sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Confesso que li

        Se o normal é confessarmos nossas faltas, seria mais adequado eu revelar o que não li. Pois a verdade é que li muito pouco. E esse pouco -- o que agrava o delito -- foi descoberto por conta própria, ao sabor de entusiasmos, admirações, e por critérios nem sempre corretos.   
        Nossas escolas não orientam sobre quando ou como ler, mas quem tem amor aos livros termina contornando essa lacuna. Segue uma disposição que é percebida desde muito cedo, a partir do momento em que toma consciência de si. Sempre vi nos livros a possibilidade de uma transcendência (talvez uma compensação) que a vida comum não tinha. Brincar com os colegas, jogar futebol, passear com a família -- tudo isso era bom. Mas ler era diferente. Nos livros eu via a possibilidade de ultrapassar o tempo, o espaço, o nosso precário destino. A leitura, conforme fui percebendo, era uma forma de descer ao inferno da alma humana ou subir ao pico de suas mais alentadas aspirações.
     A experiência de ler é a mais profunda que o homem tem em termos de comunicação com o semelhante. Nosso diálogo com os outros é incompleto, limitado por entraves sociais e afetivos. Ninguém, mesmo querendo, diz tudo nem ouve tudo. Ninguém se abre para nós com a amplitude e a intensidade com que os personagens o fazem. Eles não têm segredos e, ao revelar-se, dizem muito de nós. Cada personagem é um confidente e um espelho em que nos miramos com solidariedade e por vezes com horror.
         É claro que só adquirimos a consciência disso quando estamos maduros. No início existe apenas a atração pelo que os signos trazem. As primeiras leituras são o momento de dramatizar o combate entre o bem e o mal, o bonito e o feio, o forte e o fraco. Aderimos ao lado positivo dessas antíteses para criar um código moral e dar alguma ordem ao mundo. Ficamos do lado do bem, do bonito, do forte, sem muita noção de que essas qualidades não existem em estado puro; na vida é tudo misturado. Nossas leituras acompanham (e propiciam) a percepção dessa verdade.
          A leitura não deixa de ser uma fuga aos compromissos da vida. Quem está lendo se subtrai ao convívio com os seres de carne e osso para entrar em outro mundo. Um mundo não real, virtualizado pelos signos, separado das coisas pela representação. Por isso é importante saber entrar e sair dele. Felizes os que voltam mais sábios (mas não presunçosos) e têm a destreza de aplicar na vida real o que lá aprenderam. A leitura não pode ser evasão, embora tenha um componente disso. Depende do leitor, mais do que do autor, fazer com que ela seja uma fantasia instrutiva -- no sentido de tornar mais lúcido e espiritualmente melhor o ser.
         Como quase todo o mundo, comecei com os gibis. Depois passei aos livros de bolso. Foi uma evolução trocar as figuras pelos signos verbais, que antes pareciam impenetráveis e sem graça. Fui aprendendo a gostar das aventuras de Shell Scott, Perry Mason, Giselle, cujo esquematismo do enredo só depois, já leitor crítico, eu seria capaz de avaliar. Mas era preciso passar por tudo isso. O gosto não se cria com o difícil, mas com o que nos atrai. A leitura tem de começar dando prazer (acho absurdo que alunos ainda verdes sejam obrigados a ler Machado de Assis, Guimarães Rosa e semelhantes. Não vão gostar e podem criar uma indisposição para com esses autores que vai acompanhá-los pelo resto da vida).
       Comecei lendo o que gostava, por isso continuei a ler. Tivesse sido forçado a conhecer obras pesadas quando não estava preparado para isso, certamente teria desistido no meio do caminho. Só depois dos livrinhos de bolso é que fui conhecer os autores “sérios” da literatura brasileira -- Jorge Amado primeiro, depois José Lins e Graciliano Ramos. Gostei de “Capitães de Areia” pela romantização que faz da vida dos meninos de rua -- justamente o aspecto do livro que hoje se critica. Li com um sobressalto gostoso “Terras do Sem Fim”, “Jubiabá”, “Mar morto”, envolvido em enredos que não me pareciam distantes dos que encontrara nos livros de aventura. Nesse período “a linguagem” era o que menos me interessava.  Impressionava-me com uma metáfora, uma hipérbole, uma sinestesia, mas sem muita consciência dos efeitos que elas provocam no discurso.
      Um encontro fundamental para mim foi com os modernos cronistas brasileiros. Criei gosto por fazer crônicas lendo Rubem Braga (sobretudo),  Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes, Carlinhos de Oliveira, Paulo Mendes Campos e alguns outros. Era bom encontrar no jornal um espaço em que a seriedade da notícia e do editorial era substituída por uma prosa carregada de subjetividade e humor. Ali estava, como contraponto ao registro dos fatos, o testemunho de alguém que não temia se confessar e, em certa medida, mostrar-se mais como personagem do que como pessoa (um aparente paradoxo que explica a atração que a crônica exerce).  Quando não falava de si mesmo, comentava com lirismo ou sarcasmo as matérias que o jornal trazia de forma impessoal.
       Enquanto lia essa prosa e rabiscava minhas crônicas, mantinha uma espécie de atividade paralela mas de alguma forma relacionada com a literatura, que era a de professor de português. Durante muito tempo me perguntei se esse convívio técnico com o idioma atrapalhava a atividade criativa. Não seria sensato esquecer as gramáticas e me deter apenas nos “criadores”? Com isso não teria chances de me transformar num escritor melhor (ou, pelo menos, num escritor)?
         Superei as angústias com esse tipo de indagação dando-me conta de que ninguém se transforma em escritor -- e muito menos vem a se tornar um esquivando-se a determinada forma de abordar a língua. No máximo, o escrevente aprimora seus dons. Se não os tem, não será pelo contato com os criadores que vai adquirir a faculdade de criar. Se os tem, não vai perdê-los por se envolver com questões de uso, norma, tradição, vernaculidade. A observação dos mestres mostra que tacitamente, sem explicitações terminológicas, muitos deles fazem isso (Machado, Clarice, Graciliano, Guimarães Rosa).
         O importante, com gramática ou não, é sempre ler mais. Isso ajuda a perceber que mesmo quando não o notávamos (ou seja, mesmo quando líamos apenas para acompanhar as peripécias dos personagens numa história) a literatura é antes de tudo uma aventura da linguagem. Um meio de o homem se conhecer, interagir com os outros, atuar de forma consciente no mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O silêncio do inocente