domingo, 19 de janeiro de 2020

Arte e liberdade


Platão não queria os poetas na República. Considerava-os perturbadores da ordem. A ideia de que a arte contém o fermento da desordem é velha e tem servido de justificativa para que governos totalitários (de esquerda ou de direita) busquem limitar ou dirigir as manifestações artísticas. O pretexto para isso é a vinculação que elas deveriam ter com ideologias como a do nacionalismo.
A arte não pode se comprometer com projetos nacionais, que servem basicamente a interesses do Estado. Ela é a “região da liberdade” e deve atender aos anseios dos artistas; por meio das obras eles expressam suas angústias e perplexidades (que são as de todos nós). Fazem, assim, com que nos conheçamos melhor.
    A função da arte, como diz Alain de Botton, é proceder à “crítica da vida”. Isso não se faz sem liberdade e compromisso com os valores éticos.
   Quem se propõe a doutrinar moralmente sobre a arte ou não entende nada de estética ou está mal-intencionado. Por mais que acene ao heroísmo, ao sentimentalismo ou ao sacrifício em prol da nação, não esconde seu nefasto propósito de retirar do homem o que o peculiariza — a liberdade de pensar e a possibilidade de traduzir as inquietações que lhe vão na alma.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A outra face

Tem sido muito comentado o tapa que o papa Francisco deu na mulher que tentou agarrá-lo. O gesto agressivo e raivoso do Sumo Pontífice surpreendeu os que se acostumaram com a fala mansa e a doçura estampada em seu rosto.
Como classificar aquele rompante de brutalidade? O gesto foi lamentável, claro, pois do representante maior de Cristo na Terra se espera tolerância e boa vontade com os que o importunam ou ofendem. Foi no mínimo um descompasso entre o homem e o seu papel.
Mas (e aqui se invoca um conhecido preceito cristão) “não julgueis para não serdes julgados”. Se por um momento Francisco esqueceu que era “o papa”, terá havido razões para isso. Entre elas, certamente, as pressões que vem sofrendo por parte de segmentos conservadores da Igreja.
O papa tem assumido posições corajosas, como a de denunciar e punir os pedófilos. Quer resgatar a imagem da instituição e reconquistar a confiança dos que, decepcionados com os escândalos sexuais, dela vêm se afastando.
Sou um admirador de Francisco e gostaria de não ter assistido àquela cena. Presumo que muitos católicos têm o mesmo sentimento. Vê-lo perder o controle tisnou um pouco a sua imagem. Os que agora dele se aproximarem farão isso com prevenção e algum temor. Sabe-se lá se o homem vai estar num dia ruim!
        O consolo é que Francisco não estará só. A grande massa dos cristãos vai entender seu gesto “humano, demasiadamente humano” e, nesse momento delicado da sua vida, rezará por ele. O comum é ocorrer o contrário, mas há circunstâncias nas quais se inverte essa corrente e o papa é que precisa de orações.

Dizer pelo excesso