terça-feira, 28 de março de 2023

A razão e o sonho

 

Há dias a mídia veiculou a notícia de um casal londrino que ganhou um prêmio bilionário na loteria. Tanto quanto haver ganhado o prêmio, o que chamou a atenção foi a reação dos dois. O marido, após receber a notícia informando a premiação, esperou que a mulher acordasse para lhe comunicar o fato. Já a mulher, depois de informada, tomou calmamente seu café e foi para a repartição. Exemplo melhor da fleuma britânica não poderia existir.

Fico imaginando a reação de um casal brasileiro a notícia semelhante. O homem, claro, não esperaria que a esposa despertasse. Invadiria o quarto aos berros:

– Alzira, acorda! Acertei na loteria! Estamos milionários!

          Assustada e um pouco zonza, Alzira levaria um tempinho para deixar cair a ficha:

– Hem?... Loto? Tem certeza, Toledo?

– Claro, veja aqui no celular! A partir de hoje, você não precisa ir mais para o trabalho. Nem eu!

O que ocorreu com o casal londrino é o sonho dos milhões de brasileiros que semanalmente vão às casas lotéricas. A probabilidade de acertar as dezenas é mínima, conforme demonstram cálculos matemáticos, mas isso não constitui razão suficiente para demover a esperança. O que motiva os apostadores é o sonho de uma nova vida, sem as aporrinhações do trabalho e as limitações que o pouco dinheiro impõe à ânsia de consumo.

Certa vez fiz por cima a conta de quanto ganharia alguém que, em vez de jogar semanalmente, investisse o dinheiro em caderneta de poupança ou aplicação semelhante. O resultado me surpreendeu; o apostador teria após alguns anos uma pequena fortuna. Ela não o tonaria milionário, mas daria para comprar alguns bens valiosos. 

           O problema é que uma providência desse tipo, ditada pela racionalidade, tiraria o que nas apostas é fundamental: a emoção, a expectativa, a possibilidade de conviver com a esperança. Por que se contentar com menos, ainda mais obtido depois de um longo prazo, quando é possível abocanhar o máximo?

          Além do mais, o desejo de ganhar imprime ao jogo uma certeza que desconsidera qualquer possibilidade de fracasso. A aposta é um testemunho de fé e tem na irracionalidade a sua força. Uma das melhores explicações para ela encontrei nesta passagem de Bertrand Russel:

         “Quando alguém aposta num cavalo, esse alguém está seguro de que ganhará. Quando os indivíduos se contemplam a si próprios, eles têm certeza de que são ótimas pessoas, animadas de uma alma imortal. Para cada uma destas crenças ou afirmações, as provas podem ser realmente muito pequenas, mas os nossos desejos despertam uma quase irresistível tendência para crer. Os seres humanos acham difícil, em todas as esferas do conhecimento, fundamentar as suas crenças em fatos, e não em desejos.”

          O que ouvi certa vez de um sujeito na porta de uma casa lotérica complementa a argumentação do matemático e filósofo inglês. Era um homem simples, com quem puxei conversa e do qual soube que jogava “religiosamente” (o advérbio é bem significativo) havia muitos anos.  Marcava sempre os mesmos números, o que me pareceu (sem nenhum fundamento, claro) tornar ainda mais difícil o acerto. Quando ponderei isso, ele respondeu.

           – Eu sei que não ganho, mas posso ganhar. Então vale a pena vir aqui toda semana.  

           Saber que não ganha é uma percepção racional. Continuar tentando por remotamente “poder ganhar” reflete um desejo que vai de encontro à convicção objetiva. Mostra que muitas vezes preferimos desconsiderar as evidências a deixar de continuar sonhando.

A sanha de vencer

 

A mídia tem mostrado com uma frequência preocupante a violência no esporte. Cenas de murros, tiros e facadas invadem os noticiários televisivos, fazendo-nos admirar que gente pacífica ainda entre em campos de futebol. O mais doloroso é que os alvos nem sempre são os torcedores, mas pessoas que eventualmente circulam pelas cercanias dos estádios.

