terça-feira, 21 de setembro de 2021

Bolsa Feiura

 

Li não sei onde que se está pensando em criar no Brasil o Bolsa Feiura. Segundo o idealizador do projeto, vivemos numa sociedade que valoriza muito a beleza, e os que não a têm competem em desigualdade de condições com os bonitos. Uma forma de reparar essa injustiça seria destinar aos feios determinada quantia para que eles pudessem de alguma forma reduzir os efeitos da sua condição. Com o dinheiro comprariam produtos de beleza, frequentariam clínicas estéticas ou mesmo, se fosse o caso, fariam plástica.

Certamente isso vai gerar muitas críticas. Vão dizer que não tem sentido propor tal ajuda quando há no país milhares de indivíduos sem teto ou com fome. Esse argumento, contudo, é fácil de refutar. A feiura não é um problema social (a não ser, talvez, na China), mas entristece ou deprime muitas pessoas, o que indiretamente afeta o setor produtivo do País. Quem, sentindo-se por dentro “um lixo”, tem ânimo para fazer a contento o seu trabalho?

            Essa história de “estar bem consigo” tem fundamento. Se o espelho não nos aprova, tendemos a ignorar os outros e pouco nos importamos com o mundo. Em alguma medida, Freud tem razão: o universo é projeção do ego. Tendemos a moldá-lo conforme nossa disposição interior.

Inclinamo-nos para o belo porque, segundo Stendhal, a beleza é uma promessa de felicidade; isso quer dizer que a feiura promete o oposto. Vinicius segue a mesma pisada ao afirmar, pedindo perdão às muito feias, que beleza é fundamental.

Como veem, o Bolsa Feiura tem um sólido aval literário (a não ser por Quasímodo, que compensa a corcunda com a beleza interior – mas quem liga para ela hoje?). O projeto, se aprovado, não mudará ninguém mas servirá de inestimável consolo. Vai reparar um pouco o descuido (ou mesmo a imperícia) com que a natureza molda certas fisionomias.

O problema de um projeto como esse em nosso país é que poucos resistem a dinheiro que vem do Estado. Seguindo a prática do jeitinho, a maioria vai bolar artifícios para parecer mais feia do que é e ter direito à cota. Talvez isso produza um decréscimo na nossa vaidade, levando à bancarrota o setor de produtos estéticos. Haveria protestos, demissões – e aí, sim, a coisa ficaria feia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Sobre pentes e cabelos

 

          O homem primitivo não usava pente. Certamente não lhe ocorria a hipótese de que os fios desgrenhados na sua cabeça poderiam se ajustar à caixa craniana de um modo, digamos, mais decente e estético. Quando isso aconteceu (com a inevitável influência da mulher, claro), ele notou que passar o minúsculo objeto pelos cabelos também propiciava um ganho adicional: retirar parte dos piolhos que lhe infestavam o couro cabeludo.  

          Teorias à parte, o pente ganhou ao longo do tempo diversos formatos e acabou se constituindo num dos símbolos da civilização. À medida que nos distanciamos da barbárie primitiva, fomos aprimorando o seu desenho e utilizando em sua confecção novos materiais para, com isso, dar diferentes feições à nossa juba – por mais exígua que fosse.   

           A coisa chegou a tal pondo que estar despenteado, ou mesmo mal penteado, virou uma marca de desrespeito social. Assim como compomos as vestes, precisamos dar aos pelos da cabeça uma aparência decente a fim de melhor transitar em sociedade. Muito da rejeição aos jovens nos anos 1960 veio de eles – na tentativa de imitar os Beatles, por exemplo – deixarem os cabelos crescer e se manterem despenteados (é bom lembrar que o conjunto inglês ostentava um desalinho aparente, pois tinha a rebeldia como imagem).      

          Nada tenho contra os pentes; eles é que não se dão bem comigo. Tanto que, na primeira oportunidade, costumam escapar da minha vista e sobretudo do meu bolso. Não conto as vezes em que isso ocorreu, e o pior: nunca descobri “como” nem “por que” isso ocorre. O fato é que um belo dia (para falar a verdade, nem tão belo assim), enfio as mãos nos bolsos e não dou com eles. Escarafuncho as gavetas e prateleiras onde costumo guardá-los, e nada.

          Esse tipo de acontecimento já foi motivo de conflitos aqui em casa. Para preservar a harmonia conjugal, minha mulher passou a comprar cartelas com vários pentes. Esperava com isso compensar a minha tendência a perdê-los.

           Mas tudo fica em paz por um tempo, e invariavelmente chega o momento em que se repete o fenômeno: meto as mãos nos bolsos e não consigo encontrar o meu. Envergonhado, peço um de empréstimo a ela, que aproveita a ocasião para criticar o meu descuido. De novo?! Como pode uma pessoa ser tão desatenta?! Deve ter a cabeça no mundo da lua! 

           Não, minha cabeça está aqui mesmo, embora despenteada. O problema é que ainda não se descobriu um meio de guardar com segurança, e manter sempre ao nosso alcance, esse objeto minúsculo e esquivo com que nos habituamos a acomodar a rebelde pilosidade que se deposita sobre a nossa caixa craniana.

          Parece haver um simbolismo na tendência que tem o pente de desaparecer da nossa vista. A facilidade com que o deixamos cair, não se sabe onde, mostra que o acaso não incide apenas nos grandes gestos humanos. Também atua em eventos banais, cujo efeito é gerar pequenas aporrinhações no espaço doméstico. O somatório delas, se não conduz à tragédia, pode aos poucos azedar o convívio. Precisamos então fazer de tudo para evitá-las.

         Para aliviar o clima, prometo à mulher não mais perdê-los – mesmo sabendo que será difícil cumprir a promessa. Ouras perdas haverá, e serei novamente objeto de ácidas repreensões. Consola-me saber que, se os procuro em bolsos vazios, é porque ainda preciso deles. Nem que seja para ajeitar os poucos fios que me ligam a um tempo no qual eu me orgulhava de uma vasta cabeleira. Esse pensamento me consola e até me encoraja a proclamar, na surdina: “Vão-se os pentes e fiquem (ainda que ralos) os cabelos!”.

O poder da frase