sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A verdade é de cada um

 

É preciso ter cuidado com as máximas que pretendem nos ensinar como viver. Elas são inevitáveis, pois o desamparo do ser humano leva-o  a continuamente procurar fórmulas que o conduzam à almejada felicidade. Mas nem tudo o que elas dizem devem, como se diz, ser tomado ao pé da letra.

          Por exemplo, li uma vez este conselho dado já não me lembro por quem: “A gente deve enfrentar o que mais teme.” Imaginei transformar esse conselho uma regra e tratei de o pôr em prática. Comecei então a pensar no que mais temo. Várias coisas me causam temor, mas fico em pânico só com a ideia de pensar em ser perseguido por um cão feroz. Um rottweiler, por exemplo. Perto do meu prédio tem uma casa onde existe um. Eu bem poderia me acercar do muro e deixar o cão se aproximar para tentar perder o medo.   Desisti. Tampouco me disponho a enfrentar outras coisas que me arrepiam, como andar à noite por ruas escuras levando o celular.

           Outra regra muito propagada, inclusive pelos praticantes da autoajuda, é a de que não devemos desistir dos nossos sonhos. Houve um tempo em que eu sonhava muito em ganhar na loteria esportiva. A fim de pôr em prática o conselho, passei a jogar toda semana. E não apenas isso; para demonstrar o fervor da minha esperança, aumentava gradativamente a quantia investida no jogo. Um belo dia (uso o chavão porque, de fato, aquele foi um dia belo), me dei conta de que a prática semanal já tinha me levado uma pequena fortuna. Parei. E não só: fiquei convencido de que a certos sonhos é preciso desistir.

         Outro ditado desconfiável é aquele segundo o qual “quem procura acha”. Não dou conta dos objetos que, depois de ter perdido, procurei muito e não consegui achar. Um deles foi um relógio que, não por que cargas d’água, deixei na beira da praia. Outro cujo extravio doeu bem mais foi um livro dado por uma namorada; esqueci-o no banco de um ônibus, e não adiantou voltar lá muitas vezes. Não consegui achar. Desconfio de que esse esquecimento concorreu para que ela, com o tempo, também viesse a me esquecer.

       Não são poucas as chamadas “verdades universais” que, apesar do nome abrangente, não se aplicam a todo o mundo. Até mesmo delas é preciso desconfiar. Fala-se, por exemplo, que Deus ajuda quem cedo madruga. Evite dizer isso a quem sofre de insônia e, por mais que tente, não consegue voltar aos braços de Morfeu depois das três da manhã. Se alguém com esse perfil ouvir que “Deus o ajuda”, vai lastimar pelo resto das noites a ironia.

         Sejamos então humildes ao invocar o conteúdo desses brocardos, que devem ser recebidos com desconfiança. Eles têm o seu grau de verdade, são inclusive bonitos de ouvir e parecem concentrar o suprassumo do conhecimento humano. Mas sabedoria é como roupa; por mais vistosa que seja, não se ajusta a todo o mundo. Tem que ser primeiro provada para se revelar (ou não) útil a quem a usa.  

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Lembrança da feira

 

Um dos textos de Rubem Braga de que mais gosto é sobre uma feira quo o cronista descreve da janela do seu apartamento em Copacabana. Quando ele o escreveu não se acrescentava o adjetivo “livre”, pois as feiras eram por natureza um espaço de liberdade. Tudo ali se vendia, tudo estava ao alcance do olho do freguês.

Braga mostra o que pode haver de belo naquele ajuntamento aparentemente banal. Destaca, por exemplo, uma mulher que sopesa um molho de hortaliças com um “experiente carinho”. E estende o olhar lírico ao conjunto de pessoas simples que, sem ambições de riqueza, vendiam suas mercadorias para sobreviver.

Das muitas vezes em que fui à feira com a minha mãe, guardo a lembrança das barraquinhas de frutas, legumes, doces, e do enfático apelo dos vendedores. Me chamavam a atenção os balaieiros, que corriam em direção aos possíveis clientes com seus enormes cestos na cabeça. Tinham um preço fixo para acompanhar os fregueses e conduzir as compras até as suas casas, mas era possível barganhar e conseguir um valor mais baixo.

Acertado o preço, eles seguiam as patroas por entre as barracas. O peso dos balaios ia aumentando, mas aqueles exímios equilibristas os mantinham na cabeça sem os tocar. Não havia desvio nem tropeço que fizesse as mercadorias caírem. Isso deixava admirada a criança que eu era.

   A feira tinha um quê de circense também pela variedade dos tipos. Nela havia os palhaços – vendeiros que chamavam os clientes com ditos engraçados – e os contorcionistas, que apertados em suas barracas apregoavam a qualidade dos produtos.  