O esporte existe para canalizar e reduzir a violência, mas o que temos visto ultimamente é a violência transformada em esporte. Um dos motivos para isso é a mística atribuída a certos clubes, cujos fanáticos torcedores os têm como religiões. Ou melhor, têm-nos como seitas, pois as religiões exercem um papel comunitário que essas agremiações estão longe de exercer.

A identificação entre os componentes da torcida existe mais pada excluir os diferentes do que aproximar os semelhantes. Ser Flamengo, por exemplo, é rechaçar todos os que não torcem pelo clube; é considerar a derrota como uma agressão imperdoável pela qual os torcedores do time vencedor devem pagar. Às vezes com a vida. 

Nessa perspectiva, perde-se totalmente a noção do valor e a consideração da qualidade. Deixa-se de reconhecer a superioridade do adversário, mesmo ela existindo. A derrota infligida por ele não terá se devido ao mérito, mas a alguma artimanha do “juiz ladrão”. 

Querer ganhar sempre é uma deformação psicológica. Vai de encontro à percepção de que é natural na vida a alternância entre vitória e derrota. Só um egocentrismo desvairado pode levar alguém a achar que se subtrai a essa lei. 

Há algum tempo o pleito presidencial americano nos ofereceu um vergonhoso exemplo dessa presunção. Contra todas as evidências, Donald Trump não aceitou a derrota. Alegava roubo na contagem dos votos para negar o resultado das urnas, desmoralizando com isso a democracia americana. O resultado foi o que se viu: invasão do Capitólio com feridos e mortos. 

A comparação com a política não aparece aqui à toa. Ela tem em comum com o esporte a disputa e a ânsia de sobrepujar o oponente a qualquer preço.  Em ambos os domínios há uma guerra que milênios de civilização deveriam ter nos ensinado a sublimar.

Não foi isso que ocorreu, e certamente jamais ocorrerá. Nas disputas pelo poder ou pelo primeiro lugar no pódio, o que prevalece é o velho impulso de suprimir o outro ou mostrá-lo inferior. Qualquer coisa menos do que isso soa como uma desfeita ao ego soberano, que até hoje nenhuma religião conseguiu domar.

Relato de uma perda

 

Nada angustia mais os seres humanos do que a sua condição de mortais. A morte é o desfecho para o qual todos marchamos. Graças a ela criamos religiões, artes e demais recursos da fantasia na vã tentativa de vencê-la. Enquanto não chega, vamos nos virando neste jogo múltiplo e incompreensível chamado vida. Levianos, às vezes chegamos a esquecê-la, até o momento em que ela projeta em nós o hálito sombrio.

Recentemente tive essa experiência ao perder a minha sogra. Já com a idade avançada, ela tinha problemas de hipertensão e artrose em várias articulações, o que a mantinha praticamente imobilizada. Vivia (se é que se podia chamar a isso viver) entre a cama e a mesa, onde fazia sem muito gosto suas refeições. Vez por outra colocavam-na numa cadeira, próximo à calçada, de onde olhava a rua e cumprimentava os conhecidos.

De repente apareceu com falta de ar. Pensou-se que era efeito de uma chuvinha que a surpreendera num daqueles instantes de espairecimento, mas era coisa mais grave, e de nada adiantaram as nebulizações. Seu coração começava a dar sinais de falência e horas depois parou. 

A par da perplexidade e das lágrimas, vieram os ritos burocráticos (deles não escapamos nem na hora da morte). O corpo foi enviado ao IML, onde minha mulher respondeu a uma série de perguntas sobre as circunstâncias do óbito, até ser enfim liberado para o velório.

