terça-feira, 13 de setembro de 2022

Andarilho urbano


           Já fui um adepto da corrida. Comprei o livro de Kenneth Cooper e o li com aplicação, procurando seguir seus conselhos para melhorar a capacidade cardiorrespiratória e ganhar mais anos de vida. Costumava acordar cedo para trotar cinco ou mais quilômetros na calçadinha da praia. Quando cursava pós-graduação no Rio participei da corrida Leblon-Leme e não fiz feio, embora terminasse o percurso esbofado como um touro de arena antes do golpe fatal.

A corrida se tornou para mim uma espécie de vício; era impossível abdicar do prazer propiciado pela endorfina, que chamei num texto de “vinho do suor” (nesse tempo eu queria ser um literato e achava que só chegaria a isso se produzisse imagens esdrúxulas). Com o tempo, fui aumentando a frequência das corridas e estendendo o trajeto. Os joelhos se ressentiram do excesso. Certa manhã, depois de um exercício mais puxado, senti uma dor violenta no joelho esquerdo e tive que parar. Voltei para casa mancando e tratei de procurar um médico, que foi curto no diagnóstico: lesão meniscal. Passei por fisioterapia e infiltração, mas o que resolveu mesmo foi a mesa cirúrgica.  

Após essa traumática experiência, deixei a corrida e passei a caminhar. Com o tempo fui me dando conta dos benefícios dessa prática mais modesta, que exercita o copo e ao memo tempo o poupa dos excessos. O próprio Cooper, num dos seus últimos livros, desencoraja as corridas e aconselha que se caminhe. Tenho confirmado a sabedoria desse conselho. No ato de caminhar é menor a preocupação com o desempenho, o que libera a mente para reflexões ou simples devaneios. Daí ele ser frequente em filósofos e escritores.   

Rousseau, por exemplo, costumava fazer longas caminhadas. Durante elas amadurecia as ideias que iria incorporar ao seu sistema filosófico – ideias sobre a natureza humana, que ele considerava a priori boa, e a importância da educação para ajustar o homem à sociedade. Montaigne também percorria longos trajetos antes de se enfurnar na sua torre e escrever os Ensaios. Machado de Assis, geralmente acompanhado por Dona Carolina, preferia um passeio pelas calçadas do Cosme Velho após o jantar.

As caminhadas não precisam ocorrer na praia ou em algum local ermo. Podem acontecer mesmo no burburinho da cidade, entre gente apressada e automóveis pestilentos. Nesse caso pode-se nadar (ou melhor, andar) contra a corrente, sem pressa, flanando. Foi Walter Benjamin quem chamou a atenção para o flâneur; a partir de escritos baudelairianos, ele cunhou esse termo para designar o misto de andarilho e observador que vaga pelas grandes cidades.  

Flanar é andar a esmo. É poetar com os pés. É ser um peregrino sem promessas, a não ser a de voltar ao ponto de partida depois de distrair o espírito com a gratuidade do percurso. Quem flana se liberta por um tempo de deveres e obrigações. Vai por ir, e não para cumprir um roteiro com uma meta específica. A mente também vagueia, deixando que os pensamentos fluam sem aparente conexão. Uma ideia puxa outra ao sabor do inconsciente, uma imagem desencadeia outra estimulada pelo que é visto ao longo do percurso. 

Seguir por uma rua que a gente costumava percorrer desperta recordações que alegram ou entristecem. Outro dia, num dos meus passeios, deparei-me com uma casa onde moravam umas garotas que atraíam os meninos do bairro. Eram três, uma mais loura e espevitada do que as outras. A casa tem agora paredes enegrecidas, parte do reboco desfeita e mato crescendo onde antes foi o jardim. Como estariam os que nela moravam? Voltei para casa num vagar melancólico que me fez meditar sobre a inclemente passagem do tempo. Coisa de flâneur.


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Croquis (3)


                                                        1

As palavras têm significados. Escrever bem é juntá-las da melhor maneira para que tenham um sentido. Como não há palavras neutras, o mau emprego ou o excesso delas pode arruinar esse propósito. Daí a necessidade de suprimir as que não funcionam, cortá-las sem clemência, a fim de não comprometer o valor das que contam. O texto é como um jardim; quanto mais se poda, melhor floresce.   

                                                      2         

             O corpo pode ser tanto objeto de enlevo e prazer sexual quanto instrumento de ofensa e agressão. Cheiros, orifícios, excrementos podem servir de referências grosseiras para depreciar os outros. Nesse caso o corpo anatômico triunfa sobre o corpo erótico ou pulsional. A isso corresponde o vocabulário dito chulo (pornográfico), que mostra sem disfarces o lado feio da nossa anatomia.

                                                      3

            A devoção conforta independentemente do objeto a que se destina. Subtrai-nos à gratuidade, que sempre é motivo de inquietação. A entrega a uma crença, um projeto, uma pessoa dá-nos a sensação de que possuímos a nós mesmos. Peregrino da liberdade, o homem parece que só se tranquiliza quando a ela renuncia. Mas é preciso escolher bem em prol de quê fará isso.

                                                 4

O humor comporta alguma dose de sadismo (ri-se de algo ou de alguém). Mas é um sadismo benigno, que aponta falhas e desproporções para corrigi-las, e não para satisfazer a perversão. O sádico inflige dor a outrem visando unicamente ao próprio prazer. O humorista quer que os outros riam.

                                                 5

           No jogo da vida, chega o dia em que o “tempo regulamentar” esgota e ficamos... por conta do juiz. Só nos resta torcer para que ele vá esquecendo o apito.

                                                 6                               

Os livros que nos marcaram são por nós continuamente reinterpretados. Não precisamos relê-los para lhes atribuir novos sentidos. À medida que deles nos distanciamos no tempo, mais os sentimos próximos. A maturidade nos faz descobrir o que não tínhamos percebido em leituras anteriores. Os bons livros são sementes que em nós se multiplicam e nos fazem crescer.

                                              7          

Falar dos outros é catártico. Quando fazemos isso, nos compensamos do que não conseguimos fazer (e ser). Alguém já se referiu à utilidade psicológica da fofoca, que nem sempre é verdadeira (mas se for, melhor). A fofoca mostra que o ser humano vive em competição com os outros. Saber de um traço negativo alheio traz-lhe uma obscura sensação de triunfo.

                                                 8

           Vejo amigos se ressentindo de serem pouco ou nada lidos por seus colegas escritores. O problema é que hoje muitos escrevem, e o tempo é curto para ler tanta gente. Além disso, quem escreve está mais interessado em ser lido do que em ler. Ainda assim, é preciso (e inevitável) escrever. Mesmo que a recepção, o mais das vezes, se transforme em decepção.

                                                 9

             Se muitos pensam, poucos dominam. É claro, então, que a disseminação do pensar não interessa aos dominadores. O pensamento é por excelência o exercício da liberdade. Foi graças a ele que o ser humano passou a conhecer, e eventualmente dominar, os mecanismos da Natureza. Diante disso, não surpreende que os que pretendem se perpetuar no poder desprezem as práticas e instituições que aprimoram no ser humano a capacidade de refletir. O que dá a medida de um governo democrático é o quanto ele investe em ciência, cultura e educação. Quanto mais burro o povo, mais ele se presta ao cabresto e menos protesta contra os que querem lhe montar no lombo.

                                             10

        O ateu afirma Deus na medida em que, negando-o, exerce o direito à liberdade que lhe foi conferido pelo Criador. A grandeza do ser humano não se mede pela crença cega numa divindade, mas sim por quanto essa crença o faz valorizar o próprio homem. Fora do humanismo não há salvação. 

O poder da frase