domingo, 20 de outubro de 2013

Sobre a Criação

        Segundo o criacionismo, o mundo foi criado por Deus, mas isso de modo algum O recomenda. É mais sensato admitir um parceiro e imaginar que Deus queria fazer o mundo perfeito, à sua imagem, mas foi atrapalhado por um assistente inábil. Esse modo de ver se compatibiliza com os inúmeros desacertos que vemos nele. O maior desacerto é o próprio homem, esse bicho marcado pela dualidade do Bem e do Mal.
         Há quem atribua nossas lacunas e arestas ao material de que fomos feitos – o barro. Por que Deus não usou uma matéria mais resistente? Ou mesmo um desses produtos modernos, como o silicone? Algumas mulheres procuram hoje reparar o equívoco. No entanto, por mais que plastifiquem a anatomia, a base continua lá -- envelhecendo e se preparando para voltar à lama.
         Deus usou o que tinha à mão, e só dispunha de sete dias.  Era muito pouco para providenciar a natureza com suas árvores, rios, vales, montanhas. Como seria possível, nesse prazo exíguo, trabalhar cada artefato com esmero? Um dos enigmas da Criação é saber por que Ele, sendo o patrão de si mesmo, trabalhou num prazo tão curto. Talvez não gostasse do que estava fazendo.
         Como se não bastasse a exiguidade do prazo, Deus resolveu fazer o homem no último dia, ou seja, quando já estava exausto e tudo que queria era descansar (o trabalho foi tanto, e sob pressão, que Ele descansa até hoje). O efeito dessa pressa é que Adão foi um protótipo mal testado. Isso constituiu uma brecha para o descalabro que se seguiu: veio a Serpente, assessorada por Eva (ou vice-versa), e levou o primeiro homem a provar do fruto proibido. Adão pecou e logo descobriu, envergonhado, que estava nu -- o que é estranho. Como ele poderia se perceber nu se nunca tinha usado roupa? O fato é que devido a esse primeiro pecado perdemos o Paraíso e nos tornamos mortais.
      Geralmente se considera a morte a pior coisa que pode nos acontecer, mas há nisso um contrassenso. As pessoas aceitam de bom grado que o homem é um ser vivo – nasce, alimenta-se, cresce – mas acham um absurdo que ele vá morrer.  Ou seja: querem da biologia apenas o que ela traz de bom. É como se depois de nascidos e já formados devesse ocorrer em nós um cancelamento das leis naturais e alguma forma de transcendência viesse nos animar; alguma coisa que daria a nossas células a eternidade. Infelizmente não é assim, de modo que o melhor é tratar de comprar o jazigo (pode ser em prestações). Tem gente que deixa para fazer isso literalmente “na última hora”, o que não é aconselhável. Comprando logo pode-se escolher o lugar e, com sorte, a vizinhança.
       Teorias como a do Big Bang sugerem que a Criação está em curso. O universo continua a se povoar de luas, estrelas, galáxias, buracos negros. E agora, aparentemente, sem o controle divino. Deus pretendia que o cosmo se resumisse à Terra, ao Sol e a alguns poucos corpos celestes, mas parece que perdeu o controle. Outros dizem que Ele continua descansando, mas um dia acorda a vai dar um sentido a tudo isso. Só nos resta esperar.   


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Na bagagem

         Quando há algumas décadas troquei Medicina por Letras, ouvi de um colega que iria morrer de fome. O motivo dessa lúgubre profecia não era outro. Sendo médico, eu ensinaria se quisesse. Caso me licenciasse em Letras, só teria uma alternativa -- ser professor.

      Vez por outra penso na ironia daquele comentário: prognosticar a fome justamente a quem se destinava a “alimentar o espírito” dos outros (não é isso que dizem dos que se dedicam ao magistério?).

      Felizmente o colega errou o vaticínio e aqui estou eu hoje, vivo e alimentado. Se não sou gordo, é por questão de estrutura. E não posso dizer que tenho comido o pão que diabo amassou.

       Nossa maior compensação, de fato, não é o dinheiro. É deixar nos alunos a nossa humilde marca. Saber que em sua bagagem de homens e profissionais haverá, mesmo imperceptível, um pouquinho de nós.

Alunos


         Geralmente são os alunos que julgam o professor. Eles quase sempre o veem como um símbolo de poder e não perdem a oportunidade de lhe apontar manias, trejeitos, falhas físicas ou morais.
         Mas o oposto também é verdadeiro. O professor observa com espírito crítico seus alunos, conhece-lhes as virtudes e as mazelas. De tanto vê-los ao longo dos anos (pois, no fundo, eles são sempre os mesmos), sente-se até capaz de elaborar uma tipologia. E quais são os tipos mais comuns?
         Há o aluno esforçado, que não deve ser confundido com o inteligente. O esforçado é cuidadoso com as tarefas, copia tudo que é dito na classe e geralmente se senta na primeira fila. Faz questão da proximidade com o mestre, como se deste emanasse um fluido que lhe aprimorasse o espírito.
          O esforçado procura superar com aplicação o que lhe falta em brilho. E por vezes se sai melhor do que o inteligente, que termina relaxando os deveres. Grande parte dos médicos, políticos e funcionários de carreira é feita de esforçados. Eles quase sempre vencem na vida, enquanto o inteligente pode chegar a extremos de sucesso ou fracasso. Seu destino, como o da mulher muito bonita, é uma incógnita.
         Outro tipo interessante é o desafiador. Ele não está na classe para aprender, mas para encarar um duelo pessoal com o mestre. Por um ressentimento que Freud explica, tende a contestar tudo o que o professor diz. Talvez a origem dessa rivalidade seja complexo de Édipo mal resolvido; o desafiador tende a projetar em quem lhe ensina seus conflitos com o pai.
          Há o sossegado, para não dizer preguiçoso, que assiste às aulas pensando noutra coisa. Na balada do fim de semana, por exemplo. Ele estira as pernas e quase se deita na cadeira. Faz questão de conforto, pois é preciso compensar no corpo os penosos sacrifícios infligidos à mente.
         Há os tímidos, que são quase todos. Esses enrubescem até quando respondem “presente”. A diferença é que uns enfrentam o olhar crítico dos colegas e dizem o que precisa ser dito, enquanto outros penosamente se deixam emudecer.

     (Em “A rosa fenecida”, p. 98)
     Leia o livro completo em http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo-/

Dizer pelo excesso