E então nos vimos naquela minúscula sala, circundando o esquife e cumprimentando os amigos e conhecidos que chegavam. É um lugar estranho para reencontrar parentes que há algum tempo não víamos. Mas, enfim, quem é vivo sempre aparece, enquanto aos mortos cabe perecer. A morte muitas vezes une os que a vida dispersa, talvez por ser um evento de que ninguém se livra. Perante ela nos tornamos humildes e solidários.

Após o ritual religioso e o fechamento do caixão, veio enfim o momento do enterro. Momento grave, de compungida reflexão, pois concretiza a ideia metafórica de que do barro viemos e ao barro vamos retornar. Minha sogra foi colocada onde estão os restos mortais do marido, morto há alguns anos, e houve quem visse nesse “reencontro” o selo de uma convivência marcada pela harmonia conjugal.

Enquanto os funcionários assentavam os blocos de laje sobre o caixão, eu olhava a pequena plateia silenciosa que acompanhava esse trabalho. O que passava pela cabeça de cada um era um mistério tão grande quanto saber o que fazemos aqui para chegar a tal desfecho. Dizem que não é bom pensar nessas coisas, mas como, em momentos iguais a esse, fugir à assustadora percepção do que nos espera?

Na volta para casa, nada falei que pudesse quebrar o silêncio da minha mulher. Sabia que ali, em meio a lembranças ainda vívidas, começava o lento e doloroso trabalho de esquecimento. Segundo Freud, é falando do morto que se realiza o luto. Mas a perda era recente demais para que nos animássemos a dizer qualquer coisa. Só depois, com o auxílio das palavras, iríamos recompondo-a sem maior sofrimento (e até com alegria) em nossas recordações.

Um "frango" moral

 

Causou muita polêmica o gesto do goleiro argentino Martínez na cerimônia de premiação da Copa do Mundo. Diante de câmeras do mundo inteiro, ele levou à altura do pênis o troféu que tinha acabado de receber e o exibiu de maneira ofensiva. Era, segundo disse, uma resposta aos torcedores franceses que o haviam provocado.

A atitude foi inoportuna e se transformou na nota negativa do espetáculo. Mesmo porque no palanque estavam o emir, o presidente da Fifa e autoridades como Emmanuel Macron, primeiro mandatário da nação derrotada na final. A destinação fálica dada à estatueta não deixou de ser um desrespeito a todos eles.   

Martínez foi fundamental para a vitória da Argentina, como se sabe, e pode ser que a consciência disso tenha lhe subido à cabeça. Talvez achasse que “podia tudo” na cerimônia que coroava seu time. Se foi esse o caso, ele deixou que a arrogância tomasse o lugar da modéstia, que é a marca dos grandes vitoriosos.

Li recentemente que o técnico da equipe na qual ele joga quer mandá-lo embora. Para o atleta, enquanto profissional, isso não vai ser problema; muitos times da Europa pensam em contratá-lo. Mas o repúdio por parte de quem o orienta no seu próprio país não deixa de representar um abalo moral.

A inconveniência do goleiro não se limitou ao gesto de fazer do troféu um falo. Durante as cobranças das penalidades máximas, ele provocou os jogadores franceses com dancinhas e trejeitos. Em momento crucial da partida, deixou de lado o decoro e partiu para o desrespeito aos adversários. Isso levou a que o craque Mbbapé viesse a chama-lo de “o maior f.d.p do futebol”.

O gesto de Martinez remete à velha questão do contraste que por vezes existe entre o artista e o homem. O dom e o caráter. Nem sempre o talento espelha quem uma pessoa é, e não são raros os casos de exímios praticantes de uma arte ou ofício que se revelam maus-caracteres. Nesse aspecto, a natureza não está preocupada em promover um equilíbrio.  

Mas os casos em que esse equilíbrio existe demonstram uma virtude rara – a integridade, que eleva o indivíduo a um patamar poucas vezes superado. Entre os exemplos raros, está o recém-falecido Pelé. Ele tinha suas falhas pessoais, talvez seus deslizes familiares, mas em campo nunca demonstrou um comportamento desrespeitoso para com o público nem para com os adversários.  

