domingo, 21 de julho de 2013

Redator não é escritor


          No artigo “Escritor não é revisor”, publicado nº 93 da Revista Portuguesa, Sírio Possenti volta a discutir a correção das redações do Enem. Ele afirma que há “dois discursos” sobre o que uma redação deve avaliar: o do Inep e o da mídia. O primeiro leva em conta “o que há de positivo num texto”, detendo-se nos aspectos de organização e coerência. Já o segundo dá ênfase às questões ortográficas e gramaticais, punindo com rigor os que cometem deslizes nesses domínios ou fazem brincadeiras.    
           Possenti defende que o primeiro discurso deve prevalecer sobre o segundo; é mais importante organizar bem as ideias e redigir coerentemente do que conhecer regras de gramática e ortografia. Não há dúvida de que isso é verdade. Escreve bem sobretudo quem pensa bem e formula com clareza o pensamento. O problema é que sua argumentação se funda na oposição entre escrever e revisar, deixando de lado o que se deve esperar de quem redige.
         Antes de tratar disso, duas observações sobre as “brincadeiras” que o professor menciona, referindo-se obviamente aos estudantes que inseriram em seus textos parte do hino do Palmeiras e uma receita de miojo. A primeira é que tais brincadeiras não deveriam constar ao lado das infrações gramaticais e ortográficas. O autor as coloca entre esses delitos leves para minimizar seu efeito, esquecendo-se de que elas afetam a progressão e, por conseguinte, a coerência e a unidade textual. Ou seja: atentam contra requisitos que ele considera importantes.
        A segunda observação tem a ver com o aspecto, digamos, ético das referidas inserções. Não há como defender seus autores depois que eles confessaram ter feito o que fizeram para mostrar que os corretores não leem as redações. Pelo visto, na hipótese mais branda, conseguiram o seu intento. E na mais grave, acabaram revelando a imperícia e sobretudo a ingenuidade de quem, tendo-as  lido, não percebeu que esses alunos não estavam fazendo o exame a sério. Estavam ali para desmoralizar a banca... Saber ler é ser capaz de captar intenções desse tipo.  
        Possenti  invoca o exemplo dos escritores para demonstrar que se deve ser tolerante com determinadas infrações ortográficas e gramaticais no vestibular. De fato, por não serem obrigados a revisar seus textos, muitos deles desconhecem aspectos da norma culta. Como observa o linguista, o autor “está dispensado de saber um conjunto de coisas (de ter algumas competências, dir-se-ia hoje). O que se espera dele é que domine outras: em suma, que saiba escrever (...)”.
          Esse paralelo entre escritores e vestibulandos é um dos pontos vulneráveis da sua argumentação. O linguista se revela contraditório logo ao responder à professora Daniela Aizenstein, para quem uma das exigências da redação dos vestibulandos deve ser “ideias maduras e originais”. Contrapondo-se a esse ponto de vista, ele interroga: “o que é uma ideia original? (...) É original esperar ideias originais de redações de estudantes de 18 anos?” Ou seja: tacitamente reconhece que os referenciais adotados para vestibulandos e escritores não podem ser os mesmos. No entanto, é com base no que fazem os escritores (ou seja, na capacidade que eles têm de “escrever” mesmo ignorando preceitos normativos) que defende mais complacência com os que no Enem cometem erros ortográficas e gramaticais.
          Os escritores, de fato, usam a língua mais como fim do que como instrumento. São originais, têm o que dizer. Certamente é por isso que neles determinados deslizes podem ser perdoados. Antonio Prata, por exemplo, manda suas crônicas para a “Folha de S. Paulo” com problemas de ortografia e pontuação, e depois as recebe em condições de ser publicadas.  
          Mas em que medida se pode comparar os vestibulandos com Antonio Prata, Chateaubriand, Kafka ou Cervantes (os autores citados no texto)?  A quase totalidade dos que se submetem às provas vai usar a língua instrumentalmente em concursos, exames acadêmicos, entrevistas de emprego – instâncias em que se exige do candidato o conhecimento da norma culta. Assim, eles serão cobrados no âmbito que Possenti  considera, se não irrelevante, pouco significativo do ponto de vista da produção textual.
         O candidato que se submete a um concurso público ou tem que preencher um questionário para conseguir emprego não vai contar, como Prata, com revisores de plantão. Tem que resolver por si as questões gramaticais e outras que dizem respeito à norma. Deve revisar o próprio texto, o que significa dizer: redigi-lo por inteiro.
         Atribuir a revisores tarefas que são de redatores (e ainda mais opondo-as às dos escritores) é dar a entender que a revisão é atividade menor, subsidiária. E como nela se concentram as correções gramaticais, sugere que se pode escrever bem desconhecendo aspectos da norma; os escritores, afinal, não precisam dela para produzir seus textos. Uma ideia como essa repercute negativamente em sala de aula, pois encoraja o descaso com o estudo da língua.   
          De um bom redator não se exige originalidade ou estilo, mas clareza e correção de linguagem. O vestibular pede uma redação, não um texto literariamente criativo, e quem redige (na escola ou fora dela) deve conhecer a norma gramatical. Que se deixe aos escritores a prerrogativa de tangenciá-la e por vezes ignorá-la – eles que podem compensar as eventuais carências nesse domínio com os produtos do engenho e da emoção.

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