Hoje ainda há feiras, mas não com o prestígio de que desfrutavam antigamente. Elas foram suplantadas pelos supermercados, cuja variedade de ofertas, a assepsia das instalações e a ordem na apresentação das mercadorias trouxeram comodidade ao fastidioso exercício de ir às compras.

É pouco provável que o velho Braga fizesse uma crônica sobre os supermercados. Eles se impuseram pela praticidade e são uma conquista inevitável da vida moderna, mas lhes falta a liberdade que as feiras ao ar livre propiciavam. Se protegem do sol e da chuva, tiram às crianças o prazer de circular por caminhos imprevistos e às vezes se deparar com os tipos mais estranhos.

Sou um adepto da modernidade e considero o supermercado um avanço (nada mais tolo do que ir de encontro ao progresso), mas em nenhum deles encontro o prazer que eu tinha, por exemplo, ao surpreender um vendedor de roletes ou algodão doce e pedir à minha mãe que os comprasse para eu saborear ali mesmo.

A feira, como a praça, é do povo. E se não tem condores, como o céu do poeta, tem passarinhos e outras aves que encantam os meninos. Tem o cheiro das frutas e o vozerio do povo. Tem enfim a diversidade social, que nos faz perceber melhor o pulsar da vida.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Estrelas dançarinas

A Copa que o mundo vem acompanhando demonstra o fascínio que o futebol exerce na maior parte das pessoas. Não por acaso, ele é conhecido como o esporte das multidões. A televisão tem sido pródiga em mostrar a euforia (ou o abatimento) das torcidas em países de vários continentes. Não há dúvida de que seus habitantes veem os jogadores como guerreiros a quem se incumbiu a tarefa de representar a pátria.  

Concorre para tal interesse a própria natureza desse esporte. Dizem que o futebol não tem lógica, mas sempre aparece uma razão para um time ganhar ou perder. Logo, se existe uma relação de causa e consequência, há lógica. A crônica esportiva confirma isso. Ela pode enfatizar as qualidades de um time durante a partida, mas se ele perder logo os comentaristas encontrarão uma justificativa para a derrota. Em resumo: a lógica do futebol está no gol. Como na vida, o que importa é o resultado. 

Se o que conta é a meta, o objetivo, o futebol deveria se caracterizar como um esporte pragmático, no qual a fria tática prevalece sobre o improviso. Mas curiosamente não é assim. Nesse esporte conta muito o valor individual, que se mede pela capacidade de o atleta driblar, dar “lençóis”, meter uma “caneta” no adversário.  O drible é o show à parte, a negaça que torna mais atraente a conquista.   

Ninguém encarnou isso melhor do que Garrincha, que fez do drible a sua marca registrada. Muitos iam aos os estádios só para vê-lo entortar os adversários. Com ele o futebol se jogava direito por pernas tortas.

Conta-se que certa vez fintou vários adversários, e ao chegar diante do goleiro recuou alguns metros. Teve então que refazer os dribles até se deparar de novo com o “guardião da meta” e novamente recuar. Só na terceira investida consumou o ato, empurrando a bola para o fundo das redes. Ao final da partida o técnico lhe perguntou por que ele não tinha feito o gol logo da primeira vez, já que podia ter sido desarmado e perdido a oportunidade de empatar o jogo. Mané então lhe respondeu candidamente: “É que o goleiro não queria abrir as pernas.”

 Para ele não bastava o resultado, mesmo sendo isso que decidia a partida. Contava também, ou sobretudo, a forma como se definia o placar. Ou seja: contava o estilo. Associar a prática à beleza, que se revela por um estilo, é a principal característica da arte. Garrincha era por excelência um artista da bola.

Fala-se que o futebol se tornou “científico”, segue esquemas predeterminados por técnicos que ditam o movimento dos jogadores. E que nesse contexto um Garrincha não teria vez. Será isso verdade? Quem acompanhou a atuação de atletas como Vinícius Jr. ou Richarlison, que faziam embaixadinhas com a cabeça ou envolviam em “lençóis” precisos os adversários, viram neles uma reedição do espírito do Mané.

A arte desses dois atletas foi uma vitória de Dioniso sobre o rigor apolíneo inscrito nas regras de bem atuar.  Sem esquecer a eficiência, eles fizeram da bola um brinquedo que diverte e encanta. Como se não bastasse, coroavam a feição dionisíaca do seu desempenho com uma saltitante coreografia, fazendo-se “estrelas dançarinas” na simétrica constelação do futebol. O fato de o Brasil ter sido desclassificado não invalida o espetáculo que eles nos propiciaram.

O poder da frase