Certamente por isso a sua morte foi tão lamentada. Os minutos de silêncio e o piscar de letreiros luminosos em vários estádios do mundo homenageavam tanto o atleta quanto o homem.  Lembravam alguém que, na vitória ou na derrota, portava-se com uma dignidade proporcional ao seu talento. Era inimaginável que, numa cerimônia de premiação, ele transformasse o objeto que lhe atestava a glória num reles apetrecho de pornografia.

Martínez é um goleiro como poucos, mas por uma atitude sumamente deseducada manchou para sempre a sua imagem. Ele bem que podia ter “segurado essa”. 

Escolha de vida

            Vez por outro me deparo com alguém surpreso por eu ter deixado o curso de Medicina no quarto ano. O fato ocorreu há muito tempo, mas ainda hoje a recusa a me formar causa perplexidade e mesmo raiva em algumas pessoas.  

Raiva? Explico. Poucos aceitam que alguém vá de encontro a metas socialmente impostas. Desrespeitar a convenção é pôr em xeque os referenciais que orientam o funcionamento da sociedade. O maior deles é ganhar dinheiro, e para isso necessita-se escolher cursos teoricamente rentáveis. Medicina, como se sabe, é um deles.

Não por acaso ouvi de um colega que, transferindo-me para Letras, eu acabaria morrendo de fome; levando-se em conta a média salarial dos professores brasileiros, a observação tinha o seu cabimento. Outro colega preferiu manifestar o seu desdém numa velada suspeita quanto à minha identidade sexual: “Letras é curso de moça!”.  

Esse tipo de reação me atingia porque se somava a um quadro no qual se alternavam taquicardia, suor frio, sensação de morte. A divisão entre o magistério de português nos cursinhos e as aulas do curso médico no Hospital Santo Isabel tinham desencadeado em mim um violento processo de somatização.

Apesar de ter desistido já perto de me formar, não acho que foram inúteis os anos que passei no curso. A experiência nos hospitais nos leva a compreender melhor o sofrimento humano. A doença e, por vezes, a vizinhança da morte nos tornam humildes.

Impressionou-me sobretudo o período em que estagiei num hospital para indigentes. Ali a medicina servia para que nós, acadêmicos, aprendêssemos a clinicar e passar remédios. Nem sempre havia no almoxarifado o que os doentes precisavam tomar, e costumávamos receitar um placebo. Em alguma medida esse recurso inócuo abrandava a angústia dos enfermos, que diziam se sentir melhor. Percebi então que a confiança, se não cura, melhora muito o estado do doente.  

Deixei o curso médico disposto a assumir o que sempre considerei minha vocação. Nascido em família de professores, convivi desde cedo com a rotina de salas de aula, correção de provas, comentários sobre o desempenho e a disciplina dos alunos. Eu gostava de ir ao Colégio  Diocesano Pio XI, do qual um dos meus tios era diretor, para circular pelos corredores e ver nas classes os mestres postados diante dos alunos. Aquele me parecia um papel importante, e nos meus sete ou oito anos eu alimentava o desejo de desempenhá-lo.

 A nossa época, utilitária e monetarista, tende a menosprezar o que nos indivíduos são propensões ditadas pelo mais íntimo de cada um. Esse descaso traz sofrimento e pode levar ao naufrágio de muitas vidas. Se a gente é o que faz, fazer aquilo para o qual não se se nasceu tira à existência o sentido.

Sei que isso é utópico, mas sonho com uma sociedade em que as pessoas não estranhem nem rejeitem o fato de alguém trocar um curso hipoteticamente mais rentável, porém com o qual não se afina, por outro em que experimenta a satisfação de produzir e ser útil. Afinal, como diz o velho ditado, só se vive uma vez.

