frustração resulta de um malogro da vontade – e o depressivo não tem vontade. Seu propósito, aliás, é “querer” alguma coisa, ou seja, ter vontade de alcançá-la, possuí-la. Sua frustração decorre, não de não ter alcançado algo, mas de não se propor a isso.
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As palavras não têm sentido por si. Cada qual as interpreta como as sente. Dá-lhes um significado em função das próprias crenças. Isso explica, por exemplo, o valor que tem para um cristão uma passagem da Bíblia; para um muçulmano, um versículo de Maomé; ou, para um marxista, um trecho de “O capital”. A fé necessita de uma semântica para se expressar (e mesmo se edificar). Acreditar numa religião ou num sistema político é acreditar no sentido que os traduz. Nem sempre essa tradução é clara — às vezes precisa mesmo de alguma obscuridade para preservar o “mistério” que os torna imunes à razão.
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Amigos gostam de me perguntar se sou direita ou esquerda. Acho complicado escolher um lado ou outro sem saber o que objetivamente está em causa (para falar a verdade, sempre preferi entrar pelo meio). Mas já que eles insistem, vamos lá. Defino-me como um direitista gauche. E quem quiser que (des)entenda.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Acerto na mosca


“Estou com o presidente; é preciso legalizar o porte de armas. O mundo está muito violento, e a gente tem que se defender das ameaças que sofre todo dia. Não que eu vá sair por aí dando tiros; só farei isso em caso de necessidade. E convenhamos que eles são muitos. Ontem, por exemplo, notei um sujeito olhando fixamente para as pernas de Odete, minha mulher. Ela tem de fato pernas bonitas e gosta de usar uns vestidos curtos para mostrá-las. Até já brigamos por causa disso, mas eu cedi depois de ela dizer que não era justo que eu, por um ímpeto machista, buscasse “suprimir” uma parte do seu corpo. 
“A gente estava numa lanchonete, e um sujeito começou a fixar os olhos nas pernas dela. Parecia que eu, o marido, não me encontrava ali. Como ele era parrudo, eu não quis encará-lo, pois sabia que no braço ele facilmente ia me vencer. Tive que engolir em seco e ficar me roendo por dentro. Ora, isso não aconteceria se eu tivesse no bolso um 38 ou mesmo um 22. Nem era preciso tocar no tal sujeito e correr o risco de ser agredido. De uma distância segura, eu o botaria para sempre no chão.  
“Em várias ocasiões, tive o impulso de fazer coisa semelhante no trânsito. Ainda anteontem um cara passou tão rente ao meu carro que quase raspou um paralama dianteiro. Foi uma dessas cortadas provocadoras, uma espécie de chega pra lá automotivo (se é que essa expressão existe). Me apressei para  revidar, e quando emparelhamos os carros eu o chamei de fdp (tradução no Google). Pois em vez de escutar calado, já que não tinha razão, ele teve o desplante de me mostrar o punho e empinar o dedo médio. Depois de ter feito o que fez, ainda vinha me ofender com pornografia. Ah se eu tivesse ali uma pistola ou coisa semelhante! Acertava aquele dedo para o seu dono aprender a respeitar um homem. Desarmado, só me restou voltar vermelho de raiva para casa. Lá Odete me fez um chá de camomila (o Rivotril tinha acabado) e aos poucos fui me acalmando.
“Se as provocações viessem apenas da rua, estava tudo muito bem. O problema é que elas também acontecem no lugar onde a gente mora. Vivo num prédio não muito disciplinado, e o meu vizinho de cima tem o mau hábito de ouvir música com os amigos até altas horas da noite (e o que ouvem não é Mozart nem Beethoven). Já reclamei ao síndico várias vezes, mas o vizinho no máximo espaçou os encontros. Quando não é isso, arrasta móveis de madrugada. Penso que é para nos provocar. Semana passada não consegui dormir por causa do barulho. A vontade que tive foi subir lá e dar um tiro nele. Um, não; uns sete. Garanto que nenhum júri me condenaria, pois todos sabem o que a supressão do sono faz no cérebro de uma pessoa. Insone, insano – alguém já disse (ou fui eu mesmo, sei lá). O fato é que o tal vizinho era mais um que eu teria despachado para o outro mundo se possuísse em casa arma de fogo.
"Além de aborrecimentos desse tipo, vivo hoje na iminência de ter a casa invadida por marginais ou ser assaltado na rua. O porte de armas vai me proteger dessas tenebrosas possibilidades. É claro que eu terei que fazer um curso de tiro, pois esse pessoal, além de bem mais armado, exercita cotidianamente a mira. Mas isso não será problema; para ser coerente com a nova filosofia (essa deverá permanecer nos currículos escolares), o governo certamente estimulará a criação desse tipo de curso a fim de adestrar o cidadão. Só vai sobreviver quem atirar primeiro. Repito que estou com o presidente e não abro (a não ser fogo)." 

Dizer pelo excesso