quinta-feira, 17 de março de 2022

O principal

Antes de viajar, ela chamou o marido e recomendou:

– Não se esqueça de aguar a minhas orquídeas. Basta uma vez por semana. Uma, não mais. Se você esquecer, elas morrem.

Ele ouviu com ar compenetrado e prometeu que aguaria as orquídeas. Uma vez por semana. Feita a promessa, ajudou-a a botar as malas no carro e a levou para o aeroporto. Na despedida, beijaram-se. Ele lhe desejou boa sorte no estágio e fez a carinhosa recomendação:

– Cuide-se!

– Você também!!

Para ele, foi um teste cuidar da casa. Não tinha jeito nem paciência. Precisava levar o cachorro para fazer as necessidades, lavar a roupa que se acumulava, ir ao supermercado e à feira, pois só comia fora no almoço. Não tinham filhos, o que simplificava muito as coisas, mas ainda assim as tarefas lhe pesavam.

 Além do mais, havia os contratempos da rotina. O cão, por exemplo, às vezes fazia pipi antes da hora. Lá ia ele buscar estopa e água sanitária para limpar a poça na sala ou em um dos quartos. Noutra ocasião, a válvula da descarga quebrou. Teve que procurar um encanador bem cedo, quando deveria estar no trabalho. Nesse dia chegou atrasado e não pôde assinar o ponto.

O tempo foi passando. Os dois conversavam raramente pelo celular, pois ela tinha uma série de obrigações ligadas ao estágio. Falavam da nova experiência de cada um – ela se aventurando no exterior, ele como dono de casa. Era uma espécie de inversão que os fazia rir.  Até então ocorrera o oposto, mas agora o mundo era outro. Falavam disso e da saudade, que começava a apertar. Para se assegurar de que tudo transcorria normalmente, ela lhe fazia perguntas: “Tem cuidado de Sultão?” “Agendou todos os pagamentos?” “Está passado o pano nos quartos?” Ele respondia “sim” a todas.   

Pouco antes de ela chegar, ele fez uma vigorosa faxina na casa. Bateu tapetes, lavou e desinfetou os banheiros, limpou o filtro do ar-condicionado. De noite estava exausto e com tosse, pois tinha alergia a poeira. No dia seguinte foi ao supermercado levando uma lista com o nome das comidas de que ela mais gostava. Trouxe iogurte, compota de pêssego, pão de milho.  

  Chegado o grande dia, postou-se bem cedo na sala de espera do aeroporto. Felizmente o avião não atrasou. Na volta para casa, ela quis saber se tudo correra bem; ele respondeu que tinha trabalhado muito, mas valera a pena. Achava-se, agora, um marido completo. 

Mal entrou em casa, ela se encaminhou para a varanda. Foi quando viu uma pequena orquídea no chão. Aproximou-se do vaso e percebeu que estava seco. As outras flores se desprendiam do caule e estavam prestes a tombar. Olhou transtornada para o marido, que entrava chamando-a para ver as gostosuras que havia na mesa... Ele então se deu conta do que havia esquecido.   

Nessa noite os dois brigaram. Ele tentou se defender mostrando como cuidara de tudo com esmero, tanto que a casa estava cheirosa e não tinha um grão de pó. Fora tanto o esforço, que ele chegou a ficar doente.

– Você não fez o principal! – interrompeu-o a mulher. E foi dormir cheia de mágoa.

terça-feira, 8 de março de 2022

Meio sorriso

 

Foi num domingo. Andando pela calçadinha da praia, vi duas moças conversando num banco lateral. Ao passar por elas, ouvi uma dizer: “O que não suportei foi aquele meio sorriso.”

Fiquei intrigado com a expressão. “Meio sorriso”. Não um sorriso inteiro, mas a metade, se é que se pode dividir esse enigmático desenho fisionômico em dois; ele não se confunde com o riso, que é explícito e escancarado. Fiquei me perguntando se hão haveria um pleonasmo em se falar em “meio sorriso”. O sorriso por si já não é algo menor?