Terrores infantis


              Penso que as mais intensas lembranças da infância são marcadas pelo que dá medo. Existem as de aniversário, viagens, reuniões em família, e todas constituem um repertório gratificante que nos faz ter saudades do tempo em que éramos guris. Mas elas não se imprimem na memória com a força dos eventos que nos deixavam o coração em sobressalto.  

Grande parte deles está ligada aos “fantasmas” da noite e aos tipos conhecidos como “doidos”. Qual a criança que não chegou a tremer sob os lençóis com medo da visão de algum ente sobrenatural? Podia ser a imagem de alguém que morreu ou de uma dessas personagens que povoam as histórias contadas em filmes, gibis ou por pessoas próximas.

Eu ouvia das empregadas histórias de crianças perseguidas por entidades monstruosas que vinham puni-las em razão de algum malfeito. Essa espécie de pedagogia do horror maltratava como um castigo, e de noite eu me encolhia sob as cobertas com medo de encarar a escuridão. Sentia os pingos de suor escorrerem pela barriga, mas não me atrevia a remover o lençol e ficar exposto às tenebrosas visões.  Podia ser a de um vampiro, uma mula decapitada ou uma tal de La Condessa, que saía de noite do túmulo para perseguir crianças desobedientes.  

Já os “doidos” eram fantasmas concretos, que povoavam as ruas e não precisavam do escuro para nos assustar. Geralmente se tratava de pessoas feias e malvestidas, que associavam a bizarrice da figura a um considerável acervo pornográfico. Os nomes feios, diga-se a bem da justiça, vinham como resposta às provocações que faziam a elas.  

 Tenho vivas as lembranças de alguns desses tipos. Um deles era Leôncio, que costumava ficar sob uma marquise numa das ruas mais famosas da cidade. Ele pedia dinheiro aos passantes e descompunha sem cerimônia os que negavam. “Filho da p...” era das expressões mais leves. Como já o conheciam, ninguém o denunciava. Sua agressividade ficava mesmo no plano das palavras, pois nunca se soube que tivesse feito mal a ninguém.

Certa vez eu passava pela rua com a minha mãe e o vi dirigir-se a nós. Risonho, desdentado, estendeu a mão me pedindo “um troco” (era assim que ele falava). Na inocência dos meus oito anos, larguei a mão que me segurava e desandei a correr. Depois dessa experiência, evitei de uma vez por todas passar por aquela rua.

Mas a pior experiência foi com “Baleia”, como era conhecida uma mulher que costumava no fim da tarde passar pela rua onde morávamos. Nada provocava mais a sua ira do que a menção ao cetáceo com que inventaram de apelida-la. Justamente por isso os meninos insistiam na cruel designação, o que a fazia correr atrás deles enquanto aguentasse. Nunca pegou nenhum, e duvido que quisesse mesmo fazer isso.

Certa vez, ao voltar de uma padaria perto de casa, percebi com o coração aos pulos que ela vinha na minha direção e que iríamos cruzar um com o outro. Mudei de calçada e ela fez o mesmo, atribuindo o meu gesto a uma tentativa de fugir por tê-la em algum momento provocado. Enquanto se aproximava, vociferou com uma voz rouquenha e arquejante: 

 – Diga “Baleia” agora! Diga, se tiver coragem! 

Corri em pânico para casa e lá cheguei “branco”, conforme disse a minha mãe. Deram-me um copo d´água e buscaram me acalmar enquanto eu tentava explicar o que tinha acontecido.

Houve outros além de “Baleia” e Leôncio, mas esses dois foram os que mais me impressionaram. Hoje vejo que não eram tão maus assim. A explicitude de suas figuras fazia com que nós de antemão os identificássemos e nos preveníssemos. Ao longo da vida eu me depararia com outros mais perigosos, que sob o disfarce da normalidade nos surpreendem neste mundo hostil e nervoso em que estamos confinados.

