terça-feira, 2 de outubro de 2012

O sol nasceu

Antigamente escrever bem era ser precioso, usar palavras pouco comuns, burilar a forma. Hoje o que se aprecia é o estilo sóbrio e descarnado, cujo modelo é Graciliano Ramos ou Dalton Trevisan.
Aí pelo século XIX, não se dizia “O sol nasceu”. Uma frase como essa era um resumo que o autor rascunhava e escondia, com medo de que o acusassem de falta de imaginação ou indigência verbal. “O sol nasceu” – precisa dizer mais? Hoje os manuais dos cursos de Comunicação dizem que isso basta. Para eles, a boa frase é a que privilegia substantivo e verbo. Adjetivos e advérbios são excrescências que debilitam a expressão.
Mas no século passado essa frase magra precisava engordar. Os elementos nutridores eram justamente o adjetivo e o advérbio. “O sol nasceu” – e daí? O sol nasce todo dia. Esse fato corriqueiro, dito assim de modo seco e banal, não comove ninguém. Não basta a simples enunciação dessa verdade imorredoura para despertar no leitor as ressonâncias visuais e afetivas do nascer do sol.
Então o cronista vestia o fraque (se estivesse em casa, botava um pijama de seda cheirando a alecrim), introduzia o charuto na piteira, sorvia longamente um trago e começava: “O astro-rei...”. Por que chamar o sol de “sol”? “Astro-rei” era bem mais expressivo, tinha a magnificência da metáfora.
“O astro-rei, brilhante e sangüíneo...” Ah, os adjetivos. Bastaram essas duas palavrinhas para injetar no sol força e brilho. É impossível agora não visualizá-lo em todo o esplendor do dilúculo, ou seja, do crepúsculo matutino.
Satisfeito, prosseguia nosso cronista: “O astro-rei, brilhante e sangüíneo, rompe despudoradamente a linha do horizonte...”. Agora apareceu o advérbio de modo. Nada como ele para acrescentar ao verbo matizes sensoriais. A frase incha um pouco, é verdade, mas estávamos longe do rigor anorético com que hoje se vestem idéias e modelos.
E vinha o desfecho, que devia ser marcante: “O astro-rei, brilhante e sangüíneo, rompe despudoradamente a linha do horizonte e lança revérberos dourados na natureza estremunhada”. O cronista sorria, saboreando a animização presente na imagem final. O que faz o sol a cada novo dia senão restaurar as forças de uma natureza desfalecida em sombras? Esplêndido.
Depois de sorver um novo trago, ele se preparava para a frase seguinte. Tinha paciência e sobretudo tempo para urdir aos poucos o seu texto. A nós, que vivemos o imediatismo de um mundo cibernético e globalizado, resta-nos dizer simplesmente: “O sol nasceu”. O que, para falar a verdade, hoje interessa a muito pouca gente.

(Em "A idade do bobo", p. 46)

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O poder da frase