Algo menor porém mais intenso, é verdade, pelo que há nele de introspectivo e superior. Quem sorri fica a meio caminho entre o riso e a seriedade, o que significa dizer que não se abandona de todo à emoção. “Mantém o controle”, por assim dizer, e desse modo pode se posicionar criticamente sobre o objeto de que (ou para o qual) está sorrindo. Talvez tenha sido isso que o tornou insuportável para a moça.  

Não há como duvidar do que se ri, porém muito se pode especular sobre a causa de um sorriso. Sobretudo quando ele não se completa ou, sob a aparência da incompletude, esconde uma intenção que deixa quem o percebe intrigado.  

A moça parecia mais ressentida do que raivosa. Não tive tempo de ouvir que atitude ela tomou ao se deparar com o semblante (maldoso, irônico, escarninho?) de quem tanto a aborrecera. Talvez não tenha tomado atitude nenhuma e por isso mesmo esteja agora desabafando com a amiga.

Pensei em voltar e passar diante delas para ver se captava o resto da conversa. Não haveria nada de feio nisso. Seria, digamos, uma bisbilhotice superior, determinada pelo que eu considerava um enigma linguístico e existencial (tudo que é linguístico toca a existência). Por motivo bem mais comezinho, muitos se intrometem na vida alheia. E não ganham nada com isso, a não ser o prazer de satisfazer uma curiosidade.

A ideia de voltar não passou de um impulso. Olhei para ver se elas ainda estavam lá; vi que estavam. A que falara no “meio sorriso” explicava (ou tentava explicar) alguma coisa à outra, que se mantinha receptiva e cordial como deve ser uma boa amiga num momento como esse.

Segui meu caminho pensando nas contradições da vida. “Meio” faz pensar em algo que é e não é. Para os latinos, caracterizava uma postura de equilíbrio e conciliação – a chamada “aurea mediocritas”, ou mediocridade de ouro, que se constituía num ideal de felicidade. Na expressão da garota, contudo, esse termo acrescentava a “sorriso” um valor negativo. Perdia o tom pacífico e conciliador, sugerindo uma pontinha de ressentimento ou menosprezo... Coisas da vida – ou da língua.

Por via das dúvidas, vou a partir de agora prestar mais atenção a quem sorri para mim. Desse modo vou saber se o gesto é sincero ou se é a metade falsamente radiosa de um lado escuro, que o outro não ousa mostrar.

Corrigindo o Carnaval

 

          Todos sabem o que é o “politicamente correto” – esse modo de pensar inclusivo, aberto às diferenças e inimigo dos preconceitos. Ele tem se estendido a vários aspectos da sociedade, mas estranhamente deixou de lado o Carnaval. Uma breve pesquisa sobre as músicas carnavalescas, no entanto, mostra o erro de tal omissão É verdade que há algum tempo se baniu “Tropicália” e “Cabeleira do Zezé”, mas não são apenas essas canções que embutem um conteúdo preconceituoso.  

 Resolvi então dar meu modesto contributo. Nosso cancioneiro carnavalesco, de fato, tem sido preconceituoso com determinados segmentos da sociedade. Ou com grupos historicamente injustiçados. Minha contribuição consistirá, por enquanto, numa breve indicação de músicas que devem se acrescentar às duas já mencionadas. O fato de estarmos em pleno “tríduo momesco” é uma boa razão para tratar do assunto. Quanto mais cedo nos mobilizarmos para prevenir esse tipo de abuso, melhor.     

Comecemos por “Aurora”. Trata-se de uma marchinha aparentemente inócua. Essa impressão muda quando se observam com atenção os versos iniciais: “Se você fosse sincera,/ô ô ô ô Aurora,/ veja só que bom que era,/ô ô ô ô Aurora.”  A desconfiança sobre a sinceridade de Aurora reflete uma mentalidade machista. Se não é sincera, Aurora mente, e mentindo lança sobre as pessoas do seu gênero a sombra do ardil e da trapaça. Como não relacionar isso com a mentira que Eva pregou em Adão para que ele, inocentemente, comesse a maçã? Proponho que não se cante nem se dance mais “Aurora”.