Sobre o esquecimento


          A percepção da velhice às vezes se dá por meio de pequenas coisas. Rubem Braga relata numa crônica o desencanto que sentiu quando, numa recepção onde havia mulheres jovens, foi chamado por uma delas de “senhor”. Essa palavrinha, que ao cronista soou como um palavrão, estabelecia uma intransponível distância entre os dois. Dava a entender ao velho Braga que ele deveria “conhecer o seu lugar”. Era, de certa forma, uma maneira de esquecê-lo.  

Neruda escreveu: “É tão curto o amor e tão longo o esquecimento.” O verso também soa perfeito caso se substitua “amor” por “vida”. A vida é breve para o muito de esquecimento que a ela vai se seguir. Daí o apelo hedonista inscrito no Carpe Diem – Aproveite o Dia (embora a melhor parte do que se usufrui da vida ocorra mesmo nas noites).        

O tema da memória é crucial para quem envelhece. No envelhecimento há o temor tanto de ser esquecido, quanto de esquecer pessoas, fatos, experiências. A nossa identidade é formada pelo conjunto de referências que nos cercam, e esse referencial se constitui em boa parte das lembranças que acumulamos; perdê-las é como perder a nós mesmos.

Vivemos num tempo em que se procura resgatar os velhos, integrando-os à sociedade na plenitude também de seus prazeres.  Isso envolve impedir que se apaguem neles as marcas do passado, como se as lembranças da juventude alimentassem o que é vivido no presente.

Algum esquecimento é inevitável e mesmo necessário. O inconsciente se encarrega de providenciar isso, selecionando o que nos gratifica lembrar, e encobrindo o restante. É Freud quem fala das lembranças encobridoras, que existem para inibir outras que nos trazem desprazer. Na velhice, contudo, o esquecimento não é ditado pelas artimanhas do ego para fugir ao superego. Decorre sobretudo da redução das conexões entre os neurônios, própria dos chamados quadros demenciais – expressão assustadora, pois evoca o que na linguagem do povo caracteriza o velho como gagá.     

Outro dia conversei com um senhor de mais idade e dele ouvi que o pior do seu esquecimento é que ele não era “real”. Ou seja: no fundo ele se lembrava, mas não conseguia fazer com que as lembranças se tornassem claras. Era cono se permanecessem num intervalo entre luz e sombra, com lampejos do passado que se apagavam quando ele buscava captá-los com exatidão.

 Essa consciência de que esquecia as coisas mostrava que ele tinha alguma lucidez e talvez por isso sofresse mais. Há casos em que a consciência não mais existe, e as memórias se apagam sem dor, levando à gradativa perda da percepção das coisas, das pessoas e por fim de si mesmo

Nossa mente é um malabarista caprichoso, que manipula as lembranças a seu bel-prazer. Tanto esconde umas quanto desenterra outras, fazendo-nos reviver o que estava perdido e reencontramos com emoção. Isso não compensa o tempo passado, é certo, mas nos consola das perdas no presente. E sobretudo nos estimula a vivenciar com resignação e alguma alegria o que vem pela frente, pois a pior amnésia é mesmo a do futuro.

Quem tem medo da Inteligência Artificial?

            Nas últimas semanas o mundo tem tido notícia de um produto revolucionário da Inteligência Artificial – o ChatGPT. Ele seria capaz de elaborar cálculos matemáticos ultracomplexos e produzir textos dos mais variados tipos. Por essas características, entre muitas outras, vem empolgando cientistas, artistas e intelectuais. Ao mesmo tempo lança uma sombra de medo nos que temem a concorrência com a IA e traz à baila o velho temor de o homem ser superado por ela.

Sempre se esperou que o computador ajudasse o ser humano em atividades nas quais prevalecem a manipulação de dados e o cálculo de grandezas que a nossa inteligência é insuficiente para realizar. Ele seria um instrumento focado sobretudo nas operações em que prevalece o raciocínio lógico. Não se pensava que atuasse em domínios como o da arte, que dependem basicamente da sensibilidade e da emoção.

