sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O colchão

É de manhã cedo. Mal abro os olhos para o mundo, ouço a minha mulher, ao lado, sussurrar: “Podíamos trocar este colchão...”. Fala no imperfeito, como se meditasse. Como se dissesse isto mais para si do que para mim. Faço que não ouço e ela repete, com essa típica obsessão das esposas, que, para além das esquisitices e dos caprichos pessoais dos maridos, sabem o que é melhor para a casa: “O colchão está velho, vamos comprar outro.” Fecho os olhos, tapo os ouvidos, viro para o outro lado – mas não adianta. Sei que esse tom de conjectura é ilusório. Ela está, na verdade, generosamente me informando uma decisão que já foi tomada. O marido, afinal de contas, não pode ser o último a saber.
Ai de mim, sei que o destino do velho colchão onde me encontro, curtindo mais a preguiça do que um restinho de sono matinal, está decidido. Amanhã ou, no máximo, na outra semana estarei deitado sobre um objeto duro, inóspito, cheirando a novo. Juro que não resisto pelo dinheiro, mas por uma natural propensão a me apegar ao certo e ao conhecido. Entre o velho colchão e mim desenvolveu-se uma intimidade fraterna, uma parceria de sono e de sonhos que me custa, assim de repente, ver rompida. É claro que não digo isso a ela, que não está disposta a mudar de ideia por razões de ordem sentimental.
Decidida a nova compra, vamos os dois ao comércio. “Não vale pechinchar” – ela me adverte antes de entrarmos no carro. “Colchão é coisa definitiva, tem que ser do melhor.” “Nem tão definitivo assim”, digo a mim mesmo. Se colchão fosse para toda a vida, ficaríamos com o outro, já afeiçoado aos nossos corpos. Entramos em uma, duas, três lojas (resisto à advertência que ela me fez e heroicamente, cinicamente, cumpro o meu papel de marido e chefe da casa – pechincho). Na terceira loja encontramos um bolachão azul e com estrias brancas que mais ou menos concilia os interesses do casal. É sólido, bonito e não tão caro. Contemplo-o com natural desconfiança; encostado na parede, ele me fita com o ar neutro. Arrisco um contato, um carinho, premindo com o polegar o seu dorso plano. Ele praticamente não se abala, hirto em sua indiferença ortopédica.
Resolvemos então levá-lo, ou melhor, esperar que a loja mande-o deixar em nosso apartamento. Dois dias depois, chega o instante de fazer a troca. Ao suspender o velho colchão, dou-me conta de que ele está, mesmo, bastante gasto. O tecido azul descorou, ficou meio cinza e, em alguns pontos, ameaça rasgar-se. O mais triste são umas manchas de cor indecisa, que lhe ferem irremediavelmente a dignidade. Difícil acreditar que são marcas nossas, a contraparte fisiológica de nossos repousos e prazeres, que ali se imprimiu como num sudário vulgar.
Ironia de um destino que é também o nosso, humanos seres: agora experiente, temperado pelas manchas e lacerações que a vida lhe imprimiu, o velho colchão vai dar lugar a outro – novinho e melhor encorpado. A fim de esconder as marcas de velhice, que parecem refletir-se em nós, minha mulher providencia um plástico grosso e fosco, onde o ensacamos com algum alívio. Ele durou, realmente, mais do que devia. Tornou-se um registro excessivo, e por demais franco, da nossa intimidade. E não queremos que atravesse nu a área do condomínio.
Os dois homens o suspendem por uma das bordas e ele transpõe, vertical, a porta do apartamento. É pesado e aderna um pouco, ou sobe e desce como se avançasse num mar invisível. Os homens fazem força para mantê-lo ereto nessa última caminhada, mas a isto ele opõe uma resistência manhosa e trôpega. Resistência de velho patético, que não reconhece que o seu tempo já passou. Mas, enfim, termina saindo.
Depois que desaparece escada abaixo, fechamos a porta e, com um ímpeto leviano, voltamos para o quarto e nos pomos a contemplar o colchão novo. Confesso que já não o acho tão antipático. Alguma coisa nele, para além da textura vívida e do impessoal cheiro de fábrica, me traz um longínquo, obscuro conforto. O tecido imaculado, sem borras, é como o reflexo de uma impressão que, lá no fundo, nos faz bem acalentar: a de que mais vida nos será acrescentada. Com ele, por assim dizer, nos renovamos. O novo colchão nos parece uma senha, uma estrada, uma garantia de muito sono e muitos sonhos pela frente...
E a minha alma boceja, feliz.
(Em "A rosa fenecida")

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