E “Máscara Negra”? Todos conhecem o clássico de Ze Kéti e Pereira Matos. É sem dúvida uma música bonita, mas lamento dizer que não deve mais ser cantada. Se não, vejamos. No finalzinho da letra o “Pierrô” diz à “Colombina”: “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é Carnaval.” Perceberam a atitude autoritária e truculenta? Quem pode negar que isso é assédio? Ele se propõe a beijar a mulher sem o seu consentimento e cinicamente pede que ela não o leve a mal (ou seja, tem consciência de que o beijo vai de alguma forma importuná-la). “Máscara negra” deve ficar de fora em respeito à integridade do corpo da mulher, que tem o direito de beijar (e ser beijada) por quem ela queira.

Acho que se deve incluir também “Jardineira”. Parece de um lirismo inocente, mas não deve mais constar no repertório carnavalesco. Quem não se lembra da letra? Indagada sobre a sua intensa tristeza, a moça responde que o motivo foi uma camélia que caiu do galho e morreu (depois de dar dois suspiros). O emissor diz então à moça que não fique triste porque ela tem o mundo ao seu dispor e (prestem atenção agora!) é muito mais bonita do que a camélia que morreu. Ou seja, ele aceita alegremente a morte da flor, o que mostra pouco respeito pela natureza (e, por extensão, pela ecologia).

E “Marcha da Cueca”? A letra é bastante conhecida. Alguém se diz disposto a matar quem roubou sua cueca para fazer pano de prato. Até aí nada grave. Pode-se interpretar o propósito homicida como uma hipérbole; o emissor estaria indignado com quem deu essa inusitada serventia a sua roupa íntima. O grave aparece depois, quando ele confessa que a cueca foi um presente que ganhou... da namorada. Namorada dar cueca de presente? Para fazer isso ela devia desaprovar as roupas de baixo que ele usava. E como conheceu essas roupas?! Essa música constitui um péssimo exemplo para os jovens que namoram com recato e decência.

Fico por aqui a fim de não aborrecer o leitor. Minhas pesquisas, no entanto, vão continuar (a propósito, acabou de me ocorrer “Pirata da perna de pau”; essa música deve ser banida por desrespeitar os deficientes físicos). Aguardem novas contribuições, pois considero o “politicamente correto” um baluarte contra as brigadas da intolerância e do preconceito. Ele ainda vai mudar este país!

domingo, 6 de março de 2022

Tirando a máscara do herói


 Os heróis dos quadrinhos não têm uma identidade. São arquétipos em que o cinema introduz personalidades variadas, com isso alargando-lhes a dimensão humana. Um exemplo disso é este “The Batman”, que mostra o personagem principal hesitante quanto à própria identidade e às voltas com fantasmas do passado. 

O filme é um pouco arrastado, mas acaba nos levando de arrastão. Convence sobretudo do segundo terço para o fim, quando destaca a luta do herói com o grupo mafioso que domina a política de Gotham City. 

Esse combate aparece envolto em sombras que refletem outro tipo de conflito, centrado na psique do personagem — uma psique torturada pela lembrança dos pais, cuja morte ele não conseguiu superar. 

Mas o maior combate é com o Charada, clássico vilão que nesta versão de Matt Reeves aparece como uma espécie de assassino “do bem”. Seus crimes são uma tentativa de punir os meliantes da política e da máfia, promovendo uma renovação da cidade. 

Ele sabe que Batman é seu maior adversário nesse processo de “limpeza”, por isso concentra principalmente nele a sua disposição maligna. Fazendo jus ao nome, provoca-o com enigmas verbais cuja resolução levaria ao confronto final entre os dois. 

“The Batman” é coerente em sua proposta ao destacar o visual sombrio e compacto no qual Gotham City parece se afogar. O tom escuro da paisagem é uma projeção da melancólica consciência do herói (otimamente interpretado por Robert Pattinson). Limitado pela culpa mas sobretudo preso ao dever, que é o de defender a cidade, ele resiste às investidas da Mulher Gato (Zoë Kravitz, também em ótima interpretação).

Fotografia e música (por vezes bombástica) ressaltam a atmosfera opressiva.

Pelo elenco, a fotografia e a concepção original, que humaniza e “problematiza” o tradicional personagem dos quadrinhos, “The Batman” merece uma ida ao cinema. 

 

O poder da frase