Se
o normal é confessarmos nossas faltas, seria mais adequado eu revelar o que não
li. Pois a verdade é que li muito pouco. E esse pouco -- o que agrava o delito
-- foi descoberto por conta própria, ao sabor de entusiasmos, admirações, e por
critérios nem sempre corretos.
Nossas escolas não orientam sobre
quando ou como ler, mas quem tem amor aos livros termina contornando essa
lacuna. Segue uma disposição que é percebida desde muito cedo, a partir do
momento em que toma consciência de si. Sempre vi nos livros a possibilidade de
uma transcendência (talvez uma compensação) que a vida comum não tinha. Brincar
com os colegas, jogar futebol, passear com a família -- tudo isso era bom. Mas
ler era diferente. Nos livros eu via a possibilidade de ultrapassar o tempo, o espaço,
o nosso precário destino. A leitura, conforme fui percebendo, era uma forma de
descer ao inferno da alma humana ou subir ao pico de suas mais alentadas aspirações.
A experiência de ler é a mais profunda
que o homem tem em termos de comunicação com o semelhante. Nosso diálogo com os
outros é incompleto, limitado por entraves sociais e afetivos. Ninguém, mesmo
querendo, diz tudo nem ouve tudo. Ninguém se abre para nós com a amplitude e a
intensidade com que os personagens o fazem. Eles não têm segredos e, ao
revelar-se, dizem muito de nós. Cada personagem é um confidente e um espelho em
que nos miramos com solidariedade e por vezes com horror.
É claro que só adquirimos a consciência
disso quando estamos maduros. No início existe apenas a atração pelo que os
signos trazem. As primeiras leituras são o momento de dramatizar o combate entre
o bem e o mal, o bonito e o feio, o forte e o fraco. Aderimos ao lado positivo dessas
antíteses para criar um código moral e dar alguma ordem ao mundo. Ficamos do
lado do bem, do bonito, do forte, sem muita noção de que essas qualidades não
existem em estado puro; na vida é tudo misturado. Nossas leituras acompanham (e
propiciam) a percepção dessa verdade.
A
leitura não deixa de ser uma fuga aos compromissos da vida. Quem está lendo se
subtrai ao convívio com os seres de carne e osso para entrar em outro mundo. Um
mundo não real, virtualizado pelos signos, separado das coisas pela
representação. Por isso é importante saber entrar e sair dele. Felizes os que
voltam mais sábios (mas não presunçosos) e têm a destreza de aplicar na vida
real o que lá aprenderam. A leitura não pode ser evasão, embora tenha um componente
disso. Depende do leitor, mais do que do autor, fazer com que ela seja uma
fantasia instrutiva -- no sentido de tornar mais lúcido e espiritualmente
melhor o ser.
Como quase todo o mundo, comecei com os gibis. Depois passei aos livros
de bolso. Foi uma evolução trocar as figuras pelos signos verbais, que antes
pareciam impenetráveis e sem graça. Fui aprendendo a gostar das aventuras de
Shell Scott, Perry Mason, Giselle, cujo esquematismo do enredo só depois, já
leitor crítico, eu seria capaz de avaliar. Mas era preciso passar por tudo
isso. O gosto não se cria com o difícil, mas com o que nos atrai. A leitura tem
de começar dando prazer (acho absurdo que alunos ainda verdes sejam obrigados a
ler Machado de Assis, Guimarães Rosa e semelhantes. Não vão gostar e podem
criar uma indisposição para com esses autores que vai acompanhá-los pelo resto
da vida).
Comecei lendo o que gostava, por
isso continuei a ler. Tivesse sido forçado a conhecer obras pesadas quando não
estava preparado para isso, certamente teria desistido no meio do caminho. Só
depois dos livrinhos de bolso é que fui conhecer os autores “sérios” da literatura
brasileira -- Jorge Amado primeiro, depois José Lins e Graciliano Ramos. Gostei
de “Capitães de Areia” pela romantização que faz da vida dos meninos de rua --
justamente o aspecto do livro que hoje se critica. Li com um sobressalto
gostoso “Terras do Sem Fim”, “Jubiabá”, “Mar morto”, envolvido em enredos que
não me pareciam distantes dos que encontrara nos livros de aventura. Nesse
período “a linguagem” era o que menos me interessava. Impressionava-me com uma metáfora, uma hipérbole,
uma sinestesia, mas sem muita consciência dos efeitos que elas provocam no
discurso.
Um encontro fundamental para mim foi com os modernos
cronistas brasileiros. Criei gosto por fazer crônicas lendo Rubem Braga
(sobretudo), Nelson Rodrigues, Millôr
Fernandes, Carlinhos de Oliveira, Paulo Mendes Campos e alguns outros. Era bom
encontrar no jornal um espaço em que a seriedade da notícia e do editorial era
substituída por uma prosa carregada de subjetividade e humor. Ali estava, como
contraponto ao registro dos fatos, o testemunho de alguém que não temia se
confessar e, em certa medida, mostrar-se mais como personagem do que como
pessoa (um aparente paradoxo que explica a atração que a crônica exerce). Quando não falava de si mesmo, comentava com
lirismo ou sarcasmo as matérias que o jornal trazia de forma impessoal.
Enquanto lia essa prosa e rabiscava
minhas crônicas, mantinha uma espécie de atividade paralela mas de alguma forma
relacionada com a literatura, que era a de professor de português. Durante
muito tempo me perguntei se esse convívio técnico com o idioma atrapalhava a
atividade criativa. Não seria sensato esquecer as gramáticas e me deter apenas
nos “criadores”? Com isso não teria chances de me transformar num escritor melhor
(ou, pelo menos, num escritor)?
Superei as angústias com esse tipo de indagação
dando-me conta de que ninguém se transforma em escritor -- e muito menos vem a
se tornar um esquivando-se a determinada forma de abordar a língua. No máximo,
o escrevente aprimora seus dons. Se não os tem, não será pelo contato com os criadores
que vai adquirir a faculdade de criar. Se os tem, não vai perdê-los por se
envolver com questões de uso, norma, tradição, vernaculidade. A observação dos mestres
mostra que tacitamente, sem explicitações terminológicas, muitos deles fazem
isso (Machado, Clarice, Graciliano, Guimarães Rosa).
O importante, com gramática ou não, é sempre
ler mais. Isso ajuda a perceber que mesmo quando não o notávamos (ou seja, mesmo
quando líamos apenas para acompanhar as peripécias dos personagens numa
história) a literatura é antes de tudo uma aventura da linguagem. Um meio de o
homem se conhecer, interagir com os outros, atuar de forma consciente no mundo.
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