Diante disso, o ChatGPT tem gerado polêmicas. Há os que o saúdam como uma ferramenta capaz de multiplicar em níveis impensáveis nossas produções científicas, artísticas e culturais. E há, por outro lado, os que nele apontam uma série de limitações. Segundo li no Google, ele “pode gerar informações incorretas e falsas”, bem como “fornecer instruções perigosas e conteúdo enviesado”. Além disso, “tem um conhecimento limitado do mundo e de eventos depois de 2021”.

Segundo Yuval Noah Harari, autor de “Homo Deus, algoritmos como o ChatGPt são fruto do dataísmo, ou seja, da obsessão por informações que tem acompanhado a evolução dos computadores. Operam em função da quantidade e não da qualidade. Quando respondem a um questionamento, não o fazem por analisar conscientemente o que estão avaliando, mas sim por disporem de uma série interminável de bits que lhes permite estabelecer uma sequência mais ou menos coerente – ou não, daí a possibilidade de erros escandalosos. Já o nosso cérebro valoriza o que conta (tem peso ou importância), não o que consegue numericamente contar. 

          Não acredito que a IA possa um dia superar a inteligência humana. Os algoritmos são cães cibernéticos amestrados. O desejo das máquinas é e será sempre o desejo de quem as criou. Nietzsche escreveu que não se pode esperar eficiência de uma máquina que “se sabe” trabalhando. Nós nos sabemos trabalhando, somos ineficientes, mas nisso está a nossa grandeza.

A consciência e a dor permitem que nos “reparemos” por conta própria. O intelecto não é uma instância mental autônoma que analisa as informações e opera logicamente os conceitos. Ele se enraíza nas emoções e se equilibra no abismo do espírito. Isso transcende a capacidade de manipular dados própria do computador. Para ser eficaz, esse artefato cibernético não pode hesitar nem escolher caminhos alternativos. Opera prodígios, mas sem saber o que está fazendo. 

          Alceu Amoroso Lima escreveu, parodiando o cogito de Descartes: “Penso, logo hesito”. Hesitar faz parte do nosso percurso cognitivo e existencial; supõe mudanças no nosso modo de pensar e agir. O algoritmo não hesita porque é imune aos afetos e não se detém em imperativos éticos ou morais. O seu engenho – se podemos chamar assim – deriva de um conjunto de articulações que visam determinar de forma inequívoca sua finalidade.

Enfim, um algoritmo teoricamente não erra na consecução daquilo para o qual está codificado. E não erra porque nele não interfere o fator humano, que poderia fazê-lo titubear, perder o rumo. Já conosco a perda do rumo, tão frequente, é sobretudo um meio de busca e aperfeiçoamento interior. É uma contingência da nossa liberdade.

Cala-se o Menestrel Maldito


 Ele era um grande crítico dos costumes e sobretudo da política do Brasil, com suas deformações e vícios — o maior deles, a corrupção. 

Era também um cantor sensível da figura feminina. Suas modinhas, que lembram os menestréis do Medievo, têm um lirismo terno e romântico. 

Satirista impiedoso, via no humor o recurso mais eficiente para ridicularizar os medíocres e mal intencionados. 

Não poupava a si mesmo da ironia, conforme cantou em famosa composição em que critica o próprio apêndice nasal — que, segundo ele, só não era maior do que a miséria do País… 

Ao iniciar um dos shows que deu por aqui no Theatro Santa Roza, por volta da década de 1970, reagiu a um morcego que sobrevoava o palco, dizendo: “Olha o passarinho…”. 

A plateia não conseguiu segurar o riso.

Era difícil resistir ao seu espírito, que animava um talento de múltiplas facetas. Por tudo isso ele deixa saudades. (Foto “O fuxico”)

O poder da frase